De como se constrói um imigrante

Mar sólido

O Mediterrâneo é um mar sólido1 atravessado por gasodutos, cabos, tubos, cruzeiros românticos, super petroleiros, submarinos nucleares, barcos de carga, frotas europeias, etc. É a porta de entrada da África na Europa ou da Europa na África e é simultaneamente um abismo, um paradoxo do ordenamento geo-económico global. A uma mínima distância geográfica corresponde uma máxima distância de níveis de riqueza e de possibilidades de vida, estando a deslocação Sul-Norte cruelmente restringida o que obriga as pessoas a arriscar a vida para a fazer.

Em 2002 entrou em funcionamento no mar mediterrânico o SIVE (Sistema Integral de Vigilância Exterior), um dispositivo tecnológico e militar-policial para “blindagem” do Litoral. É um sistema de detecção rápida que possibilita a localização dos pateras 2 antes mesmo da sua chegada à costa, permitindo o seu bloqueio em alto mar e impossibilitando assim o pedido do estatuto de Refugiado. O SIVE é composto por um sistema de radares, câmaras de vídeo-vigilância e ligação por satélite. Funciona graças a um aparato informático concebido para esse fim e permite aos polícias nas torres de controlo seguirem quase “cinematograficamente” as desventuras dos imigrantes em alto mar3.

Pessoas

Todos os dias há milhares de histórias sobre a travessia do Mar Mediterrâneo e a tentativa de chegar à Europa. Histórias que não são histórias: são vidas de pessoas.

Marrocos faz fronteira com o Mar Mediterrâneo e corresponde à última escala em África antes de se chegar à Europa. Dentro de Marrocos duas cidades – Ceuta e Melilla – já são Europa, o que faz com que diariamente haja imigrantes a tentar entrar no seu perímetro. Ceuta está rodeada pelo mar e por um grelha de arame farpado. Se antes esta barreira tinha três metros agora - para dificultar a entrada no espaço geopolítico da União Europeia - tem seis. A primeira visão da grelha é absolutamente brutal: grades que percorrem toda uma montanha, dividindo uma vila e os seus habitantes e que são acompanhadas no seu percurso por dois dispositivos militares, um de cada lado. Se de um lado o ambiente lembra a 1ª Guerra Mundial, com trincheiras escavadas e soldados de 20 em 20 metros, do lado espanhol faz pensar numa guerra futurista. Normalmente a acção marroquina evita que as mãos europeias se encham de sangue.

Perto de Ceuta, em Marrocos, fica o bosque de Beliunes, onde até Outubro de 2005 acampavam mais de um milhar de indivíduos à espera do momento oportuno para passar a fronteira. Regra geral estes acampamentos têm comunidades de origens diferentes e organizam-se em assembleias. São acampamentos clandestinos ou semi-clandestinos que perduram até que a polícia marroquina ou a falta de abastecimentos e o alastrar de doenças, os obrigue a se auto-dissolverem. Nestes acampamentos – entre os mais famosos, o bosque de Beliunes em Ceuta, El Pilar de Rostrogordo e o monte Gurugu em Melilla – a situação destas pessoas é difícil e perigosa uma vez que, clandestinos, estão à mercê de toda a espécie de abusos, não só da polícia marroquina e espanhola, como do desespero uns dos outros, ou da arbitrariedade de especuladores que aproveitam para fazer negócio.

Em finais de Setembro de 2005 a situação agudizou-se em Beliunes; o acampamento estava a braços com um contágio de sarna e os militares marroquinos andavam a varrer o local sob pressão do Governo Espanhol. As várias comunidades de sub-saharianos reunidas na floresta decidiram fazer dois assaltos colectivos à fronteira. Cada um deles teve a participação de 500 pessoas, das quais cerca de cem, em cada assalto, conseguiram passar. Houve centenas de feridos e pelos menos 5 mortos a 29 de Setembro de 2005.

