Operação Carlota
Este artigo de Gabriel García Márquez, extraído da 53ª edição da revista Tricontinental, de 1977, só inclui a primeira etapa da “Operação Carlota”, pois o autor conclui com a derrota das forças que invadiram a nação angolana e o início da retirada gradual das tropas cubanas, em 1976, quando parecia que tudo tinha concluído. Contudo, tal como acordaram os presidentes Fidel Castro e Agostinho Neto, um número mínimo de tropas ficou em Angola para garantir sua soberania. A situação começou a complicar-se, e a luta se intensificou de novo, mais uma vez a África do Sul interveio, de maneira que se iniciou uma nova etapa da “Operação Carlota”, que concluiu só 14 anos depois, com a derrota definitiva dos racistas sul-africanos. O último soldado cubano retornou no mês de maio de 1991.
Pela primeira vez, numa declaração oficial, os Estados Unidos revelaram a presença de tropas cubanas em Angola, em novembro de 1975. Calculavam que tinham sido enviados cerca de 15 mil homens. Três meses depois, durante uma visita breve a Caracas, Henry Kissinger disse em particular ao presidente Carlos Andrés Pérez: “Parece que nossos serviços de informação estão muito deteriorados porque só soubemos que os cubanos iam para Angola quando já estavam lá mesmo”. Contudo, nessa ocasião corrigiu que a cifra enviada por Cuba era de 12 mil homens. Embora nunca explicasse o motivo daquela mudança nos números, na verdade nenhuma das duas era correta. Naquele momento em Angola havia muitos soldados, especialistas militares e técnicos civis cubanos, muito mais do que Henry Kissinger supunha.
Havia tantos navios cubanos ancorados na baía de Luanda, que o presidente Agostinho Neto, contando-os da janela do seu gabinete, sentiu um abalo de pudor muito próprio de seu caráter, “Não é justo”, disse a um funcionário amigo. “A esse passo, Cuba vai se arruinar”.
É possível que nem os próprios cubanos tivessem previsto que a ajuda solidária ao povo de Angola atingiria tamanhas proporções. O que sim esteve claro, desde o primeiro momento, é que a ação tinha que ser decisiva e rápida, e que de jeito nenhum se podia perder.
Os contatos entre a Revolução cubana e o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) estabeleceram-se pela primeira vez e foram muito intensos, desde agosto de 1965, quando Che Guevara participava das guerrilhas do Congo. No ano seguinte, Agostinho Neto viajou a Cuba juntamente com Endo, o comandante-em-chefe do MPLA, que morreu na guerra, e ambos os líderes se entrevistaram com Fidel Castro. Depois, e pelas próprias condições da luta em Angola, aqueles contatos se tornaram eventuais. Só em maio de 1975, quando os portugueses se preparavam para sair de suas colônias da África, o comandante cubano Flavio Bravo entrevistou-se em Brazzaville com Agostinho Neto, e este lhe pediu ajuda para transportar um carregamento de armas, e consultou-o sobre a possibilidade de uma ajuda mais ampla e específica. Após três meses desse encontro, o comandante Raúl Díaz Arguelles viajou a Luanda, liderando uma delegação civil de cubanos, e Agostinho Neto foi mais preciso: solicitou o envio dum grupo de instrutores para fundar e dirigir quatro centros de treino militar.
Bastava um conhecimento superficial da situação de Angola para compreender que o pedido de Neto era também típico de sua modéstia. Embora o MPLA, fundado em 1956, fosse o movimento de libertação mais antigo de Angola e o único com base popular muito ampla, com um programa social, político e econômico condizente com as condições próprias do país, mas estava em desvantagem do ponto de vista militar. Dispunha de armamento soviético mas não tinha pessoal preparado para manipulá-lo. No entanto, as tropas regulares do Zaire, bem treinadas e fornecidas, estavam em Angola desde 25 de março e proclamaram em Carmona um governo presidido por Holden Roberto, líder da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), cunhado de Mobutu, cujos vínculos com a CIA eram de domínio público. No oeste, apoiada pela Zâmbia, estava a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), comandada por Jonas Savimbi, aventureiro sem princípios, em contato permanente com os militares portugueses e as companhias estrangeiras de exploração. Finalmente, as tropas regulares da África do Sul, através do território ocupado da Namíbia, atravessaram a fronteira meridional de Angola, em 5 de agosto, com o pretexto de proteger as barragens do complexo hidrelétrico de Raucaná-Calueque.
Todas essas forças, com grandes recursos econômicos e militares estavam prontas para fechar em torno de Luanda um cerco irresistível, nas vésperas de 11 de novembro, quando o exército português abandonasse aquele vasto, rico e bonito território onde tinha sido feliz durante 500 anos.
De maneira que quando os líderes cubanos receberam o pedido de Neto, não se ativeram a seus termos estritos, e decidiram enviar logo um contingente de 480 especialistas, que em um prazo de seis meses devia preparar quatro centros de treino e organizar 16 batalhões de infantaria, bem como 25 baterias de morteiro e metralhadoras antiaéreas. Como complemento enviaram uma brigada de médicos, 115 carros e uma equipe de comunicações.
Aquele primeiro contingente foi transportado em três navios improvisados. O “Viet Nam Heróico”, navio de passageiros, comprado pelo ditador Fulgencio Batista a uma companhia holandesa, em 1956, e convertido em navio-escola. Os outros dois eram o “Coral Island” e “La Plata”, navios mercantes acondicionados de urgência. Contudo, a forma em que foram carregados ilustra muito bem o sentido de previsão e audácia com que os cubanos deviam enfrentar o compromisso de Angola.
