As perguntas da restituição Nas duas últimas décadas têm vindo a irromper no campo artístico obras e discursos que vêm sinalizando a urgência de questionar a presença do património artístico e cultural dos africanos, asiáticos e latino-americanos na Europa, problematizando e apelando para o fim deste “exílio forçado” como o designou um historiador senegalês, que representava o Ministro da Cultura do Senegal, Abdou Latif Coulibaly, no colóquio “Sharing Past and Future – Strengthening African-European Connections”, realizado no passado mês de Setembro, em Bruxelas, e organizado pelo AfricaMuseum e pelo Egmont – Royal Institute for International Relations.
“A tendency to forget” (2015), uma instalação da artista Ângela Ferreira, que problematiza a pretensão dos antropólogos António Jorge Dias e Margot Dias que anunciavam o seu trabalho de campo em Moçambique, nos tempos coloniais, como apolítico; o filme “Bamako” (2006) de Abderrahmane Sissako confronta-nos com cidadãos comuns que levam a tribunal num bairro desta cidade as instituições financeiras internacionais responsáveis pelo estado de endividamento em que se encontra o continente africano; a Documenta das Artes de Kassel, de 2015, denunciando os genocídios provocados pelas guerras civis; a performance de Kader Attia no Centro Georges Pompidou, em Paris, reclamando a restituição destas obras no exílio; e ainda os trabalhos sobre as migrações do artista Barthélémy Toguo. Todas estas obras, entre outras, colocam na agenda a urgência de continuar a descolonização no plano da política e das artes. Nesta linha, em Maio de 2018 Faustin Linyekula, artista congolês, apresentou a peça Batanaba no terreiro exterior do ainda Museu Real da África Central, ainda encerrado para renovação. A partir de um projeto que estava a realizar em residência no Metropolitan Museum de Nova York, Faustin Linyekula encontrou nos armazéns do museu uma pequena estátua da etnia Lengola, a etnia da sua mãe. É então que, com a sua família, inicia um percurso e viaja até à aldeia da sua mãe. No espetáculo é encenada essa viagem de retorno à sua aldeia natal, ao seu Congo natal na procura das narrativas emudecidas deste objeto.
Foto de parede com a pintura Réorganisation, de Chéri Samba (2002), no AfricaMuseum | 2018 A questão subjacente é eminentemente política e ética: como veio este objeto parar ao museu nova iorquino? Como pode o protagonista e o seu país reconstruirem-se quando partes de si se encontram mudas, espalhadas pelos museus, as casas e as galerias europeias? Como em tantos outros museus europeus detentores de grandes acervos provenientes do seu passado de expansão e de colonização, as perguntas surgem hoje, não mais no interior destas instituições em formulações que poderiam ser sempre retóricas e de auto-resposta também mais ou menos retórica, mas a partir do outro lado, do lado herdeiro desta espoliação, que hoje também está no museu com as suas obras de arte tão perturbadoramente interrogativas, com a voz das diásporas tão incertamente ouvidas, com a homenagem sentida aos seus heróis da independência, sobre os quais começa a cair um consensual luto, com os seus guias negros que nos conduzem e nos guiam pelo museu entre objetos que refletem as suas feições, a sua incerta memória adquirida, a sua insegura pertença quotidianamente interrogada. É portanto necessário entender o que são estes objetos para os seus herdeiros mais diretos. É fundamental trabalhar este problema pois certamente que muitas pessoas não sabem que nos museus e departamentos universitários europeus existem não apenas muitos objetos emudecidos da sua história original, mas também esqueletos, crânios e partes de corpos de africanos sem sepultura. Há um longo historial de apropriação de corpos, objetos, obras, arquivos que ultrapassam em muito a ideia da tomada dos despojos das guerras clássicas. Na época moderna, a maioria destas obras agora reclamadas decorre de situações de apropriação por ocupação violenta do território no momento da expansão de que o episódio mais antigo registado é o roubo, pelos militares espanhóis, de 4000 “penas verdes” do pássaro quetzal coberto de ouro e pertencentes à corte do Imperador azteca Montezuma Xokoyotzim, que o governo da Áustria recusa devolver ao México argumentando a fragilidade das peças depositadas até hoje no Museu de Etnologia de Viena. Do mesmo período há um conjunto de códices que foram trazidos para a Europa e aos quais se mudou o nome para não poderem ser