A recusa da guerra e o abismo colonial
Numa das paredes da sala, incidindo no grande mapa esculpido em mármore branco que representa as navegações portuguesas do século XV e XVI, um foco de luz aponta para África e deixa entrever a sombra de Salazar fazendo o seu célebre discurso de Braga, em 1936, no qual declarou a indiscutibilidade de Deus, da Pátria e da Família. Assim termina o percurso da exposição Refuser la Guerre Coloniale, organizada pela associação Mémoire Vive, e que esteve aberta ao público na Casa de Portugal da Cidade Universitária de Paris entre abril e maio passado. A exposição, concebida por Hugo dos Santos em parceria com o artista Ângelo Ferreira de Sousa e com textos de Victor Pereira, parte de um conjunto diversificado de documentos – jornais, fotografias, comunicados, vídeos – apresentados em nove capítulos temáticos que nos contam uma história que está simultaneamente além e aquém dos espaço-tempo que desenhou a guerra.
Começando com objetos através dos quais o Portugal de Salazar aprofundou o que o historiador Valentim Alexandre designou como “mito da sagrada herança” (1), acentuador do papel civilizador e cristianizador do colonialismo português, a exposição percorre a seguir o tema da emigração a salto, evidenciando contiguidades entre as chamadas “emigração económica” e “emigração política”, uma distinção nem sempre operativa para se entender os processos de envolvimento social e de resistência infrapolítica de amplas camadas populares então emigradas (2). À figura do emigrante passivo, bem-comportado e despolitizado – cujo trabalho da Mémoire Vive tem, de múltiplas formas, vindo a questionar – confrontam-se retratos da atividade política, cultural e associativa dos anos 1960 e 1970, com a questão da guerra colonial a ganhar crescente acuidade e presença. A produção editorial, a atividade dos Comités de Desertores e das redes locais de solidariedade militante ou a ação dos grupos de oposição no exílio e dos movimentos de libertação africanos é posta em diálogo, mostrando o enquadramento sociopolítico através do qual se expressa a deserção, que aqui é entendida, de forma abrangente, como o gesto de recusa ativa da incorporação militar e da guerra.
A exposição não termina, porém, com o 25 de abril e o regresso de exilados e desertores. Muitos deles, na verdade, tiveram de se debater no período democrático com intrincados processos de amnistia e regularização da sua situação. Não é em torno, porém, desses bloqueios biográficos que a exposição se conclui, mas sim numa indagação sobre as permanências do passado colonial no presente pós-colonial, que permite compreender aliás o modo como o tema do exílio e da deserção são vítimas de atritos memoriais que dificultam a sua desassombrada inscrição na memória pública. No resguardo de um biombo se esconde a sala Abyssal Colonial, na qual repousam obras, álbuns fotográficos e objetos sobre a experiência da guerra e da presença colonial em África dos portugueses, pano de fundo inescapável dessas narrativas de desafetação à tropa e a um conflito feito a contraciclo histórico que aqui se pretendem evocar.
O trabalho da associação Mémoire Vive, no qual se insere esta exposição e o colóquio a ela associado (3), faz parte de uma constelação recente de investigação histórica e de diferentes processos memoriais e artísticos envolvendo a deserção e a recusa da guerra. A este respeito, merecem alusão os dois volumes de testemunhos de desertores, refratários e anticolonialistas presentes em dois livros – Exílios (2016) e Exílios 2 (2017) – organizados no quadro da Associação de Exilados Políticos Portugueses (AEP 61-74). Com efeito, a criação da AEP 61-74, em novembro de 2015, acentua uma fase de maior visibilidade das memórias do exílio e da deserção, com a edição dos referidos volumes, alimentando um conjunto variado de debates e apresentações em Portugal e no estrangeiro, bem como reportagens nos meios de comunicação social e a realização de encontros académicos e discussões públicas sobre o tema.
A recente profusão de trabalhos e de atividades não significa que o tema da deserção tenha deixado de ser o que Enzo Traverso designa como uma “memória fraca” (4), ainda observada, em múltiplas circunstâncias, como um gesto política e moralmente inadequado, e a sua recordação como uma espécie de desonroso desafio à memória da guerra e dos seus combatentes. Com efeito, a difícil assunção de uma guerra politicamente derrotada e o fecho traumático do ciclo imperial tenderam a produzir uma memória sobre a guerra colonial na qual – ainda que acentuando frequentemente a dimensão «trágica» ou «inútil» do acontecimento – sobressai uma leitura da participação no conflito como um gesto de dever e da figura do ex-combatente como alguém que fora vítima, ora dos «ventos da História», ora de uma guerra que fora obrigado a combater. Todavia, neste quadro, a memória da deserção acaba por fornecer um padrão mnemónico alternativo, com base na denúncia da violência e da injustiça da guerra e reivindicando formas distintas de considerar a articulação entre posicionamentos políticos e valores morais.
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(1) Valentim Alexandre (1995), “A África no Imaginário Político Português (Séculos XIX e XX)”,Penélope, n.º 15, pp. 39-52.
(2) Sobre o tema, veja-se, por exemplo: Victor Pereira (2007), «Émigration, résistance et démocratisation. L’émigration portugaise au crépuscule de l’Estado Novo», Mélanges de la Casa de Velázquez, vol. 37, n°1.
(3) Refuser le Silence, decorrido a 4 de maio na Casa de Portugal – Residência André de Gouveia, com a participação de Hugo dos Santos, António Oneto, Victor Pereira, Fernando Cardeira, Miguel Cardina, Silvy Crespo, Agnes Pellerin, Ângelo Ferreira de Sousa e Catarina Boieiro.
(4) Enzo Traverso (2012), O Passado, Modos de Usar. Lisboa: Edições UNIPOP, pp. 71-87.
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horiz
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