"Terceira Metade": Entre o mel e o veneno: os perigos do doce encanto da língua portuguesa

I

O que trago para discussão do seminário “Terceira Metade” não constitui uma reflexão fechada em torno do tema da lusofonia. Trata-se de algumas inquietações de alguém que, originário de um contexto nacional e institucional de língua portuguesa, realiza pesquisa num outro contexto supostamente lusófono e tem como interlocutores privilegiados amigos e colegas de trabalho portugueses. Pretendo enfrentar a problemática da lusofonia a partir de determinadas situações marcadas por equívocos mútuos, por desencontros e por ansiedades, tendo como referência o Brasil, Moçambique e Portugal.

Uma primeira questão de entrada se impõe: afinal, o que é a lusofonia? A pergunta é tanto mais interessante na medida em que percebemos que por trás desta vaga noção encontramos distintos significados e que seu impacto político, cultural e social é bastante diferenciado nos distintos países que assumem o português como idioma oficial. Assim, assumo lusofonia como o debate existente em torno da lusofonia, e que tem pesos muito diferenciados se estamos no Brasil, em Portugal ou em Moçambique. Tal debate envolve, há um certo tempo, pensadores de distintas disciplinas, deita raízes na história intelectual portuguesa e brasileira e interpela, de forma diferenciada, o complexo processo formativo dos países africanos de língua oficial portuguesa e o Timor. As conexões entre o debate em torno da lusofonia e o lusotropicalismo são claras, contudo não creio que a ele se restrinja. Em todo caso, se os ecos lusotropicais são evidentes, não podemos esquecer a hispanidad ou a francophonie como correntes políticas e de pensamento com os quais a lusofonia compartilha as condições de possibilidade de sua produção.

Enfim, e de forma muito geral, incorporo a lusofonia como um debate, algo que se distancia de qualquer substância, um foco virtual que, tendo como referência a língua portuguesa, adquire uma dinâmica própria em distintos contextos nacionais. Longe de estarmos diante de um pensamento consensual, a lusofonia paira sobre situações de tensão que colocam estes distintos contextos em contato. Tais tensões nos ajudam a pensar sobre a fragilidade de determinadas linhas de pensamento que percorrem a lusofonia, mas não só: são capazes de revelar deslizes conceituais, acomodações e, sobretudo, uma certa tendência à autocomplacência que parece marcar determinados debates sobretudo no Brasil e em Portugal. Não creio que esta autocomplacência se faça presente nos contextos africanos, pelo menos a partir da minha experiência moçambicana. Ali, as crises sucessivas, as guerras e as complexidades inerentes a um processo formativo se têm impedido a consolidação de algo que se assemelhe a um debate público razoável, também evitam a autosatisfação que paraliza a crítica e faz mal ao pensamento.

II

De forma bastante geral, podemos dizer, sem medo, que no Brasil o debate em torno da lusofonia é nulo. A evidência de que somos um grande país na América do Sul que fala português parece neutralizar qualquer tipo de ansiedade pública diante de uma questão lingüística ou da língua oficial e nacional. O espanhol não é nenhum perigo e não atribuímos a Portugal uma autoridade específica com relação à língua. A identidade lingüística entre o Brasil e os demais países de língua portuguesa oscila entre uma retórica bastante restrita (em torno, por exemplo, de um possível papel de destaque a ser desempenhado pelo Brasil nos PALOPs e, mais recentemente, no Timor), seu caráter instrumental e prático – afinal, há um país na Europa que fala a nossa língua – e, sobretudo, a evidente ignorância característica de países que se sentem grandes.

Já em Portugal a coisa é outra: à esquerda e à direita, a lusofonia surge como um objeto de disputa. E aqui encontramos um pouco de tudo: boa vontade, paternalismo, revisão mais ou menos crítica da história da nação, colonialismo, pós-colonialismo, nacionalismos, buscas identitárias… tudo o que transforma a lusofonia num verdadeiro debate público, muitas vezes também carregado de imensa retórica, e com facilidade dissociado de projetos de ação concreta nos países que têm a língua portuguesa como língua oficial. O mais impressionante, talvez, seja o caráter afetivo que muitas vezes ganha o debate em torno da lusofonia: à identidade de Portugal com os países outrora parte de um império (que na verdade nunca foi um império, mas múltiplos impérios, diferentes no tempo e no espaço), se sobrepõe a expectativa de um vínculo afetivo entre os falantes de português no mundo. Note-se que não se trata de um projeto político, a la francofonia por exemplo, onde em meio a imensos exercícios de retórica, imaginou-se o francês como uma língua emancipatória. Não: o português nos permite a entrada num universo de sentidos e de afetos, num universo sensorial, num paladar, numa musicalidade, numa suposta história comum. Tudo cercado de imenso mistério.

