História, identidade e afro-descendência
Imagens de Cláudio Rafael
Introdução
A inclusão do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos de ensino (público) brasileiro, é uma amostra de amadurecimento político do Estado e, por consequência, da sociedade, ao reconhecer oficialmente aquilo que já faz parte de uma realidade patente no passado e presente do Brasil. Quando o padre António Vieira (1608-1697) afirmou que “o Brasil tem a alma em África e o corpo na América”, capturou o significado, desde há séculos, do quotidiano da cultura brasileira, cujo imaginário está impregnado de África. Não foi por acaso que Vinícius de Moraes indagou as raízes africanas da Negritude (que podemos definir como a soma de todos os valores africanos), e se embrenhou nos ritos mágicos e de ancestralidade do Candomblé.
Porém, o contrário também sucede: quem como eu nasceu em Angola, teve sempre por perto o Brasil na música, poesia, literatura, tudo o que o vento trazia do outro lado do mar. “Para o angolano o samba foi e é sempre seu e não surpreende que o Chico Buarque nos cante morena de Angola (ou será mulata?), que traz o chocalho amarrado na canela … na Catumbela.”1
A afirmação de que Angola e o Brasil partilham uma história de irmandade não surge por sentimentalismo: as marcas estão em todo o lado, cá e lá, foram e voltaram, tornando-se mais do que histórias dos mais-velhos. São registos históricos, remontam ao tempo em que o Capitão Diogo Cão, transmontano dos duros, chega ao Reino do Congo no longínquo ano de 1485.
Não é por acaso que o poeta e antropólogo angolano Ruy Duarte de Carvalho se aventurou de balsa, de carro e a pé, pelos sertões afora, ao longo do Rio São Francisco, no Brasil, procurando o filão de ouro das paisagens de João Guimarães Rosa. Sobre o muito que liga Angola ao Brasil, inquiriu sobre quem teriam sido essas tropas, compostas maioritariamente por índios e negros, que acompanharam o ibérico-brasileiro Salvador Correia de Sá na missão de recuperar Luanda e Benguela dos holandeses, acabadinhos de ser expulsos do Brasil (1654). Ficaram os tais índios e negros em Angola, montando casa e família? No processo, Ruy Duarte se lembra dos que vieram mais tarde, os famosos colonos de Pernambuco que se estabeleceram no sul de Angola, não mencionando os escravos e degredados embarcados de um lado para o outro. No embalo, Ruy Duarte questiona o que andou fazendo o famoso explorador da África negra, Sir Richard Burton, pelo rio São Francisco, quando todos o sabiam obcecado pela origem do rio Nilo no coração de África. Queria Ruy Duarte de Carvalho perceber melhor o Brasil para melhor perceber Angola contemporânea e cada etapa o relegou de volta ao passado, daí a Portugal dois passos, daí aos holandeses três passos, ao mundo global, passado e presente, o Brasil, de novo Angola, tudo isso num vaivém de balsas.
Asseverar mais o quê? - Que a história do Brasil passa por África, Angola, por Portugal e pelo resto da Europa e do mundo.
História versus Identidade
Quem se debruça sobre a história da cultura afro-brasileira traz inevitavelmente na rede o espólio de uma descendência africana, a qual aponta para esquemas históricos complexos a nível local e internacional, impulsionados por confrontos sociopolíticos e económicos, lutas por hegemonia das principais potências europeias naquilo que foi a expansão colonial no decorrer da segunda metade do último milénio. Dito isto (uma boca cheia de palavras), os que moldaram o barro da cultura afro-brasileira, por outras palavras, os sujeitos dessa história, não foram apenas os negros, também os índios e povos de outras origens que, “submetidos e colonizados, foram rebeldes e construtores de um diálogo e de uma interacção que explicam a multiplicidade e a unidade do Brasil de hoje.”2
A árdua tarefa de investigar, coleccionar, categorizar, debater e promover o conhecimento da cultura afro-brasileira está bem entregue a todos aqueles que, por um sentido de justiça e de verdade, lutam por uma mudança nas versões da história que conotam a dádiva da afro–descendência a preceitos ideológicos de racismo, exclusão socioeconómica e invisibilidade política, por tal, separando, esvaziando, algemando ou domesticando o vasto leque de relações sociais, para impor ideologias dominantes. No entanto, esses mesmos pensadores concordarão que não se pode entender o Brasil sem entender África, especialmente desde o momento mais ou menos exacto da história que Ruy Duarte de Carvalho denomina de “período inaugural no quadro da expansão ocidental em que tanto o Brasil, como Angola (e tantos outros países de um lado e outro do oceano Atlântico) emergem como terra incógnita para as principais potências do ocidente que as medem, avaliam e decifram”3, pondo por escrito preto no branco, o processo de pacificação (militar) e ordenamento administrativo e territorial para melhor dominar.