Parece insólito que Cuba levasse o combustível para os veículos. Angola é um país produtor de petróleo e os cubanos deviam trazer o seu através de meio mundo, da União Soviética. Contudo, os cubanos preferiam atuar desse modo, e naquela primeira viagem levaram mil toneladas de gasolina, partilhada nos três navios. O “Viet Nam Heróico” levou 200 toneladas e viajou com os porões abertos para permitir a eliminação dos gases. O navio “La Plata” transportou gasolina na coberta. A noite em que terminaram de carregá-los coincidiu com uma festa popular cubana e todos festejaram em Havana, fazendo váriadas pirotecnias, onde uma faísca perdida teria convertido em pó aqueles três arsenais flutuantes. Fidel Castro foi despedi-los como fazia com todos os contingentes que viajavam a Angola, e depois de ver as condições em qure viajavam, disse uma frase própria dele, que contudo parecia casual: “De qualquer forma — disse — vão mais cómodos do que no iate Granma”.
Não havia certeza que os militares portugueses permitiriam o desembarque dos instrutores cubanos. Em 28 de julho desse ano, quando Cuba recebeu a primeira solicitação de ajuda do MPLA, Fidel Castro pediu ao coronel Otelo Saraiva de Carvalho, em Havana, que gestionasse a autorização do governo de Portugal para enviar recursos a Angola, e Saraiva de Carvalho prometeu consegui-la, mas a resposta nunca chegou. De maneira que o “Viet Nam Heróico” chegou ao Porto Amboim, em 4 de outubro, às 6h30 da manhã; o “Coral Island” no dia 7 e “La Plata” no dia 11 a Pointe-Noire. Chegaram sem autorização de ninguém, mas também sem a oposição de ninguém.
Como estava previsto, os instrutores cubanos foram recebidos pelo MPLA e imediatamente começaram a trabalhar para pôr em funcionamento as quatro escolas de instrutores. Uma estaria em Ndalatando, que os portugueses chamaram Salazar, a 300 quilômetros a leste de Luanda; outra no porto atlântico de Benguela; outra em Saurino, antiga Enrique de Carvalho, na remota e desértica província oriental de Lunda, onde os portugueses tinham uma base militar que destruíram antes de abandoná-la, e a quarta no enclave de Cabinda. Nesse então as tropas de Holden Roberto estavam tão próximas de Luanda que um instrutor de artilharia cubano estava dando as primeiras lições a seus alunos de Ndalatando, e desde o lugar em que se encontrava observava o avanço dos carros blindados dos mercenários.
Em 23 de outubro, as tropas regulares da África do Sul entraram procedentes da Namíbia com uma brigada mecanizada, e três dias depois ocuparam sem resistência as cidades de Sá de Bandeira e Moçâmedes.
Aquilo era tarefa fácil. Os sul-africanos levavam gravadores com música, instalados nos tanques. No norte, o chefe de uma coluna mercenária liderava as operações a bordo dum Honda esportivo, junto de uma loira de cinema. Avançava tranqüilamente, sem coluna de exploração, e nem sequer se percatou de onde saiu o míssil que fez voar em pedaços o carro. No bolso da mulher só encontraram um vestido de gala, uma biquíni e um cartão de convite para a festa da vitória que Holden Roberto tinha preparada em Luanda.
Nessa semana, os sul-africanos penetraram mais de 600 quilômetros em território de Angola e avançaram rumo a Luanda, a 70 quilômetros diários. Em 3 de novembro, atacaram o centro de instrução para recrutas de Benguela, que dispunha de pouco pessoal. Por tal motivo, os instrutores cubanos tiveram que abandonar as escolas para enfrentar os invasores com seus soldados aprendizes, aos quais davam instruções no descanso entre as batalhas. Até os médicos reviveram as práticas de milicianos e foram para as trincheiras combater.
Os líderes do MPLA, preparados para a luta de guerrilhas mas não para uma guerra em massa, compreenderam que aquele conluio entre vizinhos, apoiados pelos recursos mais rapaces e devastadores do imperialismo, não podia ser derrubado sem um apelo urgente à solidariedade internacional.
O espírito internacionalista dos cubanos é uma virtude histórica. Embora a Revolução o tenha defendido e magnificado segundo os princípíos do marxismo, a essência estava muito bem estabelecida na conduta e na obra de José Martí. Essa vocação é evidente — e conflituosa — na América Latina, África e Ásia.
Ainda antes de que a Revolução cubana proclamasse seu caráter socialista, Cuba tinha ajudado consideravelmente os combatentes da FLN, na Argélia, na guerra contra o colonialismo francês. A ponto que o governo do general De Gaulle proibiu, como retaliação, os vôos da Cubana de Aviação no céu da França. Posteriormente, no meio do furacão Flora que devastou o país, um batalhão de combatentes internacionalistas cubanos foi defender a Argélia da invasão do Marrocos. Com certeza, não existe nestes tempos um movimento de libertação africano que não tenha contado com a solidariedade de Cuba, quer seja com material e armamentos, quer com a formação de técnicos e especialistas militares e civis. Desde 1963, Moçambique, Guiné-Bissau desde 1965, Camarões e Serra Leoa têm solicitado nalgum momento e obtido de alguma forma a ajuda solidária dos cubanos. O presidente da República da Guiné, Sekou Touré, rejeitou um desembarque de mercenários com a ajuda dum contingente de cubanos. O comandante Pedro Rodríguez Peralta, agora membro do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba, foi preso pelos portugueses na Guiné-Bissau e esteve na prisão vários anos. Quando Agostinho Neto fez um apelo aos estudantes angolanos em Portugal para que fossem estudar em países socialistas, muitos deles foram recebidos por Cuba. Atualmente, todos estão ligados à construção do socialismo em Angola, e alguns ocupam cargos destacados. Este é o caso de Minga, economista e atual ministro das Finanças de Angola; Enrique Dos Santos, engenheiro geólogo, comandante e membro do Comitê Central do MPLA; Mantos, engenheiro agrônomo e atual chefe da Academia Militar; N’Dalu, que quando estudante se destacou como o melhor futebolista de Cuba e atualmente é o segundo chefe da primeira Brigada de Angola.
