Direitos Humanos - Pré-publicação

Descolonização 

O processo de descolonização, entendido aqui como a aquisição de independência política pelas colónias, foi um processo violento, tal como tinha sido o processo de colonização e de manutenção das colónias por períodos longos pelas entidades imperiais. Esse processo decorreu em diversas etapas: a) o ciclo de independências do Novo Mundo, da Revolução Americana (1775–1783) às guerras de independência na América espanhola nas décadas de 1810 e 1820, fenómeno prolongado nos Balcãs pelo declínio do Império Otomano; b) o ciclo de independências na Europa durante e a seguir à Primeira Guerra Mundial; c) o colapso dos impérios europeus e japonês na sequência da Segunda Guerra Mundial, que se prolongou da década de 1940 à de 1970; d) a desagregação do Império Soviético, que ainda tem sequelas. Este processo é aqui considerado à luz dos direitos humanos, já que o direito à autodeterminação dos povos foi inscrito na carta fundadora das Nações Unidas em 1945. Devemos dar crédito a Paul Gordon Lauren por ter chamado a atenção para a importância dos direitos humanos no processo de independência das colónias. Fabian Klose aprofundou esta dimensão quando estudou as guerras de independência no Quénia e na Argélia, expondo as atrocidades cometidas pelos poderes coloniais e o discurso internacional sobre os direitos humanos que sustentou as lutas de libertação.

As independências do Novo Mundo definiram-se pelo protagonismo das elites de origem europeia, que não queriam continuar a ser subjugadas por pactos coloniais que favoreciam as metrópoles, nomeadamente através de impostos e do monopólio de comércio. Na Declaração da Independência dos Estados Unidos, aprovada pelo Congresso em 1776, lemos no primeiro parágrafo que todos os homens são criados iguais, com um direito inalienável à vida, à liberdade e à procura da felicidade. A influência de Rousseau é manifesta. Contudo, esta declaração dirigia-se aos homens brancos. A população de escravos conheceu uma emancipação limitada nos estados do Norte, tendo sido o seu estatuto mantido nos estados do Sul; a emancipação proclamada no final da Guerra Civil (1861–1865) deu lugar a uma reconstrução falhada e à segregação dos afro-americanos até ao movimento cívico da década de 1960. Os índios, entretanto, eram considerados estrangeiros, sem acesso a direitos civis, situação só superada de forma parcial em 1924 com o reconhecimento da cidadania.

A Constituição de Cádis de 1812 foi redigida por liberais protegidos pela armada britânica numa Espanha ocupada pelas tropas napoleónicas. A constituinte congregava representantes das colónias. O texto daí resultante foi o mais inclusivo da época: a nacionalidade foi reconhecida a todos os espanhóis e indígenas do Império Espanhol; a população escrava ficou excluída da nacionalidade, enquanto a população livre de origem africana tinha de postular processos individuais de reconhecimento da nacionalidade. Esta constituição, assim como a americana, serviram de guia para as futuras constituições da Península Ibérica e dos Estados independentes da América Latina, embora com a introdução de adaptações e restrições. O protesto de populações indígenas, que se sentiram arredadas do processo de independência, fez-se sentir desde o início, sobretudo com a revolução de Hidalgo e Morelos no México na década de 1810. Os direitos dessas populações levaram tempo a ser reconhecidos e protegidos, e são ainda hoje objeto de conflito.

O único caso de revolução levada a cabo por escravos e emancipados contra o controlo da elite branca foi a de Saint-Domingue, ou Haiti, entre 1791–1804. Obtiveram a independência, mas com enormes custos económicos e sociais, não só pela devastação provocada pela revolta e pela guerra contra o poder colonial francês, mas também pela indemnização esmagadora imposta pelo governo francês em 1825, que só terminou de ser paga em 1947. A indemnização tinha como contrapartida o reconhecimento da independência e o fim do isolamento do Haiti, mas teve um enorme impacto na capacidade económica e financeira do país, que continua a conhecer instabilidade política e uma fraca institucionalização.