Antes dos países das Américas e de África adquirirem o estatuto de identidades nacionais e políticas modernas e autónomas, os sujeitos da História sempre tiveram que lidar com a tensão inerente ao atributo de serem dominados, tendo que rectificar e recontar as inexactidões criadas à volta da vontade imperativa subjacente de remeter o Outro para as periferias da História, do progresso e da civilização. As falsidades contidas nessa história nem sempre saltam à vista, mesmo com lupa. A história é um sobrepor aleatório e reveste-se de argumentos enganadores. É somente no significado profundo de determinados actos e nos seus desenlaces que a verdade se revela, porque mexe com a consciência humana. Por vezes, o caminho da história segue outro curso. Versões alternativas são transmitidas verbalmente através da música, literatura, pela arte e cultura. Mas há história (como se diz por aí) e estória (como se diz em Angola), há o significado que se expressa e se transmite tanto através da escrita, como verbalmente através da cultura preservada por gerações na memória colectiva. Fora da narrativa oficial documentada, a história (ou a estória) recorre automaticamente ao mito para fácil memorização e preservação. Mitos são metáforas sobre a vida resguardados por cada povo que assim procura dar conteúdo e resolução aos mais terríveis dilemas com que o ser humano se confronta. Cada mito tem o seu herói lutando pela liberdade, pela dignidade, enfim, por uma vida melhor. É nestes dois extremos que a verdade se manifesta, por um lado, na memória colectiva verbal dos seus actores (activos e passivos) e, por outro, no discurso dominante dos Obreiros da História.
Nesta perspectiva, centro-me em alguns aspectos da história comum iniciada pela expansão ocidental. Pretendo abordar o sujeito da história na sua relação com identidade e, por derivação, cultura e linguagem. Pretendo expor alguns agravos que persistem, e tratar um capítulo importante da história africana, nomeadamente a escravatura. Nessa ordem de ideias, serão abordados aspectos específicos que tanto nos podem levar a África, como ao Brasil, a Portugal ou Angola, o passado e o presente.
Identidade africana no espaço da lusofonia
No limiar do século XXI as noções de espaço e território vêm-se diluindo cada vez mais e as fronteiras reais vão deixando de corresponder àquilo que as vozes representantes de Estados, políticos e elites formadoras da opinião pública gostariam de enclausurar como expressões de identidade política geograficamente predeterminadas. Ultimamente, a antiga potência colonial, a dita que deu mundos ao mundo, tem vindo a promover o termo Lusofonia, que atribui à língua uma mundividência inerente, onde se inserem todos os países de expressão portuguesa, unindo as duas margens do oceano Atlântico e alcançando o Índico, criando uma noção de delimitação imaginária geográfica de poder e de identidade, tão artificial que tem sido duramente criticada e descrita como um novo mito do “ser português”.
Ora vejamos, “supõe-se que o português em contacto com a africana escrava, se adoçasse, mais do que já é na sua versão caseira, para se tornar esse ritmo aberto e sensual, indolente, do português do Brasil ou o tom nostálgico de Cabo Verde.”4
No contexto da Lusofonia, a narrativa de uma certa história da colonização portuguesa protela um imaginário imperial, assente numa ideia de excepção do colonialismo português, no qual este na sua condição periférica de fraqueza perante as restantes potências europeias foi mais o colonizador colonizado, figura ambígua, intermediária e crioulizada, propensa em aproximar os povos e dentro da qual as suas acções, mais do que pela cruz ou a espada, se centraram no sexo5. Invocando o seu carácter inerente de miscigenação, as relações entre portugueses e as diferentes comunidades com quem conviveram, pressupõem-se, no contexto da Lusofonia, terem sido dirimidas de conflito e tensões. Fortes foram as marcas deixadas por uma convivência histórica de 500 anos em que houve obviamente miscegenação e mútuo contágio cultural, sobretudo pela implantação da língua portuguesa (com toda a espécie de transformações) e tantas outras questões, sendo bem patente a diferenciação entre o mundo lusófono e o hispânico. Ninguém consegue explicar o que é, todos o sentem em maior ou menor grau e o admitem em situações livres, despolitizadas e fraternas mas, publicamente, as tensões e as feridas ainda não estão completamente saradas (alguma vez estarão?) e vêm ao de cima na palavra Lusofonia6.