Contudo, nada disso ilustra tanto a antigüidade e intensidade da presença de Cuba na África como o fato de que Che Guevara foi lutar nas guerrilhas do Congo. Partiu em 25 de abril, a mesma data de sua carta de despedida a Fidel Castro, onde renunciava à sua patente de Comandante e a tudo quanto o ligava legalmente ao governo de Cuba. Viajou sozinho, em um avião de uma linha comercial, com outro nome e com um passaporte falso, com a fisionomia alterada, uma pequena mala de negócios, livros e muitos inaladores para sua asma insaciável, distraindo as horas mortas nos hotéis com leituras intermináveis sobre xadrez.
Três meses depois, reuniram-se com ele no Congo 220 cubanos que viajaram de Havana, em um navio carregado de armamento.
A missão específica de Che Guevara era treinar guerrilheiros para o Conselho Nacional da Revolução do Congo, que lutava contra Moise Tshombé, marionete dos antigos colonos belgas e das companhias mineiras internacionais. Já Patrice Lumumba tinha sido assassinado.
O chefe do Conselho Nacional da Revolução era Gastón Soumaliot, mas quem liderava as operações era Laurent-Désiré Kabila de seu esconderijo em Kigoma, na beira oposta do lago Tanganica. Aquela situação contribuiu para preservar a verdadeira identidade de Che Guevara, e ele mesmo, para maior segurança, não apareceu como chefe principal da missão. Por isso era conhecido com o pseudônimo de Tatu, que significa o número dois na língua suaíli.
Che Guevara ficou no Congo desde abril até dezembro de 1965, Não só treinava guerrilheiros, mas os liderava no combate e lutava juntamente com eles. Seus vínculos pessoais com Fidel Castro, sobre os quais tanto se especulou, não enfraqueceram em nenhum momento. Seus contatos foram permanentes e cordiais mediante sistemas de comunicação muito eficazes.
Quando Moise Tshombé foi derrubado, os congoleses solicitaram a retirada dos cubanos, como medida para facilitar o armistício.
Che Guevara foi embora como tinha chegado: em silêncio, pelo aeroporto de Dar es Salaam, capital da Tanzânia, num avião comercial e lendo um livro de problemas de xadrez para cobrir o rosto durante as seis horas da viagem, enquanto perto dele, seu ajudante cubano entretinha o comissário político do exército de Zanzíbar, velho admirador de Che Guevara, que falou dele sem descanso durante a viagem, procurando notícias e reiterando os desejos que tinha de voltar a vê-lo.
Aquela passagem fugaz e anônima de Che Guevara pela África deixou viva a semente que ninguém poderia erradicar. Alguns de seus homens foram para Brazzaville e lá treinaram grupos de guerrilheiros para o PAIGC, liderado por Amílcar Cabral, e nomeadamente para o MPLA. Um dos grupos treinados por eles entrou clandestinamente em Angola, através de Kinshasa, para se incorporar à luta contra os portugueses, com o nome de “Coluna Camilo Cienfuegos”. Outro grupo filtrou-se em Cabinda e depois atravessou o rio Congo e se estabeleceu na zona de Dembo, onde nasceu Agostinho Neto, com tradição de cinco séculos de luta contra os portugueses. De maneira que a ação solidária de Cuba em Angola não foi um ato impulsivo e casual, mas sim uma conseqüência da política da Revolução cubana na África. Só que havia um elemento novo e dramático nessa delicada decisão. Nesta ocasião não se tratava simplesmente de enviar uma ajuda possível, mas sim de enfrentar uma guerra regular em grande escala, a 10 mil quilômetros de seu território, com um custo econômico e humano incalculável e com conseqüências políticas imprevisíveis.
A possibilidade de intervenção dos EUA abertamente e não através de mercenários e da África do Sul, como tinha feito até então, era um dos enigmas mais inquietadores. Contudo, uma rápida análise permitia prevenir que pelo menos os EUA pensariam mais de três vezes, pois acabavam de sair do pantanal do Vietnã e do escândalo de Watergate, com um presidente que niguém tinha eleito, com a CIA fustigada pelo Congresso e desprestigiada ante a opinião pública, com a necessidade de se cuidar para não aparecer como aliado da racista África do Sul, não só ante a maioria dos países africanos mas também ante a própria população negra dos EUA, e além disso, em meio de uma campanha eleitoral e no ano do bicentenário. Por outro lado, os cubanos confiavam na solidariedade e na ajuda material da União Soviética e de outros países socialistas, mas também estavam conscientes das conseqüências que esta ação poderia ter para a política da coexistência pacífica e para a distensão internacional. Era uma decisão de conseqüências irreversíveis, e um problema muito grande e complexo para resolvê—lo em 24 horas. A direção do Partido Comunista de Cuba não teve mais de 24 horas para decidir, e foi decidido em 5 de novembro, em uma reunião de várias horas. Ao contrário do que tanto se tem falado, foi um ato independente e soberano de Cuba, e foi depois e não antes de decidi-lo que se fez a notificação correspondente à União Soviética. Em outro 5 de novembro, mas em 1843, uma escrava do engenho Triunvirato da região de Matanzas, chamada a negra Carlota, se revoltou de facão na mão, liderando um grupo de escravos, morrendo na rebelião. Como homenagem a esta negra escrava, a ação solidária em Angola levou seu nome: Operação Carlota.
A Operação Carlota se iniciou com o envio dum batalhão reforçado de tropas especiais, integrado por 650 homens. Foram transportados por avião, em vôos sucessivos, durante 13 dias, desde a seção militar do aeroporto José Martí, em Havana, até o próprio aeroporto de Luanda, ainda ocupado por tropas portuguesas.
A missão específica era deter a ofensiva para que a capital de Angola não caísse no poder das forças inimigas, antes de que os portugueses se retirassem e depois manter a resistência até que chegassem os reforços. Mas os homens que saíram nos primeiros vôos estavam convictos de que chegariam muito tarde, e só tinham a esperança final de salvar Cabinda.