Se vamos para Moçambique, contudo, tudo muda de figura. Se é verdade que nos deparamos com elites nacionais, regionais e locais fortemente apegadas à língua portuguesa (o que tem sido decisivo no que diz respeito à contínua expansão deste idioma no país), a noção de “língua do colonizador” surge ainda como um fantasma. Afinal, se não há mais um colonizador, como pode haver uma “língua do colonizador”? Não seria o português uma língua moçambicana mais como tantas outras? É evidente que não, pelo lugar do português na história e na geografia social do país. O colonialismo remonta a um período recente, onde atrás da retórica assimilacionista encontramos mil e um artifícios práticos a transformar o português num idioma exclusivo de uns poucos; a expansão da língua no período pós-independência não supôs uma superação, pois o português passou a fazer parte de um universo profundamente desigual, que se expressa, também, pela forma como a língua anteriormente exôgena foi incorporada no tecido social moçambicano.

Se há algo que conecta estes três contextos, não é o uso da língua, algo por demais genérico (e sempre cabe a pergunta, em português nos entendemos?), mas o lugar que a língua ocupa num complexo sistema de reprodução da desigualdade, da reprodução de diferentes formas de inclusão e exclusão.

III

Uma das coisas que mais choca um brasileiro quando chega a Portugal é descobrir que não falamos português, mas brasileiro. O que para nós seria uma aberração, dizer que falamos “brasileiro”, em Portugal é freqüente. Nas escolas, no Brasil, não temos aula de “língua brasileira”, mas de “português”; não seguimos uma “gramática de brasileiro”, mas “gramáticas brasileiras de língua portuguesa”. E nunca nos referimos a existência de um “brasileiro” por oposição ao “português”, mas sim ao “português com sotaque de Portugal” e “português com sotaque do Brasil”. Ou o nosso português e o dos outros, com sotaques.

Paradoxalmente, é mais freqüente um brasileiro afirmar dificuldade de compreensão com relação ao português de Portugal do que o inverso. O fenômeno, muitas vezes atribuído às telenovelas brasileiras em Portugal, à suposta rapidez com que os portugueses falariam a nossa língua, ou às particularidades fonéticas desta língua na península ibérica deve ser encarado com um pouco mais de cuidado. Parece-me, sim, que há uma espécie de “má-vontade” que deve ser interpretada como uma construção histórica e social. Pois não deixa de ser chocante que intelectuais brasileiros digam que preferem acompanhar um filme português com legenda ou que se neguem a compreender em termos como “algures”, “nenhures” ou “alhures” riquezas de uma língua comum. Estamos diante de uma espécie de resistência, e mesmo de uma espécie de preguiça, que deve estar relacionada à forma como nos relacionamos com a língua, e com a história.

Eu diria que no Brasil – e com todos os matizes que devem ser feitos com relação aos distintos grupos sociais que compõem algo que, com muito boa vontade, podemos chamar de sociedade brasileira – há uma espécie de relação das elites com a língua que prima por sua destruição sistemática, a qual está diretamente relacionada com a autocondescendência com a qual estas mesmas elites avaliam o que se convencionou chamar de “cultura brasileira”. É freqüente ouvirmos, das bocas menos suspeitas, que o português do Brasil é mais rico, mais vivo e mais doce, mais tudo, enfim, sendo que o superlativo não é conseqüência de qualquer esforço comparativo: é “mais” porque somos “mais”, e acabou. Na verdade, um ouvido cuidadoso perceberia que caminhamos para uma simplificação assustadora da língua, eliminando tempos verbais, desrespeitamos qualquer forma de concordância, ignorando a gramática como algo capaz de traduzir riqueza, mas como um conjunto de regras enfadonhas que atrapalham a nossa vida e a vida das nossas crianças…

Nossas elites conseguem a proeza de, concomitantemente, falar um português sinistro e se afirmar, com este português, diante do conjunto da população, exposta a um sistema educacional não menos sinistro. O “falar errado” facilita a rápida localização dos indivíduos numa cruel pirâmide social, diante de uma elite que se gaba de, também, “falar errado” e desprezar qualquer tipo de esforço intelectual de aprimoramento da língua na vida cotidiana.

