A restituição das obras está por todo o lado

Impermanências (foto de Alberto Mayer) | 2009 | Cristina Ataíde (cortesia da artista)Impermanências (foto de Alberto Mayer) | 2009 | Cristina Ataíde (cortesia da artista)Há tempos uma amiga enviou-me uma mensagem onde dizia: “agora esta coisa da restituição das obras está por todo o lado, ou sou eu que não tinha reparado? …até num romance policial que estou a ler” (1). Está por todo o lado e não é de agora. De facto, a reclamação pela devolução das obras apropriadas durante o colonialismo e também no pós-colonialismo inicia-se no século XVIII (2), mas o debate internacional e o processo para a sua execução tomaram recentemente proporções internacionais desde que o presidente francês Emmanuel Macron declarou num discurso em Ouagadougou a intenção do Estado francês em devolver as obras levadas das ex-colónias francesas e depositadas nos museus e arquivos de França (3). A este discurso seguiu-se a encomenda de um relatório sobre esta matéria aos especialistas Felwine Sarr, senegalês professor de Economia, e à francesa, historiadora de arte, Bénédicte Savoy. Este relatório publicado sob o título Restituer le Patrimoine Africain narra as etapas do processo de restituição ao mesmo tempo que apresenta um guião para a formulação dos problemas e soluções que a mesma implica (4).