O primeiro contingente saiu em 7 de novembro, às 16h00, em um vôo especial da Cubana de Aviação, a bordo de um dos lendários Bristol Britania BB 218, descontinuado pelos fabricantes ingleses. Os 82 passageiros, o mesmo número dos homens do iate Granma, tinham um ótimo aspecto de turistas torrados pelo sol do Caribe. Todos iam vestidos com roupa de verão, sem nenhum detalhe militar, com pequenas malas de negócio e passaportes regulares com seus nomes e identidade real.
Os membros do batalhão de tropas especiais que não dependem das Forças Armadas Revolucionárias (FARs), mas sim do Ministério do Interior (Minint), são soldados muito bem treinados, com nível ideológico e político elevado, alguns com alto nível acadêmico, leitores habituais e com grande preocupação pela superação intelectual. De maneira que aquela visão de civis não foi novidade para eles.
Mas nas pequenas malas levavam metralhadoras, e no departamento de carga do avião, em lugar da bagagem levavam artilharia leve, armas individuais, três canhões de 75 milímetros e três morteiros 82.
A única mudança feita no avião era uma porta para tirar as armas, do depósito da bagagem para a cabina dos passageiros, em caso de emergência.
O vôo Havana-Luanda fez uma escala em Barbados, para abastecer, no meio de uma tormenta tropical, e outra de cinco horas na Guiné Bissau, cuja finalidade principal era esperar a noite para voar em segredo até Brazzaville. Os cubanos aproveitaram aquelas cinco horas para dormir, e esse foi o sono mais difícil da viagem, pois no aeroporto havia tantos mosquitos que os lençóis ficaram manchados de sangue.
Mobutu, com sua arrogância proverbial, dizia que Brazzaville se iluminava com o resplendor de Kinshasa, a moderna e fulgurante capital do Zaire. Nisso tem toda a razão. As duas cidades estão situadas uma frente da outra, com o rio Congo no meio, e os respectivos aeroportos estão tão próximos que os primeiros pilotos cubanos tiveram que estudá-los muito bem para não pousar na pista inimiga. Fizeram-no sem contratempos, com as luzes apagadas para não serem vistos do outro lado e ficaram em Brazaville o tempo suficiente para informar-se pela rádio sobre a situação em Angola. O comandante angolano Xieto, que mantinha boas relações como o comissário português, conseguiu a autorização para que os cubanos aterrissassem em Luanda. E assim fizeram, em 8 de novembro, às 22h00, sob uma chuva intensa. Quinze minutos depois chegou o segundo avião. Simultaneamente, estavam saindo de Cuba três navios carregados com um regimento de artilharia, um batalhão de tropas motorizadas e o pessoal da artilharia a reação, que desembarcariam em Angola a partir de 27 de novembro.
Entretanto, os soldados de Holden Roberto estavam tão perto que horas antes mataram uma idosa com um disparo de canhão, tentando chegar ao quartel do Grande Farní onde estavam concentrados os cubanos. Os cubanos não tiveram tempo de descansar. Envergaram o uniforme verde-oliva, incorporaram-se às fileiras do MPLA e começaram a combater.
A imprensa cubana, por regras de segurança, não publicou a notícia da participação de Cuba em Angola. Mas, como costuma acontecer em Cuba ainda com assuntos militares tão importantes como este, a operação era um segredo guardado entre 8 milhões de pessoas. O Primeiro Congresso do Partido Comunista, que deveria se realizar poucas semanas depois e que foi uma espécie de obsessão nacional durante o ano todo, teve uma nova dimensão.
O procedimento para formar as unidades de voluntários foi uma citação privada aos membros da primeira reserva que incluía todos os homens entre 17 e 25 anos e que tinham sido membros das Forças Armadas Revolucionárias. Eram citados para o Comitê Militar correspondente sem mencionar o motivo da convocatória, mas o motivo era tão evidente que todo aquele que pensava que tinha capacidade militar se apresentou sem ser citado e muito trabalho custou impedir que aquela solicitação em massa virasse desordem nacional.
O critério seletivo foi bastante estrito, tendo em conta a urgência da situação. Não só consideravam a qualificação militar e as condições físicas e morais, mas também os antecedentes de trabalho e a formação política. Apesar desse rigor, foram incontáveis os casos de voluntários que conseguiram driblar os filtros da seleção. Sabe-se dum engenheiro qualificado que se fez passar por motorista dum caminhão, dum funcionário que conseguiu passar como mecânico, de uma mulher que esteve a ponto de ser admitida como soldado. Sabe-se dum jovem que partiu sem autorização do pai e que depois se encontrou com ele em Angola, porque também o pai viajou a ocultas da família. Contudo, um sargento de 20 anos não conseguiu ir por nenhum meio, e teve que suportar que a mãe, jornalista e a namorada, médica, fossem. Alguns delinqüentes comuns solicitaram ser admitidos, mas nenhum desses casos prosperou.
A primeira mulher que conseguiu viajar, em dezembro, foi rejeitada em várias ocasiões com o argumento de que “aquilo era muito perigoso para uma mulher”. Estava pronta para viajar às ocultas num navio e já tinha escondido a roupa no porão, com a cumplicidade dum amigo fotógrafo, quando soube que tinha sido escolhida para ir legalmente e por avião. Seu nome era Esther Lilia Díaz Rodríguez, professora, 23 anos, que entrou nas Forças Armadas em 1969, e tinha boas qualificações nas aulas de tiro de infantaria. Com ela também foram, cada um por seu lado, mais três irmãos da jovem: César, Rubén e Erineldo. Sem ter combinado previamente, os quatro disseram o mesmo à mãe: que iam participar dos exercícios militares em Camagüey, por ocasião do Congresso do Partido. Todos retornaram salvos e a mãe está orgulhosa de que tenham estado em Angola, mas não lhes perdoou a mentira.