Saltar a rede implica alguma organização: ter escadas de pelo menos 6 metros; estar atento a ambas as polícias e estar disposto a morrer – e a ver os corpos dos parceiros ficarem para trás –, uma vez que, se a Guarda Civil electrifica o arame farpado e usa balas de borracha, o exército marroquino dispara balas e transporta as pessoas capturadas em camiões até ao deserto.

O assalto à rede foi uma nova batalha de uma guerra interminável e representou uma mudança na fronteira sul da Europa. A profusão de imagens que circularam no Ocidente acabou por suscitar uma mudança de atitude por parte do governo marroquino, encorajada pelo apoio financeiro da União Europeia. Em menos de um mês, mais de 4 mil sub-saharianos foram expulsos do território marroquino ou detidos em acampamentos militares perto da fronteira com a Argélia. Como podemos ler numa colectânea de depoimentos reunidos no site do Indymedia Estreito de Gibraltar4: “Estes são relatos finitos. Têm as palavras contadas. Mas a história não acabou. As vidas e os movimentos que se encontram nestes testemunhos continuam por detrás do texto, estando ainda hoje a ser escritas”.

Quando um “sem-papéis” consegue chegar a Ceuta tem de se apresentar na esquadra. Aí é registado como não tendo papéis, cabendo às autoridades locais decidir o que fazer com ele, o que pode variar entre a deportação e o receber um documento provisório, que permite ao indivíduo deslocar-se em território europeu (sem, no entanto, ter documentos que lhe permitam assinar um contrato de trabalho). Muitas vezes, à porta das esquadras, elementos da Guarda Civil impedem-nos de se apresentar às autoridades, entregando-os aos militares marroquinos. Se conseguiram o documento provisório são “depositados” no CETI – Centro de Estancia Temporaria de Inmigrantes –, um centro para 450 pessoas que chega a acolher 1700. Provêem na sua maioria de países marcados pela fome, miséria e guerra: Sudão, Costa do Marfim, Nigéria ou Guiné-Bissau assim como Índia e Paquistão. Nos terrenos em volta do centro o ambiente é o de uma torre de Babel onde costumes, culturas e hábitos coexistem em nichos. No entanto, mesmo em Ceuta ou Melilla, estas pessoas deparam-se com a hostilidade racista dos árabes do Norte de África, que não se consideram africanos e que acham que aquela “sua” terra não é para os pretos; com a brutalidade da polícia, que não hesita em rasgar os seus papéis de refugiados; ou com o desprezo dos comerciantes que se recusam a vender-lhes comida.

De ambos os lados do Estreito

Relatos diferentes de uma mesma guerra, estas “micro-geografias” estão todas profundamente interligadas e reflectem dimensões globais que as as relacionam com a nossa vida na Europa. São histórias de pessoas cujos percursos estão viciados e os circuitos são repetitivos. As suas andanças estão encravadas em espaços circunscritos, e as trajectórias circulam em volta ou por entre o imperativo das fronteiras territoriais, abrindo espaços e não espaços estatais ou clandestinos. A espera é uma constante e o quotidiano vivido em prol de expectativas. Nestas histórias torna-se gritante o hiato entre homem e cidadão e apercebemo-nos que se não se é cidadão não se tem direito a ser homem. O quotidiano destes imigrantes opõe-se na sua extrema fragilidade-força, de modo quase orgânico ao poder que mantém a ficção soberana da fronteira e da cidadania. Os dias vão passando, a vida vai encontrando brechas por onde acontecer e, na vulnerabilidade limite destes estados de excepção em re-actualização permanente, encontram-se equilíbrios insanos, situações absurdas e estranhas ocupações. Estão em vigor distorções máximas[5] do que consideramos “normal”, “direito”, “saudável”, “justo” e tal evidencia o carácter totalmente ficcional destes conceitos operatórios. “Norma”, “Justiça”, “Direito” assentam assim na existência de zonas de excepção em que a vida, como a do imigrante sub-sahariano em Ceuta e Melilla, é passível de ser morta, sem que tal constitua assassínio.

