Luanda, retrato literário
O prédio da Lagoa no centro de Luanda (Largo do Kinaxixi), carcaça deixada por acabar em 1975 e ocupada por refugiados da guerra a partir de 1992, é um musseque (bairro da lata) em altura que acabou por transformar-se involuntariamente em símbolo da capital angolana — 17 andares sem água, nem luz, nem saneamento básico, sem varandas, sem corrimãos —, um prédio carente das mínimas condições de habitabilidade transformado em abrigo para gente deslocada.
Não custa adivinhá-lo por trás do prédio que “respirava como uma entidade viva” e que é o centro de toda a narrativa de Os Transparentes, o romance do angolano Ondjaki transformado, por virtude literária, em retrato da sociedade luandense contemporânea, onde o dinheiro se transformou na única indicação de seriedade e a vida traz sempre prefixo: ou se sobrevive ou se avive. “Tudo dá errado há muito tempo, Raago, não te preocupes, depois a gente dá um jeito, este é o modo angolano de ir fazendo as coisas, se fizéssemos logo tudo bem havia inúmeras desvantagens, primeiro parecia que o trabalho era fácil e rápido, depois não tínhamos hipóteses de brilhar com as correcções, entendes?”
O que capta Ondjaki nas descrições, nos diálogos, na definição das personagens, no lindíssimo português de Angola, cheio de empréstimos do kimbundu, do brasileiro (Odorico Paraguaçu, o personagem da telenovela O Bem Amado, é herói linguístico), do inglês, enriquecido pelas corruptelas da oralidade (num país onde a cultura continua a ser essencialmente oral e a iliteracia se mantém generalizada), sempre em perpétua mudança e com a capacidade de nos desconcertar a cada momento (o diálogo mais banal pode guardar uma pérola de erudição ou uma palavra que julgávamos perdida para a conversa quotidiana moderna) é Luanda; a Luanda que quem lá vive ou viveu recentemente reconhece e que com este livro ficará registada para memória futura.
E Ondjaki tem a capacidade de fazer tudo isto tornando-nos, ao mesmo tempo, melhores leitores pela virtude do esmero da prosa, diamante lapidado que brilha mesmo com a sordidez do que mostra: “Na margem extrema daquele mar de corpos fedorentos, abraçado em moscas, o seu filho repousava sobre as raízes de uma gigantesca figueira”; “Conheceu então/ um fino frio nas costas/ e viu desenhado no chão o mapa do seu próprio sangue — sentindo que morria assim, empapado na saudade da sua mãe”; “– Hoje devias ficar aqui à noite, vamos ter uma sessão especial/ – filme de adulto?/ – isso mesmo, mas não é só de adulto assim à toa… hoje vais ver o internacionalismo pornográfico”.
Aos 35 anos, Ondjaki atinge o lugar para onde a sua escrita prometia encaminhar-se desde sempre. Os Transparentes parece ter começado a escrever-se no último poema do seu primeiro livro (Acto Sanguíneo) e tem-se vindo a escrever na poesia, nos contos, nos livros infantis, nas pequenas novelas, no documentário (Oxalá Cresçam Pitangas — Histórias de Luanda, com Kiluanje Liberdade). Como se Ondjaki estivesse destinado a chegar aqui: a fixar no papel a sociedade angolana, a sociedade caluanda, a sua cidade, a fixar no papel a Luanda de hoje e finalmente acalmar a dor escondida na perna: “Regresso porque me dói/a parte escondida da perna// e peço, com a mão mais direita/ para escrever em ti”.
Isto de ser definitivo é demasiado incerto para aguentar o embate do tempo, mas que venha alguém desafiar este definitivo retrato da Luanda contemporânea e duas coisas se lhe podem dizer: que traga bons argumentos e ainda bem. A literatura é superação e Luanda, na sua enorme simplicidade complexa, precisa de quem a fixe a partir de todos os ângulos, de todas as metáforas, de toda a prosa seca do mais puro realismo, da prosa etérea e mágica dos povos de tradição oral. Até porque a própria cidade desafia definitivices (neologismo em jeito de homenagem).
Publicado originalmente no jornal Público.