O diálogo com os que retornaram permitiu conhecer que alguns cubanos queriam ir a Angola por problemas pessoais diversos. Um deles infiltrou-se com o propósito de desertar, e depois seqüestrou um avião português e pediu asilo em Lisboa. Nenhum foi obrigado: antes de ir embora todos tiveram que assinar sua folha de voluntários. Alguns se recusaram a ir depois de selecionados e foram vítimas de ações públicas e de desprezo privados. Mas sem dúvida, a imensa maioria foi a Angola com a convicção de cumprir um ato de solidariedade política, com a mesma consciência e a mesma coragem que 15 anos antes enfrentaram o desembarque pela Baía dos Porcos, e por isso a Operação Carlota não foi uma simples expedição de soldados profissionais mas sim, uma guerra popular.
Durante nove meses, a mobilização de recursos humanos e materiais foi uma epopéia de riscos. Os antigos aviões Britania, remendados com freios do Illushin soviético, mantiveram um tráfego constante e quase inverossímil. Embora o peso total deste avião não possa ultrapassar os 80 mil quilos, na hora de decolar, muitas vezes decolaram com um peso de até 88 mil. Os pilotos, cujas horas normais de vôo devem ser 75 cada mês, chegaram a voar mais de 200. Em geral, cada um dos três Britania em serviço levava duas tripulações que se revezavam no traballho. Um dos pilotos lembra ter estado na cabine até 50 horas, em uma viagem de ida e volta, com 43 horas de vôo efetivo. “Há momentos em que a gente fica tão cansada que não se pode cansar mais”.
Naquelas condições, devido às diferenças de horário, os pilotos e a tripulação tinham perdido a noção do tempo e o único sinal pelo qual se norteavam eram as necessidades do corpo: comiam só quando estavam com fome e dormiam quando estavam com sono.
O roteiro Havana-Luanda é desamparado e deserto. Voando a uma altura de 18 mil a 20 mil pés, a informação sobre os ventos é inexistente nestes tempos. Os pilotos voavam em qualquer sentido sem saber qual era o estado do roteiro, a altura devida para economizar combustível, e sem a menor idéia de quais as condições quando chegassem. Entre Brazzaville e Luanda, o trajeto mais perigoso, não tinham aeroporto alternativo. Além disso, os militares viajavam com as armas carregadas e transportavam explosivos e projéteis sem caixas, para reduzir a carga.
Os Estados Unidos apontaram ao alvo mais fraco dos Britania: a pouca autonômia de vôo. Quando conseguiram que o governo de Barbados impedisse a escala para obter combustível, os cubanos estabeleceram um roteiro transatlântico desde Holguín, no extremo oriental de Cuba, até a Ilha Sal, em Cabo Verde. Era uma operação de risco, porque na viagem de ida os aviões chegavam apenas com o combustível para duas horas de vôo e na viagem de retorno, devido aos ventos contrários, chegavam com reservas para uma hora só. Contudo, aquele roteiro também foi interrompido para evitar danos ao indefeso Cabo Verde. Então, instalaram na cabine dos aviões quatro tanques suplementares com gasolina, o que lhes permitiu voar sem escala, mas com 30 passageiros menos, de Holguín a Brazzaville. A solução de fazer uma escala na Guiana não foi adequada, em primeiro termo porque a pista era muito pequena, e em segundo lugar porque a Texaco, exploradora de petróleo na Guiana, se negou a vender o combustível.
Cuba tentou resolver a situação com o envio à Guiana dum navio carregado de gasolina, mas por um acidente incompreensível ficou contaminado com terra e água. No meio de tantos inconvenientes, o governo da Guiana se manteve firme em sua solidariedade com os cubanos, apesar das ameaças do embaixador dos EUA de bombardear e destruir o aeroporto de Georgetown. A manutenção se fazia em menos da metade do tempo normal e um piloto lembra ter voado várias vezes sem radar, mas nenhum lembra alguma falha nos instrumentos. Naquelas condições fizeram 101 vôos até o fim da guerra. O transporte marítimo não foi menos dramático. Em dois navios para passageiros, de 4 mil toneladas cada um, todos os espaços livres foram adaptados como dormitórios e se improvisaram latrinas no cabaré, nos bares e no corredor. O número normal de 226 passageiros triplicou nalgumas viagens. Os navios de carga para 800 pessoas chegaram a transportar mais de mil passageiros com carros blindados, armamentos e explosivos. Foi necessário adaptar fogões de campanha nos porões de carga. Para economizar água utilizavam pratos e copos descartáveis. As maquinarias dos navios mais antigos começaram a falhar. Esse foi o único motivo de exaspero para os primeiros repatriados, cujo ansiado retorno demorou vários dias porque o “Viet Nam Heróico”, por exemplo, teve algumas avarias. O resto do comboio era obrigado a esperar, e algum dos passageiros compreenderam então Che Guevara quando afirmou que a marcha de uma guerrilha está determinada pelo homem que menos avança. Aqueles obstáculos pareciam mais angustiosos nessa época, porque os navios cubanos eram alvo de constantes provocações por parte de destróieres norte-americanos que os perseguiam durante dias, e os aviões de guerra os fotografavam e faziam vôos rasantes.
Apesar das difíceis condições daquelas viagens de quase vinte dias, não houve nenhum problema de saúde grave. Nas 42 viagens durante os seis meses da guerra, os serviços médicos a bordo só tiveram que fazer uma operação de apendicite e uma de hérnia, e só tiveram que combater um surto de diarréias, provocado por uma carne em conserva. Não obstante, houve que controlar uma epidemia mais difícil que era a dos tripulantes, que queriam ficar lutando em Angola, custe o que custar. Um deles, oficial da reserva, conseguiu um uniforme verde-oliva, desembarcou confundido com a tropa e ficou ilegal. Foi um dos oficiais da informação de maior destaque na guerra.
Por outro lado, a ajuda material soviética que chegava por diferentes meios, requeria da chegada constante de pessoal qualificado para manipular e ensinar a utilizar as armas e equipamentos novos e mais complexos, que ainda eram desconhecidos para os soldados angolanos. O chefe do Estado-Maior de Cuba viajou a Angola nos finais de novembro. Tudo parecia permissível menos perder a guerra.