Origens do Fado
Na antiga metrópole, o Fado, consumido com um produto tipicamente português, tem-se vindo a notabilizar - tal como o vinho do Porto - em termos de padrão nacional. O Fado é avidamente apreciado por turistas, mas também por portugueses. Diz-se que o Fado é a expressão da alma portuguesa, a saudade, a dor da nostalgia, a quinta-essência da típica melancolia. Porém, poucos sabem ou comentam o facto de que este Fado foi completamente destituído das suas origens afro-brasileiras (ao contrário do Brasil, em que o Samba, apesar de ser “branco na poesia, é negro demais no coração”, diz o saudoso poeta Vinicius de Moraes.)
No século XVIII, segundo relatos da época, o Lundum, um estilo de dança e canto oriundo do Brasil, foi introduzido em Portugal por escravos de ‘brasileiros’7 , marujos e crioulos. Este estilo de dança, com elementos da Fofa portuguesa e do Fandango de Castela, mas dançando-se em roda típica dos africanos e genericamente denominada por portugueses como ‘batuques’, era apontado, a meados do século XVIII, como a dança nacional, de tal forma estava incorporada no gosto português. Se a este estilo de dança se associavam elementos da coreografia geral do Fandango de Castela (no sapateado e castanholas), eram mantidos os elementos principais das danças populares brasileiras caracterizadas pelas umbigadas e maneio dos quadris dos dançarinos, típicos do Lundum, considerado pelos portugueses a dança dos brancos e pardos do Brasil. Ao imputar a dança como sendo oriunda de brancos e pardos, já o Lundum se afastava das suas raízes africanas. No raiar do século XIX quando uma nova dança é baptizada no Rio de Janeiro com o nome de Fado (que fundira o Lundum com a Fofa), gradualmente se vão retirando os elementos de dança afro-brasileiros, conferindo-se maior ênfase aos intervalos para cantos de pensamento poético. A partir de 1840, a antiga criação de negros e mulatos brasileiros passa definitivamente para os brancos portugueses, numa ascensão rápida que levaria o Fado para a sua versão de cantiga de poesia em tascas da Madragoa, tabernas da Alfama e da Mouraria e zonas de meretrício, frequentada pelas camadas mais baixas da sociedade para a ribalta de salões de concerto da burguesia8 , até se tornar padrão da identidade portuguesa (branca).
Este exemplo de ‘herança comum’, uma língua, um passado, foi metamorfoseado e o ‘comum’ apagado dos rastos da herança africana, por conveniência histórica, pois, no contexto da abolição da escravatura e, mais tarde, da Conferência de Berlim, era necessário Portugal afirmar-se como centro e origem de si mesmo, tracejando os contornos da negação da sua própria identidade.
O comércio atlântico de escravos
Qualquer abordagem à Histórica africana tem de contemplar o tráfico atlântico de escravos, pelo seu impacto negativo no desenvolvimento do continente, mas acima de tudo pela sua conotação moral e emocional, revertendo em barbárie a trajectória imperialista europeia. Embora historiadores reconheçam as dificuldades em oferecer um dado exacto sobre o número de africanos transportados e vendidos nas Américas, existem estimativas moderadas com base em documentos e cálculos demográficos que apontam para onze a doze milhões o número de escravos comercializados entre 1450 e 1900, com uma média anual de 3 milhões entre 1700 e 1900 (embora há quem aponte para acima de trinta milhões o número total de escravos comercializados ao longo de trezentos anos.) No século XVI, no auge da produção de açúcar no Brasil, 80 por cento dos escravos comercializados tinham como destino esse país. Nos séculos posteriores, apenas 38 por cento iam para o Brasil, 42 por cento destinavam-se às Caraíbas e 5 por cento à América do Norte9. No que se refere ao impacto do tráfico atlântico de escravos, alguns historiadores calculam como cem milhões o número de africanos abrangidos pelo impacto do comércio esclavagista, tendo em conta o continente na sua globalidade e as consequências sociopolíticas e económicas.