identificados. O colonialismo através dos militares, administradores coloniais, exploradores e missionários tornou esta prática corrente auto-legitimando-a com o argumento de que a posse do território implicava a posse de todos os recursos, pessoas e bens. Assim se alimentavam fetichismos, se demonstrava o poder e se organizava o conhecimento ocidental e um comércio muito rentável com que a Europa se ia financiando e exuberando. Mas esta prática não terminou com as independências, em particular nos países africanos, na medida em que em muitos destes países a apropriação ilegal de obras até aumentou pós-independência, como são os casos documentados do Gana e da Nigéria em percentagens muito elevadas (na verdade cerca de 60% do total das obras patrimoniais que estão fora destes territórios). Tal deveu-se certamente às situações de conflito vividas e guerras civis, devastação dos museus ou locais de culto, corrupção e desvalorização destas obras por parte de vários regimes políticos que desmereciam, e até negavam, práticas rituais e objetos de cultura popular ancestral. Há também já um longo historial em relação à reclamação de obras e de arquivos obtidos em situação de conquista, ocupação ou colonial. Estes pedidos começaram ainda no século XVIII, com poucos resultados, é certo, mas estavam em sintonia com o fim da escravatura e o pedido de reparação, nomeadamente por grupos anti-imperialistas. Mas foram as independências de países do sul e da América Latina que mais pressão fizeram junto dos antigos colonizadores para recuperarem obras, restos mortais dos seus compatriotas, arquivos e espécimes e tal aconteceu entre Estados que escapam ao dualismo Europa-África, de que são exemplos: a devolução do Reino Unido à Austrália, em 1990, de um folio em veludo do documento de independência desta última; a devolução da Itália à Etiópia, em 2005, do Obelisco de Axoum que tinha sido levado por Mussolini em 1937; do Japão, que em 2004, devolveu à Coreia do Sul uma escultura levada para o Japão durante o protetorado; a devolução, em 2011, de 4500 peças de cerâmica pré-colombiana à Costa Rica que tinham sido furtadas por uma empresa de importação de frutas nova-iorquina, e que faziam parte do acervo do Museu de Brooklin em Nova Iorque; as dez bandeiras da coleção “Boxer flags” que foram devolvidas pela República Democrática da Alemanha à China em 1955. Estas devoluções são episódicas e, na maioria dos casos, só foram possíveis por mérito de negociadores diplomáticos e quase sempre sob o pretexto de que não se tratava de devoluções, mas de presentes. Todavia estes e muitos outros “episódios” mostram-nos a dimensão global do problema da devolução/ restituição e também o seu sentido maioritariamente Norte-Sul, com exceção das obras roubadas pelos Nazis aos Judeus e que a Alemanha ou entidades privadas têm vindo a devolver. Hoje a estimativa é que existam na Europa cerca de 500.000 peças oriundas de territórios africanos sendo o Museu do Quai Branly, em Paris, e AfricaMuseum, em Tervuren, responsáveis por guardarem um acervo de 210.000 peças, ou seja, 42% do acervo africano na Europa. A questão da restituição relativa à República Democrática do Congo diz respeito a todos os países africanos e as iniciativas recentemente levadas a cabo do lado francês na sequência das declarações do Presidente Emmanuel Macron em Ouagadougou, capital do Burkina Faso, aceleraram certamente um processo que o seu antecessor, Nicolas Sarkozy, tinha iniciado em sentido contrário no seu célebre discurso de Dakar, em Julho de 2007, em que, agressivamente, e em casa alheia, elogiou os benefícios da colonização e criticou a estagnação do continente. A resposta consistente, séria e elaborada por vinte e três intelectuais africanos publicada sob o nome de L´Afrique répond à Sarkozy – contre le discours de Dakar (2008), coloca os protocolos de um possível diálogo noutro patamar deixando Sarkozy, e quem com ele se identifica, mudo. Macron sabiamente rompeu esse silêncio, por habilidade diplomática ou por desígnio geracional, avançando com declarações concretas sobre a questão da restituição, solicitando a especialistas, como o senegalês, professor de Economia, Felwine Sarr e a francesa, historiadora de arte, Bénédicte Savoy, um relatório e parecer sobre o tema. Este relatório foi recentemente publicado sob o título Restituer le Patrimoine Africain, ao mesmo tempo que o Senegal anunciava a inauguração de um grande museu panafricano, em Dakar – Musée des «civilisations