Contudo, a verdade histórica era que estava a ponto de perdê-la. Na primeira semana de dezembro, a situação era tão desesperada que se pensou na possibilidade de fortalecer-se em Cabinda e salvar um pedaço de praia próxima a Luanda para iniciar a evacuação. Se não bastasse, aquela perspectiva sombria apresentava-se no pior momento, tanto para os cubanos quanto para os angolanos. Os cubanos preparavam-se para o Primeiro Congresso do Partido, de 17 a 22 de dezembro, e os líderes estavam cientes de que uma derrota militar em Angola significava um golpe político mortal. Por sua vez, os angolanos preparavam-se para a conferência iminente da OUA, e queriam participar com uma posição militar mais propícia para ter a seu favor a maioria dos países africanos.
A situação existente devia-se, em primeiro lugar, ao grande poder de fogo do inimigo, que para essa data tinha recebido dos EUA mais de US$ 50 milhões de ajuda militar. Em segundo lugar, à demora de Angola em pedir ajuda cubana e à lentidão forçosa no transporte dos recursos. Em último lugar, também afetavam as condições de miséria e atraso cultural que deixou em Angola meio milênio de colonialismo desapiedado. Mais que os dois primeiros, este último ponto criou as maiores dificuldades para a integração decisiva entre os combatentes cubanos e o povo armado de Angola.
Realmente, os cubanos encontraram o mesmo clima, a mesma vegetação, as mesmas chuvas apocalípticas e os mesmos entardeceres, com cheiro de mata e crocodilo. Alguns eram tão parecidos com os angolanos, que logo prosperou a versão festiva de que só era possível diferenciá-los tocando-lhes a ponta do nariz, porque os africanos têm o septo nassal brando pela forma em que as mães carregavam os bebês com o rosto colado nas costas.
Os colonos portugueses, talvez os mais vorazes e mesquinhos da história, construíram cidades modernas e bonitas para viver a vida toda, com prédios de vidros e lojas com grandes cartazes iluminados. Mas eram cidades para pessoas brancas, como as que estavam construindo os norte-americanos na antiga Havana, e que os camponeses fitaram espantados quando desceram pela primeira vez da Serra, com o fuzil no ombro.
Por trás daquela imagem de civilização jazia um vasto e rico país de misérias. O nível de vida da população nativa era um dos mais baixos do mundo, o índice de analfabetismo era superior a 90% e as condições culturais estavam muito próximas das da idade da pedra lascada. Ainda, nas cidades do interior, os únicos que falavam português eram os homens, e estes tinham até sete mulheres em um mesmo lar.
As superstições não só eram um inconveniente para o dia a dia, mas também para a guerra. Os angolanos estavam convictos de que as balas não matavam os brancos, tinham muito medo dos aviões e se negavam a lutar dentro das trincheiras porque diziam que as sepulturas eram só para os mortos. Já Che Guevara tinha observado no Congo que os soldados se colocavam um colar contra os canhonaços e uma pulseira contra a metralha, e pintavam o rosto para enfrentar os riscos da guerra. Tanto se interessou por estes absurdos culturais, que estudou a idiossincrasia africana e aprendeu a falar suaíli para tentar modificá-los, ciente de que existe uma força perniciosa e profunda semeada no coração destes homens que não é possível derrubar com as balas: a colonização da mente.
As condições de saúde eram desumanas. Em São Pedro de Cota os médicos cubanos curaram, quase à força, um menino que queimou o corpo todo com água quente e a família o estava velando vivo porque pensavam que não se podia salvar.
Os médicos cubanos se enfrentaram com doenças que nem sequer conheciam. Sob o domínio português em Angola só havia 90 médicos para 6 milhões de habitantes, e a maioria estava concentrada na capital. Quando os portugueses foram embora só ficaram 30 médicos. No mesmo dia em que um pediatra cubano chegou a Porto Amboim viu morrer cinco crianças sem poder fazer nada por falta de recursos. Para um médico de 35 anos, formado em um país com um dos menores índices de mortalidade infantil no mundo, aquela foi uma experiência incrível.
O MPLA tinha conseguido grandes progressos contra o primitivismo nos seus longos e silenciosos anos de luta contra o domínio português, e dessa forma criou as condições para a vitória final. Nos territórios libertados aumentava o nível político e cultural da população, combatiam o tribalismo e o racismo e fomentavam a educação de graça e a saúde pública. Era o surgimento de uma nova sociedade.
Contudo, esses esforços meritórios foram insignificantes quando a guerra de guerrilhas virou guerra grande e moderna e foi preciso apelar não só às pessoas com formação militar e política, mas também a todo o povo de Angola.
Era uma guerra atroz, na qual havia que cuidar-se tanto dos mercenários quanto das serpentes, e tanto dos canhões quanto dos caníbais. Um combatente cubano em pleno combate caiu em uma amadilha para elefantes. Por causa de seu rancor atávico contra os portugueses, os africanos negros foram hostis aos cubanos brancos no início. Muitas vezes, sobretudo em Cabinda, os especialistas cubanos se sentiam delatados pelo telégrafo primitivo dos tambores da comunicação, cujo barulho se escutava até 35 quilômetros do lugar. Por sua vez, os militares brancos da África do Sul, que disparavam contra as ambulâncias com canhões de 140mm, lançavam cortinas de fumaça para recolher seus mortos brancos, mas deixavam os negros à disposição dos abutres. Na casa dum ministro da UNITA, que vivia com as condições próprias de sua distinção, os homens do MPLA encontraram dentro duma geladeira as vísceras e várias garrafas com o sangue congelado dos prisioneiros de guerra que se tinham comido.