A África subsaariana, antes do início do tráfico de escravos, sobrevivia relativamente isolada do resto do mundo em condições geofísicas difíceis e mercados limitados por dificuldades de transporte, factores que restringiram a inovação tecnológica e, subsequentemente, obrigaram a população à auto-suficiência. Para tal, foram criados fundamentos sociopolíticos e económicos que ofereciam o máximo de possibilidades de sobrevivência da população. Este cenário foi severamente alterado com o evento da escravatura. Se o continente tinha, antes do século XV, um atraso tecnológico relativo, o fosso alargou-se e o seu desenvolvimento foi paralisado, retardando inexoravelmente o desenvolvimento de um mercado de matérias-primas interno. Embora os aspectos demográficos sejam difíceis de calcular, documentos comprovam o despovoamento de Angola devido ao tráfico esclavagista, uma situação agravada pela epidemia de varíola documentada em 1625-8, doença que, tal como a sífilis, tuberculose e pneumonia, foi introduzida em África pelos europeus. Estas epidemias acompanhavam a escassez alimentar, derivada do despovoamento, afectando negativamente o crescimento natural da população. Um recenseamento da população nos territórios portugueses de Angola, efectuado em 1777-8, indicava a existência do dobro do número de mulheres adultas em relação aos homens, devido à vasta maioria destes terem sido vendidos como escravos.
As consequências do tráfico foram de tal ordem que inibiram o crescimento demográfico do continente durante duzentos anos, paralisaram o seu progresso socioeconómico, estimularam o aparecimento de novas formas de organização sociopolítica, amplificando a prática da escravatura dentro do continente, brutalizando o processo, ao intensificar os níveis de sofrimento humano. Na leitura deste fenómeno deparamo-nos frequentemente com o enfatizar de que o comércio de escravos nunca poderia ter tido lugar sem a conivência (lucrativa) dos chefes africanos para quem a escravatura era já prática corrente. Sendo esta uma circunstância permeada da sua verdade, anote-se que, na cultura africana, os escravos eram maioritariamente elementos de tribos derrotadas durante as guerras, ou indivíduos que tinham infringido as regras do costume local (crimes de adultério, assassínio, furto, etc.). Em Angola, os ‘filhos’ do soba (chefe tradicional) eram tanto os seus filhos naturais, como os súbditos e os escravos10. A aquisição da liberdade era possibilitada por acções de mérito, não sendo impedida a mobilidade social ou económica. O fundador do reino do Mali, Sundjata, que governou entre 1230 e 1255, foi um escravo da corte real do império do Gana, conquistou vastas áreas de território do Reino Soninque do Gana, centro de comercialização do ouro, criando os alicerces para a criação do estado de Mali, ao se tornar um dos reis mais poderosos da época11.
Se o comércio dependia da vontade dos africanos (chefes ou intermediários) em vender escravos, o sistema de obtenção de escravos (prisioneiros de guerras ou cativos de incursões a tribos vizinhos, criminosos ou os mais vulneráveis da comunidade), encontrou a sua maior resistência por parte de grupos sócio e politicamente não organizados, em forma de Estado. Interessante notar que, em português, estas comunidades sem poder central, ou chefes, são denominados de “primitivos”, cuja conotação é pejorativa, enquanto que em inglês tais estados se classificam de stateless e o seu significado implica que os membros destas sociedades têm um sentido amplo de mobilidade territorial e diferenciação social, sendo frequentemente sociedades igualitárias. Este tipo de comunidade raramente se interessou pelo comércio de escravos, mas foi sempre vítima de incursões de tribos vizinhas, intermediários e negreiros. Segundo documentação, eram os indivíduos provenientes deste tipo de comunidades quem mais resistiam ao embarque, tentando o suicídio antes ou a sublevação durante o trajecto marítimo ou, uma vez chegados ao destino final, eram quem liderava as revoltas de escravos12.
