Num contexto de intensa disputa histórica, mas sobretudo memorial, em França, suscitada, em parte, pela publicação da Lei de 23 de Fevereiro de 2005, que postulava a necessária transmissão dos “valores positivos” do colonialismo francês aos estudantes, Jean-François Bayart e Bertrand Romain assinaram uma peça intitulada “De quel ‘legs colonial’ parle-t-on?”, publicada na renomada L’Esprit. De que “legado colonial” falamos nós? Apesar do uso disseminado (e indiscriminado) da expressão, poucos têm sabido responder com propriedade e consistência à pergunta. O facto de, muito provavelmente, estarmos perante uma pergunta cuja resposta será sempre insuficiente e incompleta não impede que muitos invoquem os ditos “legados” coloniais e imperiais sem hesitar, sem reservas, e, por vezes, sem qualquer julgamento crítico.
Bayart e Romain chamaram a atenção para o modo como a expressão se tornou num instrumento de reivindicação política e social, definindo estratégias diplomáticas, relações internacionais e políticas domésticas, ancorado em posições político-ideológicas e socioculturais específicas. Justificando, portanto, as lutas do presente, nas antigas metrópoles, nos antigos territórios coloniais e ainda nos fóruns internacionais. Dentro e fora da academia, usando a história - numa sua versão instrumental - como arma de arremesso, sem grande preocupação de rigor ou minúcia. Em contra-mão, os mesmos autores alertavam para um conjunto muito significativo de investigações que poderia permitir dar uma outra consistência às disputas em curso. Estas deviam começar pelo reconhecimento da multiplicidade de problemas conceptuais, metodológicos, epistemológicos e analíticos associados à ideia de “legado”. E pelo reconhecimento, também, da diversidade de objectos e geografias a partir dos quais se deve interrogar as formas possíveis de uma resposta robusta, ainda que necessariamente incompleta, à pergunta formulada. A compreensão, historicamente situada, das origens coloniais dos regimes de desigualdade contemporâneos – de género, raciais, económicos, culturais – assim o exige.
sem título | 2018 | Ana Vidigal
Mas, ainda antes, talvez seja útil formular uma outra questão que, em muitos casos, está igualmente por responder, pelo menos de modo rigoroso e empiricamente sustentado. De que passado colonial ou imperial estamos nós a falar? O que sabemos sobre esse passado, longínquo ou bem recente? O que conhecemos, de facto, de aspectos tão fundamentais como a estrutura ocupacional ou de rendimentos, os padrões de consumo, os graus de literacia, as práticas culturais, as opções ideológicas, os níveis de formação e participação política, as políticas de cidadania ou da terra nas antigas sociedades coloniais, em espaços urbanos ou rurais e nos trânsitos entre estes?
Mais: o que sabemos sobre a própria descolonização, processo mais amplo e complexo que a mera “transferência do poder”? E sobre a fase inicial das independências, sobre as suas possibilidades e constrangimentos, sobre as distâncias que se cavaram entre formas de imaginação política e compromisso ideológico e o jogo do possível, face às circunstâncias históricas? Problema complicado por estas terem sido amiúde caracterizadas pela persistência de dinâmicas de violência (material e simbólica) e de escassez de recursos? No caso do antigo império colonial português, muito pouco. Qualquer exercício de compreensão das manifestações, subterrâneas ou manifestas, dos passados imperial e colonial no presente requer um módico de conhecimento sobre estas questões. Requer que saibamos responder, mesmo que de modo provisório, à questão “de que passados colonial e imperial estamos a falar”?
Podemos reflectir sobre a influência dos passados coloniais e imperiais nas formas contemporâneas de criatividade e interacção cultural, nas dinâmicas de pertença ou conflito social, nos padrões de mobilidade geográfica ou social, ou nas modalidades de cooperação ou conflito no plano internacional ou regional sem possuir um conhecimento robusto sobre as trajectórias históricas do colonialismo e da descolonização? Podemos compreender a sua projecção contemporânea em museus e arquivos, na “memória” ou na cultura popular, na gastronomia e na arquitectura ou na música sem antes escavar, de forma a termos referenciais plausivelmente sólidos, as genealogias e as manifestações históricas do colonialismo e do imperialismo?
Entre outros aspectos, a ideia de “legado colonial” (ou imperial) implica uma reflexão cuidada sobre regimes de prova e de causalidade, sobre a relevância da historicidade dos fenómenos sociais, ou sobre as relações desejáveis entre preocupações normativas e interrogações científicas. Ou ainda sobre as relações possíveis entre história e memória. A reificação e a generalização infundadas espreitam a cada esquina. As dicotomias simplistas e rígidas abundam. As “memórias” são mais valorizadas que a história, ou são interpeladas sem uma referência sólida a esta última. Ambos os casos implicam riscos numerosos. Não é por os ignorarmos que eles desaparecem, ou deixam de ter efeitos muito negativos, tanto no conhecimento do passado como na compreensão do presente e na imaginação do futuro. Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº 648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.
|