As independências no Novo Mundo, embora dirigidas em quase todos os casos pelas elites brancas, registaram um enorme número de mortos dada a reação dos poderes coloniais, que enviaram tropas e procuraram recuperar o domínio político. Participaram escravos nos dois lados da guerra, procurando afirmar os seus direitos e obter a emancipação, o que ocorreu em diversas ocasiões. Na América Latina, a abolição da escravatura foi alcançada durante as guerras de independência em diversos países, mas em Cuba e no Brasil a abolição da escravatura só ocorreu no final da década de 1880.

O declínio do Império Otomano ao longo dos séculos xviii e xix decorreu não só da expansão russa, mas também dos processos de emancipação dos sérvios, dos gregos, dos búlgaros e dos albaneses, que implicaram sucessivas revoltas anuladas por uma repressão sangrenta. A independência grega foi reconhecida em 1830, após dez anos de uma guerra que acabou por envolver os poderes europeus; os sérvios, que tinham criado uma situação de independência de facto em 1803–1813, precisaram de sucessivas revoltas e de períodos de autonomia até obterem a independência em 1878. Os búlgaros obtiveram a institucionalização da autonomia em 1878, até declararem a independência formal em 1908, aproveitando um momento de fraqueza do Império Otomano. A independência da Albânia foi declarada em 1912, no âmbito das Guerras dos Balcãs, mas boa parte do território reclamado não foi aceite pelas potências europeias; por pressão da Rússia, o Kosovo foi entregue à Sérvia.

Importa salientar que esta guerra permanente, resultante da expansão russa e da libertação nacional nos Balcãs, implicou vastos movimentos de população: o Império Otomano foi reduzido de três milhões de quilómetros quadrados em 1800 para 1,3 milhões em 1913, tendo recebido entre seis e sete milhões de refugiados muçulmanos durante esse período, oriundos sobretudo do mar Negro e do Cáucaso. Entretanto, a repressão otomana produziu dezenas de milhares de mortos e centenas de milhares de refugiados nos territórios reclamados pelas diversas nações subjugadas. Resultou deste processo de sucessiva descolonização a concentração das atenções políticas nos territórios da Anatólia e da Trácia por parte dos nacionalistas turcos.

A Primeira Guerra Mundial completou a desagregação do Império Otomano e precipitou a implosão do Império Austro-Húngaro. A derrota da Alemanha conduziu à partilha das suas colónias em África e na Ásia por Inglaterra (ou pelos países da Commonwealth, como a Austrália e a África do Sul) e por França, não tendo havido uma alteração significativa do estatuto desses territórios. A derrota do Império Austro-Húngaro foi decisiva para o nascimento de novos países, cujas nacionalidades reclamavam a autonomização política há muito tempo: a Hungria, a Roménia, a Checoslováquia e a Jugoslávia, união dos eslavos do Sul, criada em 1918 e recriada em 1946 com a Sérvia, a Croácia, a Eslovénia, a Bósnia, a Macedónia e Montenegro. Os territórios do Tirol do Sul, de Trieste e da Ístria foram igualmente perdidos, e a Áustria ficou reduzida às dimensões atuais. A Europa Ocidental foi igualmente tocada pelo processo de descolonização, com a independência da Irlanda em 1922, após séculos de luta pela libertação. Os seis condados do Norte, então dominados pelos descendentes dos colonos protestantes, ainda permanecem no Reino Unido, mas conheceram um período de guerra civil; o estatuto político da região ainda não está resolvido.

O Império Otomano, que já fora reduzido ao longo do século xix, perdeu todos os territórios a sul e a leste da Anatólia durante e após a Primeira Guerra Mundial, e correu o risco de ver a própria Anatólia dividida, não fosse a reação nacionalista dirigida por Kemal Ataturk em 1919–1922. A dinastia Al Saud, que iniciara um processo de conquista e agregação de territórios na Península Arábica nas primeiras décadas do século xx, rompeu a relação de dependência com o Império Otomano em 1918. A Liga das Nações legitimou o mandato de França no Líbano e na Síria (desenhados nesse período), que só se tornaram independentes depois da Segunda Guerra Mundial, enquanto o Reino Unido ficou com mandato sobre o Iraque, que se tornou independente em 1932.