IV

Em Portugal a situação poderia ser diferente. Afinal é, sem dúvida, de todos os países de língua portuguesa, o mais igualitário. No entanto, as coisas não são bem assim. Não vou entrar aqui em nenhum tipo de consideração com relação ao lugar que a diversidade regional desempenha no uso social da língua, imaginando que se trata de um universo extremamente rico, pois a diversidade regional do português peninsular é, com toda a certeza, impressionante. O que sim me chama a atenção é a relação que se estabelece com os falantes de português de outros países, em particular do Brasil.

Há muito que o brasileiro deixou de ser encarado como uma doce variante do português europeu, associado aos gloriosos anos da chegada da novela Gabriela em Portugal. O que era exótico e simpático passou a ser relativamente opressivo, a quantidade de brasileiros assusta num país que assume a sua pequenez, e mesmo a exuberância brasuca parece oscilar entre o encantamento e a rejeição. O brasileiro passou a ser, concomitantemente, um fator de aproximação – afinal é a mesma língua e não somos tão diferentes assim, ou melhor, somos muito parecidos – e um marcador de diferença – basta abrirmos a boca para sermos identificados como brasileiros. E aqui, os desencontros são múltiplos: são portugueses reclamando que não aguentam mais ouvir brasileiro por todo o lado, e brasileiros reclamando que Portugal não é realmente Europa. Não seria justo se não dissesse que muitos brasileiros reconhecem estar melhor em Portugal do que no Brasil, e que escolheram este país para educar os seus filhos: é, evidentemente, um país mais igualitário, mais sensato e menos violento.

Dificilmente, contudo, poderíamos associar estes desencontros a qualquer forma de racismo. Afinal, o que temos não é uma rejeição a algo que se apresenta como francamente diferente, mas uma surpresa diante da similitude. Uma espécie de narcisismo das pequenas diferenças. E mais: dificilmente os brasileiros se consideram objeto deliberado de racismo em Portugal, ao tempo em que não percebem suas piadas de português como racismo – nem mesmo como algo de profundo mal-gosto, ao lado de tantas outras tradições jocosas, com relação aos homossexuais e os negros, por exemplo. O que espanta aqui é que a similitude e muitas vezes uma espécie de igualdade de condições sociais em alguns campos produz um conjunto de narrativas e situações que, realçando fronteiras, não se produz em meio a complexos coloniais ou pós-coloniais. Afinal, há tempos Portugal não é a “mãe-pátria”, mas um “país irmão”; e os irmãos brigam, implicam um com o outro, mas, no fundo, se gostam.

Pequeno detalhe: os brasileiros não reconhecem nos portugueses uma antiga potência colonial; o corolário lingüístico desta afirmação é que não se reconhece uma autoridade lingüística aos portugueses. Um estudo sobre os debates em torno do acordo ortográfico revelaria esta falta de reconhecimento por parte dos brasileiros, assim como a falta de eficácia dos portugueses no que diz respeito a uma reivindicação de autoridade sobre a língua – algo, com toda a certeza, muito diferente do que ocorre com a Espanha, a França e a Inglaterra e os seus respectivos ultramares.

V

O contexto moçambicano é o mais interessante e, de longe, o mais complexo. Afinal, o português convive ali com uma infinidade de línguas africanas e, até há pouco tempo, havia um certo gosto em afirmar-se que se tratava de uma língua em risco ou, pelo menos, sob pressão. Curiosamente, aqueles que assim viam a situação do português, percebiam o perigo no inglês, e não nas línguas africanas, faladas com desenvoltura pela esmagadora maioria dos moçambicanos.

A quantidade de referências que surgem quando falamos de lusofonia neste país é impressionante. Afirmar que se trata da língua de unidade nacional deve ser interpretado como um exercício de liberdade e de praticidade. Não como uma espécie de destino ao qual não se poderia fugir e que acabou por condenar os povos colonizados à língua do colonizador. Como bem lembra Appiah, as elites formadas nos quadros dos diferentes colonialismos europeus sentem-se cômodas com uma língua que é sua e, de quebra, é a língua do poder. O pós-colonial supôs um imenso desafio em Moçambique, qual seja, aplicar efetivamente o apregoado pelo assimilacionismo português, a universalização do uso de uma língua restrita até então aos colonizadores, seus descendentes e uma ínfima elite nativa.