noires» - construído em cooperação com a China. No Congo, a questão da restituição não é uma questão nova, colocou-se aliás em pleno tempo colonial, aquando da criação do Museu de Artes Indígenas em 1936, em 1960 com a independência e em 1973 a questão volta já com o Zaire. É assim que surge a associação dos Museus Nacionais do Zaire em 1973, que a política de Mobutu de um retorno à autenticidade, valoriza. Em 1976 é restituído o primeiro objeto, apesar dos sucessivos argumentos de Tervuren relativamente à falta de um espaço próprio para o Zaire acolher este objeto. Sucessivamente a Bélgica restitui objetos de várias categorias: objetos do museu da vila indígena da exposição de 1958; objetos do Ruanda; objetos que técnicos treinados em Tervuren levaram para o Congo. Mas, infelizmente muitos destes objetos foram roubados e entraram no mercado da arte. A partir de então não houve mais pedidos. Hoje a restituição é uma questão real, assente em algumas bases históricas. Dias antes da abertura do novo museu, o Presidente da República Democrática do Congo, Joseph Kabila declarou ao jornal belga Le Soir que iria iniciar processos de pedidos de restituição em Maio, um mês antes da inauguração do novo museu congolês, que está a ser construído na capital, Kinshasa, com ajuda da Coreia do Sul. A questão é muito complexa e exige uma certa atitude. Uma atitude positiva entre as duas partes seguindo uma boa metodologia e um quadro analítico capaz de descrever as várias situações. O oportuno trabalho de Jos van Beurden, Treasures in trusted hands – negociating the future of colonial cultural objects, já aqui referido, identifica cinco categorias relativas à origem dos objetos: prendas à administração e instituições coloniais, a igrejas ou ao Vaticano; objetos obtidos durante expedições privadas ou do Estado ou da Coroa; objetos obtidos em expedições militares; objetos/arquivos obtidos em funções missionárias, bem como cinco formas de aquisição: por compra por valor equivalente; por compra de acordo com a legislação colonial, e portanto por um pequeno valor; por aquisição violando a legislação e por um valor inferior; por roubo ou coação. Com a validade que os quadros gerais apresentam relativamente a uma matéria tão delicada e sensível encontramos aqui um quadro analítico do complexo problema que seguramente ajuda a uma desejável política comum europeia relativamente a este problema que atinge todas as antigas metrópoles coloniais e que, respeitando as especificidades de cada país e de cada caso, deveria dar-se no quadro de uma atitude política comum no âmbito da União Europeia, indo assim ao encontro de um quadro legislativo transnacional como é, a priori, este problema. Hoje os nomes dos museus e as suas mudanças, refletem uma vontade/necessidade de mudança de identidade, que nos mostra o caminho de um museu maioritariamente etnográfico para um museu com capacidade de assumir um conteúdo cultural de outro lugar. No entanto, seja pelos próprios conteúdos, seja pelas formas como este património foi adquirido e viajou até à Europa, seja ainda por esta distopia geográfica, a mudança destes nomes dos museus anteriormente coloniais inaugura uma nova ordem em que a questão da restituição volta a epitomizar desejos, ressentimentos, frustrações, relações mal conduzidas e, sobretudo, o legítimo desejo de contar uma outra história, a partir de outros lugares. Trata-se de indícios de uma Europa complexa a desembaraçar-se do passado, a descolonizar-se das suas ex-colónias, a libertar-se das imagens do ex-colonizador e do ex-colonizado a olhar para os fantasmas dos seus objetos museológicos. São, portanto, sinais de uma Europa que, ao rever as suas narrativas nacionais, equaciona outro futuro. Do lado africano muitos são também os desafios, a começar por um outro que esta herança europeia comporta, como bem chamou a atenção o historiador Amzat Boukari-Yahara: a questão da restituição concerne o património africano existente na Europa, classificado como património por instituições europeias, mas é preciso também olhar o património africano que está em África e que não está, e devia estar, classificado. Isto não muda os números do problema inscritos no relatório de Felwine Sarr e Bénédicte Savoy, Restituer le Patrimoine Africain, mas densifica o problema da restituição e reproblematiza a interrogação sobre o que é património e para quem, ao mesmo tempo que coloca às instituições africanas um outro desafio, um desafio pós-colonial.