O final da Segunda Guerra Mundial, que envolveu tropas recrutadas nas colónias europeias, descontentes com a sua condição subordinada, criou finalmente um ambiente conducente ao princípio da autodeterminação dos povos. Este princípio fora formalmente apoiado por Woodrow Wilson em 1917, mas o presidente americano não considerava que os africanos, por exemplo, estivessem em condições de o exercer. A adoção do mesmo princípio por Lenine levou a diferentes consequências na União Soviética, pois adaptava-se bem à rejeição do passado imperial czarista baseado na russificação. A estratégia de reconstituição do império no quadro soviético passou pela valorização e pelo apoio das nacionalidades na década de 1920 e em parte da década seguinte, em troca de lealdade para com o centro político. A partir de 1936 a política das nacionalidades de Estaline tornou-se mais rígida, agravada pelo Pacto Molotov-Ribbentrop de 1939, que justificou a invasão russa das repúblicas bálticas, de parte da Polónia e das regiões ocidentais da Ucrânia pertencentes à Polónia e à Roménia em 1939–1940. Durante a guerra, certas etnias passaram a estar sob suspeita; em 1944, os tártaros da Crimeia foram objeto de emigração forçada para a Ásia Central. A política anterior de relativa autonomia para as repúblicas federadas foi retomada por Krutchov, mas as tensões políticas não deixaram de se fazer sentir.

Nesta conjuntura, embora a violência da descolonização se tenha imposto por via da resistência das potências coloniais, verificou-se uma interessante alternativa. A estratégia de desobediência civil não violenta, concretizada pelo não-pagamento de impostos, pelo incumprimento da lei e pela recusa de qualquer serviço ao governo, fora promovida pelo anarquista cristão Tolstói (1828–1910). A base do raciocínio encontra-se no ensaio de Étienne de la Boétie (1530–1563) sobre a servidão voluntária, onde o autor considera que todos os regimes despóticos necessitam da colaboração das populações dominadas. Se essas populações recusassem qualquer forma de serviço ou de cumprimento da lei, o despotismo acabaria por cair. A aplicação desta estratégia no caso da Rússia revelou-se inadequada, mas a sua transmissão a Gandhi, que se correspondeu com Tolstói, acabou por se revelar frutífera. A prática da desobediência não violenta no Sul da Ásia não trouxe resultados imediatos, mas a participação de tropas coloniais na Segunda Guerra Mundial e a onda de emancipação dos povos coloniais que se seguiu tornaram a posição britânica insustentável. A utilização da mesma estratégia da desobediência civil não violenta advogada por Martin Luther King nos Estados Unidos na luta pelos direitos civis da população afro-americana acabou igualmente por dar os seus frutos na década de 1960, face ao agravamento da Guerra Fria e ao incontornável argumento de os líderes do chamado mundo livre oprimirem a sua própria população.

Esta estratégia tinha dois pressupostos: a firmeza da ação coletiva de desobediência e a sensibilidade de parte da maioria opressora ou do poder colonial. Tratava-se de envergonhar a parte dominante com um comportamento que não podia ser acusado de violento e que expunha as contradições do sistema de valores dos próprios opressores. Nos dois casos aqui mencionados, tanto a população norte-americana como o poder britânico tinham saído de uma guerra contra o imperialismo nazifascista, virando-se em seguida contra a emergência de regimes comunistas. Os valores de democracia e tolerância da suposta sociedade livre eram incompatíveis com a perpetuação de racismo e colonialismo, ou seja, com a opressão e a gestão de sociedades contra a vontade indígena. O próprio conceito de sociedade colonial governada por colonizadores alheios às populações locais tornara-se obsoleto.

O direito dos povos à autodeterminação e à emancipação fora imposto pela Revolução Haitiana e difundido em diversos contextos da luta dos afro-americanos. Os congressos pan-africanos organizados desde o final do século xix, onde William Du Bois e outros ativistas afro-americanos participaram com os seus colegas africanos, reiteraram o mesmo princípio, no que foram acompanhados pelos congressos pan-asiáticos e pan-árabes. Estes congressos criaram um quadro de discussão e de difusão de ideias que favoreceram a criação de partidos anticolonialistas, embora o caso da Ásia fosse mais complexo, dada a desconfiança face ao Japão, cujos projetos imperiais próprios começaram a projetar-se na Coreia e em seguida na China, para se alargarem ao Sudeste Asiático durante a Segunda Guerra Mundial. Seria só na década de 1950, particularmente com a conferência de Bandung, que o Movimento dos Não Alinhados, dirigido pela Índia, pela Indonésia e pela Jugoslávia, se desenvolveu como terceira via face aos dois blocos (comunista e capitalista) da Guerra Fria. Esse movimento reforçou o direito de autodeterminação dos povos e criou condições para o seu apoio político e financeiro.

