Pé na Tchón, Mô Vinking. Pé na Tchón, Mô irmão!

Em memória do Miguel Gullander

O Feiticeiro tem os olhos de quem bebeu toda a 

Asfixia – singularizou-se, esmigalhado num ponto de

dor total, sozinho, sem contar o tempo. Sem saber o 

fim do tormento.

Até que o sol nascesse…

Até que o dia nasceu…

(Gullander, in: O FEITICEIRO, pág. 11)

Tudo é dor!

Porquê tanta dor nas tuas palavras, Feiticeiro?

Porque quando falo da dor – 

Ela passa. 

(pág. 11)

Gullander, esta é uma resposta simples para ti que chegavas sempre dois segundos adiantado a muitas respostas e podias ver com lucidez aterradora a dor, numa dimensão física. Para ti que te dispunhas a enfrentá-la de olhos abertos, desde dentro do teu corpo. Dor cortante, rígida, física. 

Nesses dois segundos de antecipação, te impunhas a coragem de seguir de mão aberta para apanhar a dor no centro mais ínfimo, desde esse ponto em que nasce. 

Tudo é dor. 

Com esse ponto da medida de um átomo na tua mão fechada, saltavas para a nossa humanidade (dois segundos atrasada), para num exercício de pedagogia, letra a letra, explicares o teu achado. - A primeira nobre verdade é o sofrimento!

Não entendíamos. Faltavam-nos os tais dois segundos para a percepção sobre a tua explicação. 

Capturavas as dúvidas nos nossos olhos e como professor apaixonado arremessavas nova explicação. – Pensem numa flor, no esplendor da sua beleza, pétala após pétala e depois em todos os pontos. Há, no final, um ponto no começo de todo movimento, que se vê no descarnar de todo entorno da base da corola. Isso é a dor! 

Que ponto é este…? 

Não estamos a divisar.

É isto nascer póstumo…?

Ías então ao death metal, nas suas imagens de horror para para provocar ondas de choque, estabelecias a imagem de um corpo dissecado, músculo após músculo, carne viva após carne viva, imaginariamente despedaçavas um corpo humano para achar no fundo a dor. Ela não nos aparecia nesse ponto profundo. Só víamos a fragilidade do humano trazida para um plano físico. 

E como se vive nessa dimensão de dor dilacerante… ainda por cima, em consciência demasiado lúcida, que percepciona até os sons diminutos de botas odiosas, em preparo para novo golpe sobre corpo curvado, indefeso…? 

É isso a Transcendência…? 

É essa a transcendência que busca o Feiticeiro? Esse teu alter-ego, transmutado numa entidade espiritual, solitária, desapossada de materialidades e de convicções universais, que valida exclusivamente o toque nas feridas do Cristo para ter autoridade de partilha da sua miséria e sofrimento. É essa a tua Transcendência para no final poderes perdoar os teus algozes? Porque para o Cristo, o mal é hospedeiro de criaturas de inocência, criaturas desvirtuadas na sua missão de transferência do bem Universal. 

A dor é a via para o amor

Miguel Gullander, fotografia de ENRIC VIVES-RUBIOMiguel Gullander, fotografia de ENRIC VIVES-RUBIO

O Trauma é a dor física, que martiriza, arrebata estados de consciência. Redimensiona o corpo para uma condição de Transição. Se um corpo não experiencia a dor, não atinge a Transcendência

Um corpo em Transcendência é uma entidade colectiva, que se realiza com os outros, nos espaços universais. Anda por cima de tratados sobre fronteiras e da ordem racial do humano, e dos critérios de género, e de nações, e de partidos e do mainstream e alternativo, e da autoridade das vacas sagradas, e da subalternização das massas populares. 

Um corpo em Transcendência anda pelos vales, calcorreia montanhas e montes, sofre, padece, mostra-se nas suas fraquezas e luta como um vinking. 

Quando lhe faltarem forças nas mãos, tem nos pés. Se faltarem nos pés, tem no cabelo, e se nem aí houver forças, tem no espírito a mesma atitude de resistência, like a viking! 

No céu cinzento dos vikings não há casas de pau-a-pique, com reboques de barro, para TI, Feiticeiro. Não há balaios e galinhas de sacrifício para rituais de cura da dor. Então o Feiticeiro tem de se fazer a terras de emergência para outros sentidos de humanidade. Por isso, o Feiticeiro escolheu crescer no seu íntimo, ter outros novos contornos para a o seu corpo nesses seus novos lugares.

É isto o pé na Tchón, que se propôs o Viking. Tchón é a via que se prolonga pelos vales, pelas florestas, por caminhos conhecidos e outros que se fecham à passagem do primeiro homem. Caminhos feitos para que homens cansados se percam. E o Viking se perdeu algumas vezes.

Mas ele é o Feiticeiro que resiste às fintas dos caminhos, à chuva atirada para o seu corpo frágil, às feridas acumuladas nos pés e no plano escondido da flor, ao paludismo, ao coma que tomou o seu corpo por dias. Sabia, no fundo do vale, várias Palancas Negras Gigantes, esperavam pelos seus olhos, para lhe dar uma visão única, poética, Através da Chuva.

Vamos subir a tua via, Gullander. 

Vai estar cheia de passos de gentes que te querem Mestre porque as amaste. 

Tudo é amor!

É este o momento em que tu, Feiticeiro, te converteste em entidade espiritual, na observância do teu corpo prostrado.

Agora vemos! 

A dor de que nos falaste com insistência, era, nos teus gestos, sinónimo de amor, pois quiseste andar sempre contra semânticas estabelecidas, postulados, profetas desumanizados. 

Essa dor é o amor pleno do qual fizeste forma de vida e matéria para a tua escrita. Vimo-la no trabalho sobre as capacidades dos que te estiveram ao redor. É isto o amor que nos quiseste dizer, por outros sinais, na tua forma de vida, na doação plena às pessoas, no cuidado e atenção com cada um, nos códigos cifrados da tua literatura, mas sempre lá esteve. Tudo é amor!

Para que o vivamos em pleno, para que se tivermos de bazar no dia seguinte, levamos como única garantia do fica com os outros, os nossos! 

Ficou, Gullander. 

Ficamos com o teu amor!

Pé na Tchón, meu Viking. Pé na Tchón, meu irmão 

por Zezé Nguellekka,
A ler | 13 Março 2024 | Miguel Gullander