O facto deste assunto estar por todo o lado quer dizer que transbordou da esfera político-museológica para o espaço público e mediático, o que é bastante positivo, sobretudo se for acompanhado de intervenções e de debates esclarecedores. O processo, que não era simples à partida, tornou-se mais complexo importando novos problemas e, dada a heterogeneidade das posições dos Estados envolvidos, aumentou a sofisticação que era exigida para tratar deste assunto. Não por acaso Alain Godonou, director do Programa Museus da Agência de promoção do património do Benim, afirma a necessidade de uma convenção internacional para a restituição da arte africana de modo a que todos os países encontrem quadros de referência para gerir esta questão.
Uma das consequências do debate sobre a restituição foi a reabertura de processos de reclamação de obras já não apenas entre antigas colónias e países colonizadores, mas de outras situações como consequência de guerras antigas que levaram ao saque de muitas obras. E é assim que Moscovo recusa devolver aos alemães as obras que saqueou na sequência do final da Segunda Guerra Mundial, ou a Grécia reclama ao Reino Unido a devolução de parte do Pártenon, entre outras situações. Contudo, nada é comparável à expropriação que se fez das obras de origem africana ou asiática. Se a devolução dos troféus de guerra seria um gesto de apaziguamento de um passado marcado pela humilhação do vencido, a apropriação das obras africanas foi a apropriação da memória de vários povos, nações e identidades culturais.
Descolonizar é um verbo, não é um episódio. A restituição das obras aos descendentes dos que delas foram saqueadas começou com um calendário que tem obedecido mais a um tempo político do que ético, mas ainda assim começou. A França irá devolver 26 obras de arte ao Benim estando agendado para que tal aconteça neste Verão ou, o mais tardar, no próximo ano dados os cuidados que há a ter com os choques térmicos que poderiam danificar as obras. O Museu Britânico, que se viu obrigado a organizar dezenas de debates para enfrentar esta questão nada consensual, já admitiu a devolução de algumas obras e pertences como a entrega à Etiópia de um conjunto de madeixas considerado tesouro nacional do Imperador Tewodros II, saqueadas durante a invasão da Etiópia em 1868. O Museu Histórico da Alemanha vai devolver um padrão português da época dos Descobrimentos à Namíbia, local onde foi erguido por Diogo Cão em 1486, e que fazia parte do acervo dos museus alemães.
Como o afirmam todos os pedidos de restituição, estes não só se confinam às obras de arte e de culto, mas incluem os arquivos, restos mortais e fósseis. O mais recente pedido de devolução, e já concedido pela França, foi parte de um esqueleto de um dinossauro da espécie de Anhanguera que havia sido encontrado na Chapada do Araripe no norte de Brasil. Este fóssil fazia parte de um lote de 45 fósseis exportados ilegalmente para França.
A resistência à devolução das obras tem sido justificada no âmbito da legislação sobre património e tesouros nacionais que começou a ser redigida no século XIX pelos legisladores europeus, segundo o princípio de que o que era encontrado nas colónias europeias, era, por princípio, propriedade dos países colonizadores. É assim que o British Museum Act de 1963 proíbe a instituição de disponibilizar os objectos da sua colecção, excepto em circunstâncias muito especiais, e que a lei francesa considera inalienáveis as colecções dos museus. É, pois, num misto de argúcia e legalidade que se vai protelando a devolução das obras propondo soluções perversas, como foi o caso do Museu Britânico que emprestou bronzes de Benim em sua posse a um Museu da Nigéria. Mas como afirma Ikhuehi Omonkhua, o curador-chefe do Museu Nacional do Benim, “os bronzes são mais do que arte. Mantê-los fora do país é como manter reféns os nossos antepassados” (5).
Recentemente, o jornal El País (6) publicou uma infografia com os mapas quer de todos os países que reclamam a devolução, quer daqueles que têm na sua posse esses objectos. O mapa inclui reclamações de obras por governos ou organizações de todos os continentes e é avassalador visualizar nestes mapas o que foram as apropriações destes objectos. Contudo, nenhuma posição pública de nenhum Estado reclamante propõe o esvaziamento dos museus europeus e americanos. Muitas são as razões, mas há duas particularmente importantes e que dão o tom do sentido de justiça e de ética dos reclamantes. Uma que decorre da vontade de que uma parte substantiva da Humanidade possa aceder a muitas obras de arte, desde que num contexto e dentro de uma narrativa descolonizada; e outra, a de que as diásporas dos países espoliados possam ter acesso a estas obras que estiveram reféns. Daí que a convenção atrás referida deva contemplar a questão da circulação em todos os sentidos e de todos os patrimónios.
Há que ter consciência que a devolução será um longo processo que durará muitos anos, consequência da heterogeneidade de posições dos Estados envolvidos, mas também das novas complexidades que o início desta devolução já despoletou. Torna-se imperativo rever a noção de património à luz da descolonização e das novas narrativas de origem dos descendentes dos povos colonizados. Nesta revisão do conceito de património urge conhecer a biografia do objecto a devolver, o contexto em que o mesmo foi extorquido, as mutações simbólicas de alguns desses objectos, cuja função ritualística pode hoje não encontrar justificação ou até provocar temor. Todas estas acções vão a par da necessidade de inventariar as ausências de outros objectos ou documentos que estabilizam uma narrativa renovada, mas todo este processo constitui um moroso mas imprescindível conjunto de decisões e de acções para aquilo que hoje é ainda possível resgatar com alguma pacificação seja possível.
Do mesmo modo, há um conjunto de actos que implicam reconhecimento de erros e de crimes que o processo de restituição chamou a si, como foi o recente discurso feito pelo primeiro-ministro belga Charles Michel que, no parlamento (4 de Abril de 2019) e na presença de representantes de afrodescendentes, pediu desculpas por todos os actos de segregação racial e pela adopção forçada de centenas de crianças nascidas de casais mistos durante o período colonial no Congo, Ruanda e Burundi. O processo de restituição é uma atitude e uma acção do presente e para o futuro, mas o que está em causa, e não há que escamotear, é o modo como avançamos individual e colectivamente porque, como afirma Eliane Brum, “a disputa dá-se sobre os passados” (7).
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(1) Trata-se do romance policial Le Dernier Lapon, de Olivier Truc. Paris, Éditions Métailié, 2012. Numa pequena aldeia da Lapónia, dois detectives da polícia tentam deslindar o mistério do roubo de um tambor Sami do museu local e do homicídio do seu primeiro proprietário.
(2) Cf. Miguel Bandeira Jerónimo, “Em torno das reparações”, Newsletter Memoirs, 6.10.2018.
(3) Cf. António Pinto Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro, “A restituição das obras: um passo decisivo no processo de descolonização”, Newsletter Memoirs, 22.12.2018.
(4) Cf.  Felwine Sarr e Bénédicte Savoy, Restituer le Patrimoine Africain, Paris, Philipe Rey/ Seuil, 2018.
(5) Cf. “Art of the steal: European museums wrestle with returning African art”, The Christian Science monitor, 30. 4.2019.
(6) Cf. El País, “O que aconteceria se os museus europeus tivessem de devolver a arte espoliada?”, 25.3.2019.
(7) El País, 3 de Abril de 2019, “Cem dias sob o domínio dos perversos”.
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memoirs.ces.uc.pt  Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação.

por António Pinto Ribeiro
A ler | 30 Junho 2019 | Museus, património, Reparação, restituição