Apenas chegavam más notícias a Cuba. Em 11 de dezembro, em Hengo, onde se havia lançado uma forte ofensiva das Forças Populares de Libertação de Angola (FAPLA) contra os invasores da África do Sul, um carro blindado de Cuba com quatro comandantes a bordo, avançou por um caminho onde já os sapadores tinham detectado algumas minas. Apesar de antes ter passado quatro carros incólumes, os sapadores advertiram o blindado de não andar por essa estrada, cuja única vantagem era ganhar uns minutos, o qual não era necessário. O carro mal entrou no caminho voou por causa de uma explosão. Dois comandantes do batalhão de tropas especiais foram seriamente feridos. O comandante Raúl Díaz Argüelles, comandante-geral das operações internacionalistas em Angola, herói da luta contra Batista e um homem muito querido em Cuba, morreu na hora. Essa foi uma das notícias mais magoantes para os cubanos, mas não foi a última. No dia seguinte, ocorreu o fracasso de Catofe, talvez o mais trágico de toda a guerra. Aconteceu assim: uma coluna sul-africana havia conseguido consertar a uma velocidade incrível a ponte sobre o rio Nhia. Tinha passado o rio, aproveitando o nevoeiro do amanhecer para não ser vista e surpreendeu os cubanos na retaguarda tática. Ao se fazer uma análise desse insucesso se demonstrou que os cubanos cometeram um erro. Um militar europeu, com muita experiência da Segunda Guerra Mundial, considerou que aquela análise era muito severa, manifestou mais tarde a um alto dirigente cubano: “Vocês não sabem o que é um erro de guerra”. Porém, para os cubanos era, e muito sério, e faltando apenas cinco dias para o Congresso do Partido.
Fidel Castro ficava a par dos pormenores mais insignificantes da guerra. Ele despediu-se de todos os navios e antes da partida, incitou todas as unidades de combatentes no teatro de La Cabaña. Ele próprio foi buscar os comandantes do batalhão de tropas especiais que partiram no primeiro vôo e os acompanhou até à escada do avião guiando seu jipe soviético. É provável que, como em cada uma das despedidas, Fidel Castro tive que reprimir um sentimento recôndito de inveja daqueles que iam para a guerra, pois ele não podia. Já nesse momento, não havia um só ponto no mapa de Angola que ele não pudesse identificar, nem um acidente do solo que não soubesse de cor. Concentrava-se tanto na guerra que podia citar qualquer cifra de Angola como se fosse Cuba, e falava de suas cidades, de seus costumes e de seu povo como se tivesse vivido lá a vida toda.
No início da guerra, quando a situação era premente, Fidel Castro permaneceu durante 14 horas na sala de comandos do Estado-Maior e, às vezes, sem comer nem dormir, como se estivesse em campanha. Acompanhava os pormenores das batalhas com alfinetes de cores dos mapas minuciosos e tão enormes como as paredes, e mantinha comunicação constante com o alto comando do MPLA num campo de batalha, apesar dos seis fusos horários de diferença. Algumas de suas reações nesses dias incertos revelavam sua certeza na vitória. Uma unidade de combate do MPLA viu-se compelida a dinamitar uma ponte para tardar o avanço das colunas blindadas da África do Sul. Fidel Castro sugeriu numa mensagem: “Não destruam mais pontes porque depois terão dificuldades para persegui-los”.
Ele tinha razão. Umas semanas depois, as brigadas de engenheiros angolanos e cubanos tiveram que reparar 13 pontes em 20 dias para perseguir os invasores que fugiam desordenadamente.
Em 22 de dezembro, no ato de encerramento do Congresso do Partido, Cuba reconheceu, pela primeira vez, de maneira oficial, que havia tropas lutando em Angola. A situação na guerra continuava sendo incerta. Fidel Castro, no discurso final, revelou que os invasores de Cabinda foram derrotados em 72 horas, que no Front Norte, as tropas de Holden Roberto, localizadas a 25 quilômetros de Luanda em 10 de novembro, tiveram que recuar mais de 100 quilômetros e as colunas blindadas da África do Sul, que avançaram 700 quilômetros em menos de 20 dias, foram freadas a mais de 200 quilômetros de Luanda e não conseguiram avançar mais. Foi uma informação reconfortante e rigorosa, mas ainda faltava muito para a vitória. Em 12 de janeiro, os angolanos tiveram melhor sorte na conferência da OUA, em Addis Abeba. Uns dias antes, as tropas comandadas pelo comandante Víctor Schueg Colás, um preto enorme e cordial que, antes da vitória revolucionária de Cuba em 1959, fora mecânico de carros, expulsaram Holden Roberto de sua ilustre capital de Carmona, ocuparam a cidade e, poucas horas depois, tomaram a base militar de Negage. A ajuda de Cuba foi tanta que, no começo de janeiro, 15 navios cubanos estavam navegando ao mesmo tempo rumo a Luanda. A ofensiva constante do MPLA em todos os fronts, mudou para sempre a situação a favor dele. Mudou tanto que, no mês de janeiro, adiantou no Front Sul as operações da ofensiva que tinham sido previstas para o mês de abril. A África do Sul possuía aviões Camberra e o Zaire operava com Mirages e Fiats. Angola carecia de aviação, porque os portugueses destruíram as bases antes de se retirarem. Mal podia utilizar os antigos DC-3 que os pilotos cubanos puseram em funcionamento e que, às vezes, tinham que aterrissar, à noite carregados de feridos, em pistas mal iluminadas com tochas improvisadas e chegavam ao lugar de destino com trepadeiras e galhos da floresta nas rodas. Num dado momento, Angola já tinha uma esquadrilha de Migs 17 com pilotos cubanos, mas foram considerados como reserva do alto comando militar e só seriam usados na defesa de Luanda.
No começo do mês de março, o Front Norte ficou livre com a derrota dos mercenários ingleses e ianques que a CIA recrutou na última hora numa operação desesperada. Todas as tropas, com todo o Estado-Maior, foram reunidas no sul. A ferrovia de Benguela foi libertada e, a UNITA se desintegrava de maneira tão desordenada que um míssil do MPLA, em Gago Cutinho, arrasou a casa que Jonas Savimbi havia ocupado uma hora antes.