A resistência do poder colonial britânico, que aceitara a derrota na Ásia do Sul mas tentara manter posições em África, conduziu a conflitos armados, sobretudo no caso do Quénia, onde a chamada Revolta dos Mau-Mau (1952–1956) suscitou uma feroz repressão. A situação na Indonésia foi igualmente grave do ponto de vista humanitário. À declaração de independência, em 1945, seguiu-se a guerra de recuperação dos holandeses, em 1946–1949, apoiada pelos britânicos. O número de mortos aumentou exponencialmente, mas a determinação dos indonésios acabou por se impor. A posição de França foi igual- mente violenta na resistência ao processo de independência do Vietname. A derrota final dos franceses em 1954 em Dien Bien Phu selou a retirada francesa do Vietname, embora tivessem deixado um Estado suportado pelo Ocidente no Sul.

A história colonial de França conheceu outro desastre imediatamente a seguir com a Guerra da Argélia, em 1954–1962. Ali viviam cerca de 1,5 milhões de europeus. A recusa de negociação conduziu a uma escalada do conflito contra o movimento de libertação argelino que assumiu proporções de uma guerra não declarada com a população civil. Foi nesse conflito que os direitos humanos assumiram uma feição decisiva, pois os nacionalistas denunciaram todos os atentados franceses contra a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. As execuções de presos, a detenção de cidadãos sem culpa formada, a tortura infligida aos detidos e o assassínio arbitrário de homens e mulheres passaram a fazer parte das denúncias contra as práticas das autoridades coloniais.

Não podia deixar de se fazer o paralelo com as práticas nazis na Segunda Guerra Mundial, ampliado pelos escritos sobre a psicopatologia colonial de Frantz Fanon, um psiquiatra originário da Martinica que viveu na Argélia como médico e apoiou a Revolução Argelina. Neste conflito de valores, os ideais humanitários e de defesa de direitos foram usados de forma extensiva pelos argelinos. Foi o general De Gaule quem pôs um ponto final nas atrocidades coloniais, dada a impossibilidade de sustentar um conflito destituído de uma base de valores e com uma lógica política contrária aos ideais democráticos da república.

Entretanto, no Vietname, a república democrática criada no Norte procurava a unificação do país, tendo a guerrilha Viet Minh estendido a sua ação para o Sul, o que motivou a intervenção dos Estados Unidos em 1965. Tratou-se do maior confronto entre os dois blocos (comunista e capitalista) a seguir à Guerra da Coreia. A cobertura jornalística do conflito acabou por expor a prática de crimes de guerra por parte dos americanos, com a utilização de napalm e desfolhantes para arrasar a floresta e prevenir a guerrilha, além das detenções e execuções arbitrárias. O bombardeamento regular das cidades do Norte pelos navios de guerra americanos completava o quadro neo-colonial de intervenção que não conseguiu subjugar a vontade vietnamita. A opinião pública americana rejeitou a Guerra do Vietname, contribuindo para acabar com o conflito em 1973. Dois anos mais tarde, o país seria unificado.

A primeira e última potência colonial europeia, Portugal, vivia sob ditadura, o que tornava inviável o conflito entre valores democráticos na metrópole e práticas violentas nas colónias que atormentava a opinião pública em Inglaterra, em França, nos Países Baixos ou na Bélgica. A censura estava instalada e a crítica da política colonial não tinha condições para se manifestar em público. O primeiro aviso veio da União Indiana, que decidiu ocupar as colónias portuguesas de Goa, Damão e Diu, face à recusa de negociação do regime de Salazar. A ação dos movimentos de libertação em Angola, na Guiné e em Moçambique teve como resposta uma guerra colonial prolongada, de 1961 a 1974, que se saldou em dez mil militares portugueses mortos, em nove mil desertores, em 45 mil guerrilheiros e indígenas mortos, e em mais de meio milhão de refugiados. A guerra conduziu à Revolução do 25 de Abril de 1974 em Portugal e à independência das colónias.

