Peregrinação Crioula - PRÉ-PUBLICAÇÃO e lançamento
Navegar tem igualmente momentos mortos, urge inventar todo o tipo de entretenimentos. Além destas anotações, ocupo o tempo com a releitura de Fernão Mendes Pinto e, no bar dos praças, ouço outra narração delirante do Conguito. Entusiasmado, o grumete conta-me uma história prodigiosa, digna de pícaro, fértil em reviravoltas e peripécias rocambolescas. O seu relato, bastante elaborado, consiste num itinerário de oito meses à deriva em França. Durante esse périplo, fugindo de sua casa em Almargem do Bispo, depois de atravessar Espanha apanhando boleias e não pagando bilhete nos comboios, Conguito afirma ter calcorreado o país gaulês de uma ponta à outra, subsistindo à custa de trabalhos fortuitos e amizades duvidosas, envolvendo-se com marginais e assassinos… Tudo isto após uma tentativa frustrada de alistamento na Legião Francesa, tropa de elite na qual pretendia ser aceite com a idade de dezasseis anos!
Fugaz, atravessa-me um breve relâmpago: Conguito merece ser transfigurado numa personagem da Peregrinação… Mas qual delas? (página 22)
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Na moradia de Chico Zepa esqueço-me que pertenço ao navio-escola. A São Gabriel encontra-se no porto da Praia, atracada em segurança, e, por mim, bem que pode aí permanecer ou zarpar de regresso ao Atlântico. Poderia mesmo extraviar-se propositadamente ao largo de Cabo Verde, nos moldes em que Nicolau Coelho terá ludibriado Vasco da Gama, fazendo chegar a caravela Bérrio em primeiro à barra do Tejo. Ou ser queimada por míngua de guarnição, como foi o caso da São Rafael.
A verdade é que não me importaria passar uma grande temporada em casa deste novo companheiro. Entre mim e os kauberdianus a comunhão é completa, sem perigos nem golpes traiçoeiros - há uma síntese que nos antecede. Do fundo da minha alma, o meu desejo é continuar neste quilombo, devorando eternamente camarão, despejando grades de Ceris, enquanto o dia morre para além das montanhas pontiagudas de Santiago. (página 50)
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(…) todas estas montanhas escarpadas insinuam o brotar de um elo perdido, o irromper de um substrato obliterado, de uma génese sufocada. Desabrocha determinada energia que pressinto ser especificamente negra, africana, primordial, mas que ainda não logro discernir. Talvez este arquipélago se tenha apoderado dos meus sentidos. Tudo o que a princípio me repeliu, as paisagens abismais, poeirentas, dilaceradas, consumidas pelo fogo - tudo isso, choroti-choroti, me envolve com maior deslumbramento. (páginas 106-107)
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Por instinto, acima de tudo, Jul’Antone é um homem que ama o arquipélago, é um puro ilhéu. Nota-se-lhe o apego plasmado a São Vicente, laços espirituais que a miséria e a falta de condições não conseguem quebrar. Nem dado de vidro abandonará em definitivo a sua terra, foi aqui que nasceu e será aqui que terminará os seus dias. (…)
Ao deixar Jul’Antone fico sem saber que fazer, vagueando ao acaso pelas ruelas empedradas do Mindelo. Alheio a tudo, avanço sem sentido pelas vielas, pelos becos.
“Haverá grandes diferenças entre a construção civil, o tráfico negreiro de outrora ou as levas de contratados para as plantações das Terras-do-Sul-Abaixo?”, considero. Pulsa-me o espírito com sentimentos de revolta, de indignação. (página 128)
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“Peregrinação Crioula”, uma viagem a Cabo Verde marcada pelo processo de autodescoberta e confronto de identidades.
Paulo Branco Lima reinterpreta Peregrinação, obra seminal de Fernão Mendes Pinto. O narrador recorre à ironia e ao sarcasmo nesta viagem recente (anos noventa do século XX) a Cabo Verde em busca das suas raízes. Marca-o indelevelmente uma dinâmica de autodescoberta e um confronto de identidades.
O veleiro, os marinheiros, as paisagens, os habitantes de cada porto, tudo se torna parte de uma grande aventura para Paulo Branco Lima, escritor português de origem angolana, que apresenta seu segundo romance, Peregrinação Crioula.
Uma viagem pelo mar tem muitas dimensões, perigos e revelações. Pelo caminho permeiam mistérios e monstros que vão além da imaginação, revelando muito da vida de quem se lança por sobre as águas. Assim, ao balanço das ondas salgadas, durante uma jornada ao arquipélago de Cabo Verde, os leitores são convidados a atravessarem o horizonte onírico do tempo.
À medida que os episódios avançam, a narrativa desdobra-se num olhar pós- moderno sobre Peregrinação, a obra magna de Fernão Mendes Pinto. Publicada em 1614, trinta e um anos após a morte do autor, é tida como o livro de viagens da literatura portuguesa mais traduzido e famoso em todo o mundo.
Resultando de uma longa pesquisa sobre o conceito de navegação atlântica, o processo de escrita de Peregrinação Crioula tornou-se num projeto de vida com mais de vinte anos de recolha empírica e destilação em matéria criativa. Funcionando como jogo intertextual, recuperam-se várias personagens da obra quinhentista, colocando-as a bordo de um navio-escola de traços contemporâneos. Reconfiguram-se, de igual modo, numa estreita convivência entre a Língua Portuguesa e o Crioulo cabo-verdiano, fragmentos cruciais como a entrega da espingarda no Japão, os demónios de Pocasser ou a ilha de Calempluy.
Mário Gomes, especialista em Teoria da Literatura (Univ. Bona/Univ. Florença), afirma que «estamos perante um autor que na gíria literária se apelidaria de náutico: um autor de navios-escola e marinharia, mas sobretudo um artista da submersão literária. Sei de poucas pessoas – assim de repente lembro-me de um ou dois casos – que vivam tão submersas na literatura como o Lima».
Pires Laranjeira (docente de Literaturas e Culturas Africanas de língua portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), diz tratar-se «um livro de escrita comedida, metódica, visual, que descreve com minúcia e empolga pela força da palavra diretamente testemunhal, mas cruzada com a matriz renascentista: marinheiros-aprendizes, rotinas apertadas, trabalhos e dias duros, espaços e sujeitos enclausurados num oceano de espantos e águas abertas, à descoberta de si».
Para Soraia Simões (Mural Sonoro/ Instituto de História Contemporânea/FCSH NOVA) «à primeira vista, desde logo pela capa, parece que estamos perante mais uma obra de glorificação do passado quinhentista nacional, mas não. O autor, centrando-se numa rota marítima por latitudes africanas, desenvolve descrições pormenorizadas de marinharia e do funcionamento interno do veleiro que, à medida que os episódios avançam, vão ganhando contornos inesperadamente críticos do período colonial português» (Simões, Esquerda.Net).
O romance será apresentado em Lisboa no dia 11 de Junho, pelas 18h, na livraria Ler Devagar, pelo escritor e tradutor Mário Gomes, cujo recente trabalho de transcrição para língua portuguesa do autor germânico Arno Schmidt (Leviatã ou O Melhor dos Mundos seguido de Espelhos Negros), tem recebido rasgados elogios da crítica literária. Os atores Miguel Sopas e Ricardo Vaz Trindade lerão partes do romance.
O lançamento em Coimbra está previsto para a Casa da Escrita, no dia 14 de junho, pelas 18h, com apresentação de Pires Laranjeira. O autor lerá passagens da obra e o artista Pirata Grau irá interpretar um tema musical do seu vasto reportório.