As migrações de pessoas e a circulação de conhecimentos fazem parte de um mesmo processo5 que se faz sentir em ambos os lados do estreito e obriga cada vez mais a repensar a própria noção de território. Os enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla, situados em território marroquino formam excepções na linha da fronteira que – caso estes enclaves não existissem –, acompanharia a linha da costa.

Através do financiamento da União Europeia, a administração espanhola re-activa diariamente o processo de construção de uma outra fortaleza na forma de elegantes zonas de compras (tax free zone) e ocidentais praias turísticas, símbolos últimos da prosperidade e vigor da Europa ali representada. As próprias cidades marroquinas incluem enclaves arquitectónicos europeus (ou europeizados) numa interligação material que nos leva a pensar que construir realidade apenas pode dar forma ao que já existe em potência nas mentalidades e nos discursos

Há toda uma tecnologia do controlo que vive da existência de lugares de excepção como estes, em que a polícia se militariza e o exército entra na esfera civil. Corpo, espaço e tecnologia produzem e mantê as fronteiras que, em simultâneo, são transgredidas e atravessadas vezes ao dia através de e-mails, sms, home-videos, televisão e rádio. A tecnologia patrulha a fronteira 24 horas, num incessante detectar dos corpos em movimento no espaço. A divisão do espaço e o confinamento dos corpos a lugares específicos, continuam a ser duas ferramentas fundamentais da disciplina do poder. Trata-se de entender a Fronteira como a face visível de uma guerra que, queiramos ou não, nos convoca a todos.

 

Uma versão deste texto, em co-autoria com Hugo Maia, foi publicada na edição portuguesa do jornal Le Monde Diplomatique de  Março de 2007 (Dossier migrações) 

  • 1. Terminologia utilizada no FADAIAT, é uma rede de apoio à ‘liberdade de movimentos.liberdade de conhecimentos’. Organiza anualmente um encontro e tem como objectivo ‘reflectir acerca da construção de novos territórios que atravessam as fronteiras Schengen’.
  • 2. Patera: nome das barcos com que os imigrantes atravessam o Estreito de Gibraltar.
  • 3. Este sistema está implementado nas Ilhas Canárias, na costa andaluza e em Ceuta e Melilla. Prevê-se a sua extensão à região de Múrcia, de Valência e ao resto do Mediterrâneo espanhol. É resultado de uma cooperação da União Europeia com o governo marroquino. O SIVE teve como consequência o alargamento das rotas de viagem dos imigrantes, causando um aumento do número de mortes no mar. O fortalecimento da fronteira marroquina provocou a partida de pateras da Mauritânia e de Cabo Verde que, previsivelmente, virão um dia a desembarcar em pontos tão longínquos como Maiorca.
  • 4. Recorreu-se à colectânea Relatos migrantes de una guerra en la frontera, de Pilar Monsell publicada na página do Indymedia Estreito de Gibraltar (estrecho.indymedia.org) que tem acompanhado a situação dos emigrantes nesta fronteira, sendo porventura o melhor canal informativo sobre o que aí acontece. Este é o primeiro dos Indymedia a optar claramente por não ter um carácter nacionalista ou mesmo regionalista; é de notar que o Estreito de Gibraltar é justamente o espaço entre a Europa e a África e que este canal de informação optou por se reportar a este território e não à Andaluzia, como muitos defendiam.
  • 5. É importante entender globalmente as importantes alterações que estão a ocorrer no mercado de trabalho e podendo falar-se de um ‘devir migrante’ do trabalho: as características que definiam o trabalho migrante (intensa mobilidade, temporalidade, informalidade da contratação, salários baixos…) estendem-se agora a toda a população.

por Ana Bigotte Vieira e Hugo Maia
Jogos Sem Fronteiras | 10 Novembro 2010 | Ceuta, Europa, imigração