Estes processos de descolonização permitiram a criação de mais de cem novos países, que passaram a fazer parte das Nações Unidas, respondendo ao princípio de autodeterminação dos povos. Os custos foram pesados, com o sacrifício de muitas vidas indígenas, a migração de populações, a perda de vidas das tropas coloniais e o regresso da esmagadora maioria das populações colonizadoras às metrópoles. Nalguns casos essas populações não tinham já qualquer relação familiar no país de origem, como os europeus de terceira geração na Argélia, enquanto noutros, como no caso português, tratava-se em boa parte da primeira geração, encorajada pelo regime salazarista a emigrar para as colónias quando o processo de descolonização de outros poderes europeus estava na fase final.

A aceitação da independência das colónias não foi linear. O imperialismo económico que sucedeu ao imperialismo político motivou uma série de intervenções nos novos países independentes, como foi o caso do golpe militar no Irão em 1953, inspirado pelos serviços secretos norte-americanos e ingleses, destinado a reverter a nacionalização da indústria do petróleo. A mesma lógica ocorreu em 1956 com a ocupação do Canal de Suez por ingleses, franceses e israelitas, que procuravam rever- ter a nacionalização da companhia exploradora do canal e afastar o presidente egípcio Nasser. A pressão internacional levou desta vez a uma retirada humilhante. A invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos em 2001 teve o propósito de afastar do poder os Talibãs, acusados de envolvimento nos ataques a Nova Iorque e Washington. A retirada em 2021 expôs a inutilidade do projeto, com enormes perdas humanas e meios financeiros. Em 2003, a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, de novo em coligação, sob pretexto da ameaça de armas de destruição maciça (nunca encontradas) resultou no descrédito de intervenções humanitárias, ensaiadas anteriormente no Kosovo em 1999 e na Líbia em 2011.

A implosão da União Soviética trouxe consigo uma nova vaga de descolonização. Neste caso tratava-se de um vasto império territorial contínuo, envolvendo a Europa Oriental e o Norte da Ásia até ao Pacífico, com o controlo direto de uma enorme diversidade de populações locais integradas pela centralidade de Moscovo e o controlo indireto dos países da Europa Oriental que tinham sido ocupados pelas tropas russas no final da Segunda Guerra Mundial. Esse controlo indireto esteve patente na repressão das revoltas populares na República Democrática da Alemanha em 1953, na Hungria em 1956 e na Checoslováquia em 1968. A tentativa de alargamento do Império Soviético nas décadas de 1970 e 1980, que levou à intervenção militar no Afeganistão em 1979–1989, provou ser fatal. Os recursos do regime revelaram-se diminutos para o esforço financeiro e humano imposto. O regime comunista colapsou, o que conduziu à desintegração do império.

Foi fulminante a recuperação da independência dos países da Europa de Leste após a Queda do Muro de Berlim em 1989, começando com as repúblicas bálticas da Lituânia, da Letónia e da Estónia. Os restantes países libertaram-se rapidamente da dependência da União Soviética, registando-se a unificação da Alemanha com o desaparecimento da República Democrática Alemã, enquanto a Polónia, a Checoslováquia, a Hungria, a Roménia, a Bulgária e a Jugoslávia romperam com o regime comunista e encetaram a transformação institucional por via representativa. A Albânia, que passara a ser dependente da China, aproveitou a situação internacional favorável para romper igualmente com o regime comunista. A Jugoslávia (ou a confederação dos eslavos do Sul) acabou por implodir, com uma pesada guerra civil, marcada por sucessivos massacres de populações que levaram à discutível intervenção militar da NATO. Os países emergentes, a Eslovénia, a Croácia, a Bósnia, a Sérvia, Montenegro e Macedónia do Norte, encetaram alterações institucionais profundas. Todos estes países aderiram à NATO, com a exceção da Sérvia, tendo obtido igualmente a integração na União Europeia ou encontrando-se em processo de adesão.