Importa por fim referir as consequências sociopolíticas do comércio de escravos, que causou a desintegração de estados africanos, como por exemplo no actual Senegal, o estado Jolof e na Nigéria, o estado Yoruba. Em Angola, o Reino do Congo perdurou desde o primeiro encontro com os portugueses no século XV, com a adopção do cristianismo, hábitos e costumes europeus, troca de correspondência entre os diversos reis do Congo e as suas contrapartes da realeza portuguesa, consolidando uma forte aliança com o poder português que interveio em disputas locais, mas não sobreviveu ao século XVI. Em 1568, São Salvador, a capital do reino do Congo foi saqueada por uma tribo rival , sendo subsequentemente obliterado.
O comércio esclavagista causou também o aparecimento de novos estados de carácter mercantilista, como no caso de Angola no início do século XVI, quando se estabeleceu o reino Ngondo, inicialmente tentando não se envolver no comércio de escravos. Quando Nzinga Mbandi Ngola (1581-1663) ascende ao poder, negoceia com os portugueses um pacto de não agressão a troco da venda regular de escravos e a conversão ao Cristianismo, edificando um estado mercantilista que se tornou uma base importante de exportação de escravos no tráfico Atlântico. Na literatura colonial e pós-colonial, a Rainha Nzinga torna-se uma heroína de resistência quando repudia o pacto com os portugueses, renunciando ao Cristianismo, quando estes iniciam trocas comerciais com uma tribo rival. As tropas da Rainha ajudam os holandeses na ocupação de Luanda entre 1641 e 1648. “Porém, em carta dirigida ao Governador de Luanda e datada de 1655, a Rainha Nzinga, ou Dona Ana Sousa, como consta no seu nome de baptismo, queixa-se das muitas falsas promessas do Rei português e das autoridades em Luanda, que a sujeitam a constantes ataques, obrigando-a a viver como foragida, sem a sua gente poder estabelecer e permitir o nascimento de crianças. Dona Ana Sousa acaba por assinar um tratado de paz com os portugueses em 1659, que lhe permitiu reinar com uma certa paz até à data da sua morte, a 17 de Dezembro de 1663, sendo a sua devoção à fé Cristã nos seus últimos de vida exemplar.”13 A corte de Ngondo é definitivamente destruída em 1671, sendo no século XIX não mais do que um lugar de degredo reservado para os piores criminosos da metrópole14.
A sustentação do comércio de escravos era tentadora e a elite africana reinante aceitou com relutância a sua abolição. Em troca de escravos, os africanos recebiam fuzis e pólvora, tecidos, álcool, contas de vidro e tabaco, se os últimos artigos considerados de luxo conferiam prestígio a quem os possuísse, foram as armas de fabrico europeu o factor mais determinante para a manutenção do poder local, acirrando disputas e ódios étnicos e tribais no processo de surgimento de novas configurações políticas. Este é um quadro que persiste ainda nos dias de hoje em África. Recentes guerras em países africanos como a Libéria, Serra Leoa, Ruanda, Sul do Sudão, Angola, Congo Democrático, onde o acesso incessante a armamento sofisticado (europeu, americano, russo) a troco de recursos minerais não só prolongou os conflitos, como reajustou ou substituiu as configurações políticas locais, silenciando a multiplicidade de vozes imprescindíveis na formação de Estados-nação15. No caso de Angola, de todo século XIX ao início do século XX, o território foi terra de conquista em que as armas desempenharam um papel preponderante. O orçamento colonial entre 1845 e 1941 foi devorado pela guerra ou a sua prevenção, uma situação similar à última fase do período colonial (1961-1974)16, tendo continuado no pós-independência durante a Guerra Civil (1975-2002). Embora a guerra e o conflito tenham sido dominantes, o continente representa muito mais do isso.
