uma espécie de habilidade autobiográfica
Se a habilidade autobiográfica que me é pedida visa situar aquilo que tenho escrito no espaço ultramarino português de ontem e lusófono de hoje, então o que me está a ser sugerido, de facto, é que entre no jogo e aceite essa colocação como eixo do que possa vir a ter para dizer.
Assim:
Em meados dos anos 50 do século passado desembarquei em Lisboa com uma bicicleta e uma caixa de tintas a óleo na bagagem. Eram preciosas prendas de que tinha conseguido não me separar, uma de aniversário e outra por ter feito o 2º ano do liceu, quando por decisão familiar fui remetido de Moçâmedes para fazer em Portugal, Santarém, num prazo de cinco anos, o curso de regente agrícola. Mas nem da bicicleta nem das tintas a óleo nunca mais voltei a fazer uso. Passei esses cinco anos na condição de aluno interno, a residir no próprio estabelecimento escolar, e tanto as tintas a óleo, que eram o reconhecimento dos meus mais evidentes talentos congénitos, como a bicicleta, que era uma adjectivação de gloriosas adolescências coloniais, foram sacrificadas à disciplina e ao programa da minha estadia em Portugal.
Não estou, porém, é claro, a contar a estória pelo princípio. Quando de facto fui embarcado em Moçâmedes, eu estava também a ser remetido ao exacto local do meu nascimento biológico e de onde, mais cedo portanto, tinha vindo com a família, que entretanto emigrava, parar a Moçâmedes. O que me calhou assim na vida, de qualquer maneira, foi estar de volta a Angola com um curso médio já feito quando a maioria dos sujeitos angolanos da minha classe etária com recursos para estudar estava a ser, por sua vez, expedida para faculdades em Portugal e a ver-se colocada nos terrenos de uma placa giratória, dados os tempos que então corriam, capaz de os envolver em oportunas dinâmicas de esclarecimento ideológico, aprendizagem política, encaminhamento militante e eufóricas, redentoras e patrióticas opções juvenis de rumo para a vida.
Pelo menos duas consequências maiores para o meu percurso biográfico terão resultado desta configuração das coisas: a primeira é que o lugar onde vim ao mundo sempre constituiu para mim, desde que me lembro a ruminar nas coisas, uma referência de exílio; a segunda é que tudo quanto pela vida fora se me foi revelando e determinando lugar no mundo, sempre acabou por ocorrer de maneira imediata, vivida, empírica, in vivo, a exigir, às vezes, e sem ser pela mão fosse do que ou de quem quer que fosse, opções e acções de vida ou de morte no pleno desenrolar dos acontecimentos.
Elaborações e ruminações, teoria ajudando, foi quase sempre só depois. Não me lembro de ter vindo ao mundo, evidentemente, mas em compensação lembro-me muito bem de ter mudado inteiramente, tanto de alma como de pele, uma meia dúzia de vezes ao longo da vida. De que havia uma matriz geográfica e de enquadramento existencial que essa é que era a minha, dei conta aí pelos 12 anos a comer pão e com um ataque de soluços no meio do deserto de Moçâmedes, por alturas do Pico do Azevedo. Isso continua a vir-me sempre à ideia de cada vez que ainda por lá passo e se calhar é para isso mesmo que ando sempre a ver se passo por lá.
E de que havia uma razão de Angola que colidia com a razão colonial portuguesa, disso dei definitivamente conta em condições muito brutais, com 19 anos e já a trabalhar como técnico responsável nas matas do Uíge, quando, em Março de 1961, eclodiu ali a sublevação nacionalista do norte.
Sobrevivi à justa e a tempo de me refazer de tanta perplexidade e do quadro de horror geral em que me tinha visto envolvido, fruto quer da feroz insurgência quer da perversa e ainda mais feroz repressão à insurgência, quando a seguir, numa noite em Luanda, a atravessar as ruas da Baixa, houve quem me desse a saber, pela via de uns versos, de uma alma de Angola que vinha pronta sob medida para eu ajustar à razão de Angola que o pesadelo do Norte tinha acabado de me dar a entender. E a partir daí passei a invocar esse novo nascimento para ver se conseguia forjar algum sentido para a condição de órfão do império a que a vida, apercebi-me logo, me iria destinar. O máximo que então consegui, para actuar do lado em que passei desde então e até hoje a situar-me, foi que alguns mais-velhos da luta clandestina, durante uns tempos em que habitei Luanda, me atribuíssem mínimas tarefas menores, como dactilografar, para distribuição nos muceques, poemas de revolta de autoria anónima e de esclarecedora má qualidade, também.