A desintegração da União Soviética em 1991 revelou-se complicada. A Bielorrússia, a Ucrânia, a Geórgia, a Arménia, o Azerbaijão, o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tajiquistão, o Turquemenistão e o Uzbequistão declararam independência, que foi reconhecida pela Rússia por tratados. Contudo, a transformação institucional não foi imediata na maioria destes países. Emergiram conflitos internos, assim como guerras por territórios em disputa, como aconteceu entre a Arménia e o Azerbaijão. Ambos os países recorreram à Rússia para dirimir o conflito, criando uma nova relação de dependência. Noutros casos, conflitos internos provocados por revoltas favoráveis à democratização levaram ao apelo para a intervenção direta militar russa, como aconteceu na Bielorrússia e no Cazaquistão. A tentativa russa de criar uma união económica com estes países não foi completamente bem-sucedida, dada a emergência de uma opinião pública maioritariamente favorável a uma aproximação à União Europeia na Bielorrússia e na Ucrânia. A tentativa de independência da Chechénia sofreu uma repressão brutal em 1994–1996 e novamente em 1999–2009, com o assassinato de sucessivos presidentes eleitos. A situação na Geórgia não chegou ao mesmo ponto de invasão total e prolongada, mas as regiões separatistas da Abecásia e da Ossétia do Sul, apoiadas pela intervenção militar russa em 2008, expulsaram centenas de milhares de georgianos num processo de limpeza étnica.

A Ucrânia escapou progressivamente ao controlo da Rússia, dada a proximidade da Europa Ocidental e à prática de eleições num quadro institucional relativamente representativo. A crescente perceção da Rússia como um país hostil levou a uma campanha interna favorável à adesão à União Europeia e à NATO. A rejeição de um tratado negociado com a União Europeia em 2013 por pressão da Rússia levou à Revolta de Maidan, que provocou novas eleições. A invasão da Crimeia pela Rússia em 2014 foi seguida pelo separatismo no Donbass. A invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022, em violação de todos os tratados internacionais assinados pela própria Rússia, é a última sequela de um processo de descolonização que não foi aceite pelo atual regime russo. De novo encontramos o ciclo de guerra imposta a populações civis, com enormes perdas de vidas humanas, crimes de guerra (cidades arrasadas, assassínio de civis, violação de mulheres, corredores humanitários atacados, rapto e deportação de dezenas de milhares de pessoas, torturadas e detidas em campos de concentração) e a destruição sistemática das infraestruturas do país. As consequências climáticas da guerra fazem parte de um longo processo de contaminação do meio ambiente desde os tempos soviéticos, agora agravado pela ameaça de recurso ao arsenal nuclear.

Completamos esta secção com uma referência à China, um vasto território cujas populações foram integradas ao longo de milénios, embora um terço do atual território tenha resultado da expansão no século xviii. O caso da província de Xinjiang, conquistada nesse período, ainda está longe de ser resolvido, com a colocação de parte da população uigure em campos de trabalho e a migração de chineses de outras regiões para alterar a sua composição étnica. A Mongólia reclamou a independência em 1911, no período da revolta republicana na China, tendo reafirmado essa independência em 1924, sob proteção da União Soviética, estatuto que mantém até agora. Sorte diferente teve o Tibete, que igualmente proclamou a independência em 1911 mas acabou por ser anexado em 1950, no seguimento da consolidação do poder pelo regime comunista na China.

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pp 71 - 86 do livro  Direitos Humanos, de Francisco Bethencourt, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023

Sinopse: Todos os seres humanos têm direitos inalienáveis. Esta ideia foi reconhecida pelos países fundadores das Nações Unidas a seguir à Segunda Guerra, tendo sido consagrada pela Declaração Universal de 1948. Desde então, estes direitos têm sido alargados e, em simultâneo, violados todos os dias em todo o mundo. É esta tensão que se encontra no centro deste livro.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 abre o estudo dos direitos civis com um olhar atento à herança das divisões da humanidade. O impacto da descolonização é avaliado, bem como das migrações internacionais, incluindo direito de asilo. Os direitos económicos e sociais são abordados na parte final, tendo sido incluídos os direitos à privacidade e à integridade individual na era das redes sociais. Os direitos ambientais completam este ensaio.

Mais infos sobre o livro.

por Francisco Bethencourt
A ler | 17 Junho 2023 | descolonização, Direitos Humanos