A relação com as línguas nativas, pelo menos até muito recentemente, não mudou substancialmente no período pós-colonial. Aquelas, antes idiomas dos indígenas, passaram a línguas das massas camponesas, marca da sua exclusão diante de um Estado que, ao querer libertá-las, pecou por não compreendê-las, repondo a oposição rural versus urbano consolidada ao longo do período colonial. A língua portuguesa, das elites e urbana, não deveria ser, contudo, exclusiva; as línguas nativas, dos camponeses, representam o perigo do tribalismo, sempre à espreita na África pós-colonial. Nos últimos anos, e com o financiamento do Banco Mundial, foram transformadas em línguas moçambicanas, ou línguas nacionais, e um meio importante para os políticos que se viam às voltas com algo novo, campanhas eleitorais e demanda por votos. Imaginar, contudo, um sistema de ensino que efetivamente incorpore as línguas nacionais é, pelo menos na atualidade, uma alucinação, e não apenas por falta de meios, mas pela forma como os moçambicanos percebem a educação formal. É na escola que devem aprender aquele idioma que pode favorecer a ascensão social dos indivíduos e auxiliá-los da compreensão desta máquina em grande medida hostil que é o Estado. Não há necessidade de ensinar o idioma nativo na escola, já disso se encarregam os membros da família e da palhota.

Lusofonia aqui significa, assim, ascensão e acesso. O Estado carece, contudo, de meios, e onde a lusofonia poderia e deveria se traduzir num esforço genuíno de cooperação entre Moçambique, Portugal e o Brasil, estamos diante de um fiasco. A política do livro é inexistente, faltam professores e material escolar, e as bolsas são insuficientes.

VI

E se os moçambicanos esperam um auxílio que não chega, muitos portugueses têm a expectativa de que a língua seja um instrumento de manifestação de afeto. Não são poucos aqueles que, ao chegar a Moçambique, sentem-se frustrados diante da falta de amor dos moçambicanos aos portugueses e a Portugal. As lembranças do período colonial são ofensivas – afinal, todos teriam sofrido com o fascismo, não só os moçambicanos – e as referências ao trabalho forçado, à guerra colonial ou aos maus-tratos infringidos à população africana até os momentos antes da independência costumam provocar profundo mal-estar.

Significativas são as múltiplas histórias que de racismo se contam em Moçambique. Boa parte dos portugueses que lá conheci afirmam peremptoriamente terem sofrido algum tipo de racismo por parte dos africanos genuínos, ou seja, os pretos. Concomitantemente, negam-se a reconhecer nos brancos moçambicanos, “moçambicanidade”; “os brancos moçambicanos, são portugueses”, afirmaram-me inúmeras vezes; “os indianos, estes sim são racistas, só se casam entre eles”, faz parte também de um bordão freqüente entre os portugueses ali instalados. Estas afirmações não são interpretadas como uma forma de atribuir essências a fenótipos que se expressam a partir de uma linguagem racial…

É impressionante a forma como afirmam a estupidez dos empregados negros, os mainatos, diante das suas ordens. Nunca lhes passa pela cabeça (e por vezes nem tampouco da elite branca moçambicana, ao contrário dos indianos, muito mais compreensivos neste sentido) que sua compreensão da língua portuguesa, e mesmo do universo urbano, é limitada. O conhecimento da língua portuguesa é um suposto, e a falta de familiaridade com este instrumento, uma forma de reprodução de uma desigualdade abismal existente entre as diferentes regiões sociais do país.

E assim, a língua portuguesa sobe de tom na relação entre brancos e negros em Moçambique: o uso contínuo dos gritos como forma de se fazer entender remete, evidentemente, ao período colonial. Com a diferença que agora o aumento de decibéis não é exclusivo dos brancos, mas também da negra elite que se apropriou do aparelho de estado e do português, e que também grita com seus mainatos. Pois o português não cria nestas situações identidades, mas desidentidades, que podem chegar ao limite de afirmar a existência de corpos indesejáveis. É a contrapartida da assimilação, o desejo violento expresso na forma de eliminação.

Foi ao tentar enfrentar a relação entre patrões e empregados em Moçambique que me encontrei com a faceta mais perversa da realidade do meu país. Nestas situações, transnacionais, a doce língua portuguesa perde todo o seu mel e é indissociável dos contextos injustos que nela se expressam.

Omar Thomaz Ribeiro participou em Terceira Metade, uma programação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com a curadoria de Marta Mestre e Luiz Camillo Osorio, e que se desenha no espaço geográfico e mental do Atlântico, em especial na triangulação Brasil, países africanos e Portugal.

por Omar Thomaz Ribeiro
A ler | 3 Julho 2011 | lusofonia, Terceira Metade