África, a sua identidade e futuro
Muitas grandes cidades de países africanos, tais como Dacar, Nairobi, Cartum, Luanda, Joanesburgo, Pretoria ou Dar Es Salaam, demonstram a junção do urbano com o rural, do passado com o presente num encontro contínuo de civilizações. Comecemos pelo passado: a UNESCO indicou nos anos noventa do século passado como Património Mundial da Humanidade, entre outros lugares, a Ilha de Moçambique e a mesquita de Djenne, no Mali, dois exemplos que ilustram a fusão e convivência lado a lado de várias civilizações. Na Ilha de Moçambique, que foi a primeira capital deste país a quem deu o nome, existe a ‘cidade de macuti’, feita a partir de construções típicas da cultura africana–suaíli, caracterizada por incrível engenhosidade criativa e saber artesanal, enquanto que a outra metade é a ‘cidade de pedra e cal’ onde se encontram as ruínas da antiga fortaleza, do antigo palácio do governador e das casas senhoriais da arquitectura colonial portuguesa. Na ilha, a oitocentos quilómetros da capital, a vida torna-se mais um chão do que um andar e diferentes realidades convivem na contraposição do pesado e do leve, do eterno com o efémero17. O outro local é a mesquita de Djenne no Mali, a mais antiga mesquita da África subsaariana, construída no ano 800 A.C., que se tornaria mais tarde, no século XVI, o mais importante centro comercial do Mali por ser parte da rota fluvial das minas de ouro e salinas de Tombuctu. Embora o estilo arquitectónico seja de influência islâmica, a construção toda ela de barro e de materiais locais, reflecte a estética e saber africanos.
Em muitas cidades africanas encontram-se, actualmente, mesquitas a par de igrejas cristãs, não sendo inusitado que nos passeios se encontrem à venda raízes de ervas, ossos, dentes de cobra e pozinhos castanhos num emblemático sincretismo religioso, porque o sagrado e o oculto são apreendidos pelos cinco sentidos. Simultaneamente, nessa mesma rua, os ecrãs gigantes da avenida principal publicitam as vantagens do último modelo de DVD, e um louco anónimo constrói dia a dia a sua moradia debaixo do ecrã, dispondo simetricamente garrafas vazias coloridas de bebidas, vinhos e licores estrangeiros, a maioria de marcas ocidentais, alheias ao frenesim das ruas, onde coexistem na arquitectura, no comércio, nos modelos político e socioeconómicos elementos da civilização árabe, ocidental, asiática, oriental.
Isto porque África absorve a vida, as gentes fervilham nas ruas galardoando a existência com a exuberância de sons, movimentos e ritmos, cores nos trajes, paladares e cheiros, retendo a tensão do confronto em cada encontro, os carregamentos de madeira tropical dos confins da Libéria onde não há estrada, o emaranhado de ruas lamacentas na zona pobre de Lagos na Nigéria, o Roque Santeiro em Luanda, mercado de vários quilómetros de amplitude, o caos das taxas de câmbio, o Wall Street de África onde se negoceia tudo e na eterna busca da fátua prosperidade, os africanos reinventam uma miríade de arranjos e de esquemas para sobreviver no continente, construir pontes para as antigas potências da Europa, a actual América do Norte, ou a China, como futura potência. Seja o que Deus quiser, o mundo inteiro sempre lhe exigiu o máximo de potencial humano de criatividade na sua sobrevivência diária, muitos africanos dominam uma média de cinco a seis línguas, entre locais e europeias, aptidão necessária nas artes de relações humanas num mosaico de etnias, povos e civilizações diversas que negoceiam o dia-a-dia para garantir o futuro e, no entretanto, se o ocidente matou Deus de forma a dominar a razão que lhe permitiu dominar o mundo, os africanos hão-de sempre confiar nas divindades, instâncias supremas que apaziguam o incerto da sorte, da morte, da vida, da paz e da guerra.
Apesar de que, em lugar nenhum, a esperança, a alegria, a criatividade reforcem tanto o sentido da vida como em África, os editais da maior parte de jornais, revistas e documentários ocidentais alimentam uma imagem de uma África faminta, doente e corrupta, ao mesmo tempo que lhe são prognosticados enumeráveis fins, quer pelas guerras, ditas intrínsecas às estruturas sociopolíticas, quer pela fome, pois veladamente os africanos são a causa e efeito do seu atraso tecnológico por incapacidade de domínio dos mecanismos (ocidentais) do progresso económico, ou então o fim do continente surge em previsões apocalípticas de propagação da sida, ou a não contenção da malária, tuberculose, etc.
