Dockanema: a realidade surpreendida e reinventada
No conjunto das disciplinas artísticas, e não só, que perseguem a representação da realidade, o documentário é, certamente, uma das que mais interrogações provoca. Tradicionalmente virado para um olhar fragmentado do mundo que nos rodeia e do devir do que acontece, o documentário actual coloca-nos problemas e desafios acrescidos quer na tentativa de enquadrá-lo dentro de uma determinada tipologia, quer na interpretação dos significados que dissemina.
Se, por um lado, é aí mais intensamente explorada a perspectiva do realizador, por outro, as aproximações ao cinema tradicional, enquanto arte de figuração da realidade, são maiores.
Daí o campo ambíguo que se nos abre em que, muitas vezes, vemos cruzarem-se elementos e motivos desconcertantes, com as pessoas filmadas agindo como personagens de uma história de ficção e com as situações retratadas surgindo, cada vez mais, com um grau de elaboração que põe em causa a sua dimensão factual ou, se quisermos, documental.
Habituados que estamos a acompanhar ou a ouvir falar de festivais de cinema, com as suas intermináveis e apelativas procissões de estrelas hollywoodianas, com as megatransmissões televisivas que nos prendem horas a fio nos sofás das nossas casas, com as correrias frenéticas de fotógrafos tentando imortalizar momentos e gestos das figuras em cartaz, uma pergunta pode, de imediato, assaltar-nos, diante desta 5ª edição do Dockanema: afinal, para que serve um festival de documentários, mais a mais, num país e numa cidade na periferia dos grandes circuitos cinematográficos?
Na esteira das edições anteriores, além de uma pródiga e variada oferta de propostas de filmes, não só de Moçambique, mas também da região e de outras partes do mundo, são nos prometidos debates, palestras e encontros profissionais que serão, sobretudo, momentos de grande interacção entre produtores, realizadores, jornalistas, críticos e público, em geral.
Digamos, face a isto, que uma das funções deste festival, e à semelhança de outros, é exactamente o de proporcionar um espaço especial de convívio social e intelectual tendo como objecto o próprio documentário e as suas ilimitadas potencialidades, quer como arte, quer como lugar de interpelação da realidade.
Por outro, se tivermos em conta, que na origem, o cinema caracterizava-se por captar e reproduzir, em silêncio, momentos e fragmentos da realidade, teremos que conceder que o documentário, pelas suas características e motivações, é um reencontro com essa mesma origem, uma celebração e uma pedagogia de uma memória que o tempo, este nosso tempo de todas as acelerações e de todas as perversões, tende a fazer esquecer.
O documentário, em especial no nosso caso e de todos aqueles que apostam neste género para contornar a insensibilidade dos que decidem, os constrangimentos de ordem financeira e outras formas de precariedade, funciona também como um acto de resistência. No caso específico de Moçambique, a actividade cinematográfica cinge-se heróica e exclusivamente ao documentário, à curta-metragem. Ao concretizar a sua 5ª edição de forma ininterrupta, ao mesmo tempo que alarga e aprofunda o alcance, dentro e fora do país, das suas realizações, a equipa do Dockanema e todos aqueles que tornam possível esta saga, mais não fazem do que tornar duradoiro e largamente impactante este acto insurreccional. A inteligência, a imaginação e a determinação são, afinal, pilares inamovíveis de todas as utopias.
Serão, pois, dez dias animadíssimos. Estarão em cartaz mais de oitenta filmes e em que o documentário, uma vez mais, será o protagonista-mor. E, aqui, teremos a oportunidade de ver como a vida, nos seus múltiplos matizes e valências, foi surpreendida pelo olhar indiscreto e inconformado das câmaras. Para fruirmos, para nos divertirmos, para nos actualizarmos, para reflectirmos, mas talvez para nos reencontrarmos com uma condição que o quotidiano teima em anular. Isto é, reinventarmo-nos, mesmo que momentaneamente, através do sentido crítico e questionador que nos deveria identificar e distinguir perante a profusão de imagens e temas que cruzam história, cultura, ciência, política, economia, geografia, ecologia, etnografia, etc.
Pertence já ao passado a ideia de que cultura, a arte cinematográfica, neste caso, é apenas diversão. Hoje, mais do que nunca, fala-se em indústrias culturais, em turismo cultural como factores de desenvolvimento dos países. O Dockanema é, portanto, uma oportunidade dourada para a qual todos deveríamos despertar e assim contribuirmos para a redução do fosso que nos separa do futuro.