Mas depois foi uma data de gente presa e quando o instituto do café me colocou, a seguir, primeiro na Gabela e mais tarde em Calulo, perdi e nunca mais consegui restabelecer ligações políticas efectivas com a insurgência nacionalista. O máximo, outra vez, que consegui então, foi ser dado como persona non grata pela administração do Libolo e afastado dali junto com um padre basco e um médico português. Pouco para currículo político.Arranjei então outro emprego e mudei para a Catumbela, para dirigir a pecuária de uma grande empresa açucareira.
E foi nessa condição que levei tal volta passados três anos de mim para mim e afundado a criar ovelhas no interior do imenso platô de Benguela, levei então tamanha volta que andei os três anos seguintes a derivar pelo mundo. Estive em Hamburgo, em Copenhaga e em Bruxelas sempre a ver se encontrava traços da insurgência nacionalista, mas quando finalmente consegui chegar a Argel para colocar-me à disposição da luta, ninguém ali me levou a sério, ou então desconfiaram, ou então voluntaristas como eu já lá tinham que chegasse e até nem sabiam o que é que lhes haviam de fazer. Foi depois de ver-me assim perante a evidência de que por ali também não ia dar, e de ter levado as coisas até onde podia, que acabei por encontrar-me um dia, no turbilhão da voragem de tanta viagem, a exercer funções de chefe de fabricação de cerveja em Lourenço Marques Maputo, e estive a seguir em Londres, com um dinheiro que pedi emprestado, a fazer um curso de realização de cinema e de televisão. Na sequência dessa volta toda é que acabei por passar a noite de 10 para 11 de Novembro de 1975 no município do Prenda, às zero horas, que foi uma hora zero, a filmar a bandeira portuguesa a ser arreada e a de Angola a subir ao mesmo tempo.Já nessa altura, quando foi da independência, tinha o primeiro livro de poesia publicado.
Depois, de 75 até 81, fiz filmes para a televisão angolana e para o Instituto Angolano de Cinema, e andei durante uns tempos muito entretido a filmar por Angola toda e a pensar que seria bem acolhida essa minha peregrina intenção de dar Angola a conhecer aos próprios angolanos, meus compatriotas.
Quando vi que afinal não dava mesmo para continuar a querer fazer cinema, nem aquele que eu queria nem aliás qualquer outro, escrevi um texto académico para juntar a um dos filmes que tinha feito no Sul e obtive com isso o diploma da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris, que me deu imediato acesso à condição de doutorando.
Foi então o tempo da Samba e dos Axiluanda, de um fora de Luanda dentro de Luanda, e das teses. A partir de 87 passei a dar umas discretas e mal pagas aulas de Antropologia Social em Luanda e fui aproveitando sabáticas para aceitar convites e ir dar aulas também e consumir bibliotecas em Paris, Bordéus, São Paulo e Coimbra. E a partir de 92 arranjei maneira de ir estar, todos os anos, cinco meses com os pastores do Namibe. Decidi então passar a disponibilizar essa informação sem ter de escrever naquele tom da escrita académica ou de relatório, porque disso já tinha tido a minha dose. E foi assim que adoptei a maneira do Vou lá visitar pastores que depois me pôs na pista de uma meia-ficção em que venho insistindo nos últimos anos. E fui também deixando cada vez mais de escrever poemas tal e qual.
Hoje continuo a não conseguir andar muito tempo por fora sem devolver-me ao murmúrio de Luanda à noite que sobe das traseiras da minha casa na Maianga, e sem continuar a dar de vez em quando um salto ao Sul, para visitar pastores. E julgo, chegado a esta altura da vida, não poder deixar de ter que entender que o mundo, por toda a parte e não só aqui, se urde e se produz recorrendo sempre, ou quase sempre, ao uso e ao abuso da boa-fé dos outros. Temo não conseguir nunca chegar, mesmo velhinho, a conformar-me com isso e a tornar-me no sujeito bem acabado, dissimulado, pirata, adaptável e finalmente adaptado que nunca, durante toda a vida, consegui ser. Mas acho que também aprendi, entretanto, a rir-me de mim mesmo, das minhas incompetências congénitas e do mau-feitio que neste mundo sou evidentemente o único a ter. E tem uns intervalos em que tudo parece ficar virginalmente vivável, bom e bonito, conforme pensa a onça quando, segundo Guimarães Rosa, não teme nada e vai, guiada só pela alma que tem.
retirado da Cotovia
fotografias de Ruy Duarte de Carvalho e Luhuna de Carvalho (África do Sul, 2009)