Desde meados de março, as tropas da África do Sul fugiram em debandada. Deve ter sido uma ordem suprema, por temor a que continuasse a perseguição do MPLA através da submetida Namíbia e levasse a guerra até a própria Africa do Sul.
Aquela possibilidade contou, sem dúvida, com o apoio de toda a África negra e da imensa maioria dos países das Nações Unidas, opostas à discriminação racial. Os combatentes cubanos não hesitaram quando lhes foi dada a ordem de avançarem para o Sul. Porém, em 27 de março, quando os sul-africanos que fugiam atravessaram a fronteira e se refugiaram na Namíbia, a única dada ao MPLA foi ocupar as barragens abandonadas e garantir o bem-estar dos operários de qualquer nacionalidade.
Em 1º de abril, às 9h15, as tropas do MPLA comandadas pelo comandante cubano Leopoldo Cintras Frías, chegaram ao açude de Raucana, onde ficava a cerca de arame farpado da fronteira. Uma hora e 15 minutos depois, o governador sul-africano da Namíbia, o general Ewefp, acompanhado de mais dois oficiais de seu exército, pediu licença para passar a fronteira e iniciar as conversações com o MPLA. O comandante Cintra Frías o recebeu em sua barraca de madeira, construída na faixa neutra de 10 metros que separa os dois países, os delegados de ambos os bandos com seus respectivos intérpretes discutiram sentados ao redor da mesa comprida do refeitório. O acordo demorou duas horas. Mas a reunião tardou mais, já que o general Ewefp ondenou um almoço suculento para todos, preparado do lado da Namíbia e durante o almoço, brindou com cerveja em várias ocasiões e contou a seus adversários como perdera o dedo mínimo da mão direita num acidente de trânsito.
Nos finais de maio, Henry Kissinger visitou o primeiro-ministro sueco Olof Palme em Estocolmo e ao concluir a visita disse muito contente à mídia mundial que as tropas cubanas estavam desocupando Angola. A notícia, segundo afirmaram, aparecia numa carta pessoal que Fidel Castro escrevera a Olof Palme. O júbilo de Kissinger era evidente, uma vez que a retirada das tropas cubanas significava tirar um peso diante da opinião dos Estados Unidos, agitada pela campanha eleitoral.
Na verdade, nessa ocasião, Fidel Castro não mandara carta nenhuma a Olof Palme. Contudo, a informação dele era certa, embora incompleta. Certamente, o programa da retirada das tropas cubanas de Angola tinha sido acertado por Fidel Castro e Agostinho neto numa entrevista em 14 de março, em Conacri, quando a vitória era já uma realidade. Determinaram que a retirada seria gradativa, mas permaneceria em Angola todo o pessoal cubano que fosse necessário e durante o tempo preciso para organizar um exército moderno e forte, capaz de garantir, futuramente, a segurança interna e a independência do país, sem a ajuda de outros.
De modo que, quando Henry Kissinger traiu a confiança dada em Estocolmo, já tinham voltado a Cuba mais de 3 mil combatentes de Angola, e outros estavam a caminho. O retorno se tentou manter em segredo por questão de segurança. Mas Esther Lilia Díaz Rodríguez, a primeira garota que foi para lá e uma das primeiras que voltaram de avião, teve mais uma prova do engenho que possuem os cubanos para saber tudo. Esther foi internada no Hospital Naval de Havana para fazer check-up rigoroso antes de informar à família de seu retorno. Após 48 horas, foi autorizada a sair e pegou um táxi na esquina do hospital que a levou a casa sem nenhum comentário, mas o motorista não aceitou que ela pagasse o serviço, pois sabia que ela vinha de Angola. “Como você soube?”, perguntou Esther, desapontada. O motorista respondeu: “Soube porque eu vi a senhora no terraço do Hospital Naval, e aí só estão aqueles que voltaram de Angola”.
Eu cheguei a Havana nesses dias e assim que entrei no aeroporto, tive a impressão de que alguma coisa profunda tinha acontecido na vida cubana desde que estive ali a última vez, um ano antes.
Havia uma mudança indefinível, porém muito notável, não só no espírito das pessoas, mas também na natureza das coisas, dos animais e do mar, e na essência da vida cubana. Havia uma nova moda masculina de vestidos de tecido leve com casacos de mangas curtas. A gente empregava palavras portuguesas na gíria. Havia novos sotaques nos antigos ritmos africanos da música popular. As discussões eram mais barulhentas nas filas das lojas e dos ônibus abarrotados, entre aqueles que foram partidários resolutos da ação em Angola e os que apenas estavam começando a compreendê-la. No entanto, a experiência mais interessante, e esquisita, era que os repatriados pareciam cientes de ter contribuído para a mudança da história do mundo, mas com modos naturais e a decência dos que tinham cumprido o dever.
Contudo, talvez eles próprios não estavam cientes de que, em outro nível, talvez menos generoso, mas também mais humano, até os cubanos sem paixões demasiadas sentiam que eram compensados pela vida, após muitos anos de insucessos injustos. Em 1970, quando faliu a safra dos 10 milhões de toneladas de açúcar, Fidel Castro instou o povo a converter a derrota em vitória. Mas, na verdade, há muito tempo que os cubanos estão fazendo isso com uma consciência política tenaz e uma fortaleza moral incontestável. Desde a vitória de Girón, fazia mais de 15 anos, tiveram que assimilar, com os dentes apertados, o assassinato de Che Guevara na Bolívia e o do presidente Salvador Allende em meio à catástrofe do Chile, e sofreram o extermínio das guerrilhas na América Latina e a noite interminável do bloqueio e a traça recôndita e implacável de tantos erros internos do passado que, num dado momento, os mantiveram à beira do colapso. Tudo isso, à margem das vitórias irreversíveis, mas vagarosas e árduas da Revolução, criou nos cubanos uma sensação acumulada de penitências imerecidas.
Angola lhes deu, finalmente, a gratificação da vitória grande de que tanto estavam precisando.