O projecto de renovação do AfricaMuseum passou também pela mudança de atitude do museu em relação ao seu acervo. Neste momento, todas as obras estão identificadas e listadas de modo a que quando se iniciarem os pedidos de restituição de peças o Museu, segundo as condições acordadas, estará disponível para as devolver. O mesmo terá de acontecer relativamente a outros museus, arquivos e instituições. Sobre esta questão não deverá haver quaisquer dúvidas: as obras trazidas de modo ilícito para a Europa como para os Estados Unidos ou qualquer outro país devem ser devolvidas quando reclamadas pelos Estados herdeiros da sua propriedade de origem. Além do princípio da devolução há um conjunto de protocolos e de metodologias que devem ser consideradas para cada caso em concreto, até porque vão surgir dilemas, para além dos que já se configuram, que haverá que ponderar entre as partes envolvidas. Em muitos casos estão em causa obras que foram trazidas de forma ilegal ou com recurso à violência e que hoje fazem parte de coleções privadas (as mais difíceis de identificar e localizar) e obras que – a maioria delas pertencentes aos museus de etnologia, de ciência, de antropologia e a colecionadores de arte – são consideradas pelos seus ex-proprietários, como de importância simbólica, identitária e cultural inalienáveis. A este património devem acrescentar-se os crânios e os esqueletos de pessoas que, por razões diversas, estão sem sepultura sendo parte de acervos científicos, o que incluiu os restos mortais, como os de Saartjie Baartman devolvidos pelo Museu do Homem de Paris à África do Sul, no que constituiu uma das primeiras iniciativas diplomáticas de Nelson Mandela como Presidente da República da África do Sul. No que diz respeito ao processo de restituição desenham-se três posições: uma negacionista escudada na legislação e no direito de muitos países sobre os bens do Estado que são inalienáveis; outra, protagonizada pelas autoridades que reclamam a propriedade das obras apontando a falta de equipamentos onde este património possa ser acolhido; finalmente, a posição mais pragmática e resultante de negociações produtivas e que provém do governo holandês e dos responsáveis dos seus museus: listadas e identificadas as obras trazidas da Indonésia o governo acedeu a restituir: a) objectos trazidos indevidamente, b) objectos de importância cultural simbólica. À parte este património classificado pelos especialistas europeus a partir de um conceito de património muito próprio, há que considerar que existem outros objectos culturais que escapam a uma visão do cânone europeu, mas que são assumidos por outros povos como seu património, um primeiro dilema que exige negociação cultural entre múltiplas partes. Parte da oposição a este processo de restituição vem maioritariamente dos que fantasiam ver as salas dos museus europeus vazias, exercício este que seria proveitoso para avaliarem o luto que foi ver clãs, nações, comunidades religiosas despojadas dos seus bens durante séculos. Mas para este dilema há também que considerar que muitas das obras com funções ritualísticas e utilitárias foram conservadas durante muitos anos no seio de tribos ou nações, muitas vezes pelo cuidado com que eram tratadas. Assim, em primeiro lugar, não se sugere que todos os objetos sejam depositados em aldeias ou ao cuidado de chefes tribais – como muitas vezes são caricaturadas estas comunidades – mas há opções de conservação e de exposição que ultrapassam o recurso habitual do museu, este que, por sua vez, deve aproveitar a oportunidade para rever a sua função e o seu modelo de instituição cada vez mais comercial. De qualquer forma, para além dos 500 museus já existentes só em África (desiguais, é certo) o tempo e a sua gestão serão preciosos para uma eficaz e bem-sucedida restituição. Um último dilema também já identificado relaciona-se com a devolução dos arquivos, a saber a quem pertencerão os documentos originais dos arquivos que começam a ser digitalizados. O princípio deve ser o mesmo: os documentos originais sobre as narrativas do território ex-colonizado e a vida dos seus cidadãos devem ficar à guarda dos arquivos nacionais do Estado que os reclama e as cópias digitalizadas devem ser partilhadas a quem prove delas fazer um bom uso. Mas neste processo de restituição há responsabilidades últimas a partilhar por todos os Estados envolvidos: o compromisso de bem cuidar dos objetos e arquivos devolvidos mormente investindo na sua conservação e divulgação. Este é simultaneamente um investimento fundamental na educação e na produção de novas narrativas interdisciplinares de revisão das histórias nacionalistas e de contornos colonialistas, rumo à produção de uma História global. Durante os vários anos que foram necessários para reformar e organizar o Museu Real da África Central e transformá-lo no Africa Museum um conselho científico acompanhou todo o processo questionando e fazendo perguntas a cujas respostas sucediam novas perguntas, por vezes embaraçosas, muitas ainda sem resposta. Mas por mais incómodas que possam ser, são perguntas necessárias que devem continuar a ser feitas. _____________________
Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624).
|