Argumentos que são resíduos da história recente do continente ditada e escrita pelo Ocidente. Esquecem-se que a população deste continente foi pioneira na história da humanidade em conceber estruturas sociais, económicas e políticas que possam garantir o máximo em termos de sobrevivência humana no contexto de uma natureza material e humana adversa. Estruturas estas ainda prevalentes e que fizeram com que África sobrevivesse à catástrofe do tráfico atlântico de escravos e à ocupação colonial.
Na época moderna, não obstante os aspectos negativos relacionados com instabilidade política, os frequentes conflitos, as epidemias e fragilidade económica, o continente teve uma expansão demográfica recente demarcável, obteve a sua autonomia política e vai esbatendo a sua autonomia económica, demonstrando a constância do elemento sobrevivência.
NOTA FINAL: As palavras utilizadas na história aparecem sempre armadilhadas, as vitórias são ilusórias e no rescaldo da batalha, o destino humano continua volúvel, só o aprofundamento do conhecimento, alargando assim as fronteiras da consciência humana, pode atenuar os dilemas que sempre se apresentarão à humanidade. Apesar de capítulos sombrios na sua história, os africanos reflectem uma capacidade inata de auto preservação, mantendo a idoneidade da sua identidade. É pois na manutenção absoluta da sua autonomia identitária que reside a grandeza da herança africana.
- 1. DUARTE DE CARVALHO, Ruy, Desmedida: Luanda – São Paulo – São Francisco e Volta, Crónicas do Brasil, Cotovia p. 53-54.
- 2. VILLALTA, Luís Carlos, “Notas sobre a circulação cultural no Brasil Colónia: comentários sobre o ensaio “Contatos e Solidariedades: negros e payaya no sertão de Jacobina, BA”, de Raphael Rodrigues Vieira Filho”, In: Website do Instituto de Investigação Cientifica Tropical (IICT), 2007.
- 3. DUARTE DE CARVALHO, Ruy, Desmedida: Luanda – São Paulo – São Francisco e Volta, Crónicas do Brasil, Cotovia, pp 222-223.
- 4. ALMEIDA, Onésimo Teotónio, A propósito de lusofonia (à falta de outro termo): o que a língua não é, Brown Universty, In: Website do Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), 2007.
- 5. LANÇA, Marta, “A Lusofonia é um Bolha”, Jogos sem Fronteiras, Julho 2008.
- 6. ALMEIDA, Onésimo Teotónio, “A propósito de lusofonia (à falta de outro termo): o que a língua não é”, Brown Universty, Instituto de Investigação Cientifica Tropical (IICT), 2007.
- 7. O “Brasileiro” no imaginário português da época na literatura e teatro, era caricaturado como o colono em visita a Portugal, sempre acompanhado de muitos escravos e pelo menos um papagaio, que enriquecera rapidamente durante um dos três grandes ciclos de acumulação de riqueza do Brasil: açúcar, ouro ou diamantes.
- 8. TINHORÃO, José Ramos, Os Negros em Portugal: uma presenca silenciosa, Editorial Caminho, 1988. pags.: 330-340.
- 9. ILIFE, John, Africans: the history of a continent, Cambridge University Press, 1995, p. 130-131.
- 10. PÉLISSIER, René, História das Campanhas de Angola: Resistência e Revoltas 1845-1941, p. 33
- 11. HOOKER, Richard, Washington State University.
- 12. ILIFE, John, Africans: the history of a continent, Cambridge University Press, 1995, p. 129
- 13. LEMMENS, Harry, De Vorst, De Soldaat en de Reiziger: vier eeuwen Portugal –Angola, Atlas, 2007, p. 181.
- 14. PÉLISSIER, René, História das Campanhas de Angola: Resistência e Revoltas 1845-1941. p. 52.
- 15. Esta asserção é fruto da observação da autora deste artigo que permaneceu nos países citados, com excepção do Congo e do Ruanda, em trabalho com a ONU em missões de paz entre 1997 e 2008.
- 16. PÉLISSIER, René, História das Campanhas de Angola: Resistência e Revoltas 1845-1941, p. 35.
- 17. DA SILVA, Aida Gomes, “Repensar a Ilha de Mocambique”, DEMOS, 1997, p. 11.