Entre o visível e o invisível – cinema indígena de auto-representação
Os cinemas indígenas devem ser compreendidos como um capítulo a mais, um capítulo contemporâneo, no vasto e complexo território de relações com as imagens, com os espíritos, com as alteridades, presentes entre estes povos há tempos imemoriais. Regimes de visibilidade singulares que se relacionam às heterogeneidades nas formas de fazer, conceber e conferir uso às imagens. A Mostra Ameríndia: Percursos do Cinema Indígena no Brasil, realizada no Coleção Moderna do Museu Gulbenkian, traz um recorte de um múltiplo e diverso cinema, feito por realizadores indígenas, desconhecido ainda para tantos de nós. Embora muitos dos filmes tenham sido premiados em mostras específicas mundo afora, estas mostras têm visibilidade relativa, daí a importância de que cheguem em festivais centrais e possam ganhar mais e mais espectadores e visibilidade.
Para além da mirada exótica que a representação não indígena trouxe até nós, a diversidade ameríndia pode finalmente ser contemplada em maior plenitude nesse território por eles cada vez mais percorrido, o da produção de imagens e sons em movimento. Este outro cinema urge, escapa de imposições e estereótipos que enclausuram em padrões normativos a diferença constituinte entre os povos e seus modos de ser e olhar o mundo. Apropriação de técnicas e criação de linguagens protagonizadas pelos sujeitos, realizadores, cineastas, autores, pertencentes a diferentes povos que compõem o universo das mais de trezentas etnias hoje existentes (ou mais precisamente: resistentes) em território brasileiro.
Suas produções refletem, além de coletividades enraizadas, diferentes formas de relações ontológicas e cosmopolíticas entre os semelhantes (que, não separando o humano de uma natureza exterior, podem pertencer a vastos reinos, plantas, animais, espíritos) em uma comensurabilidade entre humanos e não humanos que nos escapa aos ocidentais. Enganam-se os que pensam que esse enraizar deixou tais povos presos ao passado. São cinemas que criam novas sementes, que carregam consigo estéticas particulares, movimentos de câmera, narrativas fantásticas, tradições orais que se reinventam e geram irrupção contra uma racionalização empobrecedora e reducionista. São igualmente gestos políticos de visibilidade e denúncia contra o atual estado de horror que se aprofunda no presente histórico para estes coletivos no embate contra as grandes corporações e contra o atual governo em um país que precisa ainda se sofisticar para merecer co-habitar, co-existir com os povos indígenas.
Ressaltemos que as culturas indígenas significam um repertório de conhecimento enorme. Os povos indígenas são os grandes preservadores da floresta, e isto se dá por uma resistência que ultrapassa a questão da sobrevivência física, mas envolve a transmissão de cosmologia e de modos de ser e existir. Se os povos indígenas sabem preservar as florestas é porque conhecem a fundo os seus animais, suas plantas e espíritos, e se incluem numa política que se expande para além do humano. Muitos dos becos aparentemente sem saída nos quais a sociedade hoje se perde são labirintos antropocêntricos. Pensar a relação com os não humanos, experimentá-la de forma tão radical como o cinema que produzem é capaz, é buscar sair destes labirintos atraídos para o que há fora dele: fazer alianças ontológicas, imagéticas e espirituais com os outros seres, visíveis ou invisíveis.
Desde 1986, quando teve início no Brasil o projeto Vídeo nas Aldeias, houve uma grande expansão da produção cinematográfica feita pelos povos originários, tais como Xavante, Kuikuro, Ashaninka, Huni Kuin e outros, estando no horizonte o conceito e o exercício da auto-representação.
“Ao invés de simplesmente se apropriar da imagem desses povos para fins de pesquisa ou difusão em larga escala, esse projeto tem por objetivo promover a apropriação e manipulação de sua imagem pelos próprios índios. Essa experiência, essencial para as comunidades que a vivenciam, representa também um campo de pesquisa revelador dos processos de construção de identidades, de transformação e transmissão de conhecimentos, de formas novas de auto-representação” (GALLOIS; CARELLI, 1995: 67).
Desde então, foram produzidos por realizadores de diferentes etnias, mais ligados a projetos institucionais ou com maior autonomia, além de filmes “para fora” - com sentido de denúncia urgente e necessária – muitos filmes realizados em contextos rituais, com pajés, curadores e líderes espirituais que, com seu trabalho, asseguram e transmitem o conhecimento tradicional de seus povos. Filmes que colocam em evidência as plantas e os animais na medicina tradicional, considerando a agência atribuída, por cada etnia, a estes seres não-humanos. Pensar sobre esse cinema é necessariamente refletir sobre uma perspectiva que considere de que modo os aspectos culturais e antropológicos afetam a construção da imagem e da narrativa. Filmar os diferentes rituais, festas, sessões e práticas xamânicas, gera a necessidade de repensar as estratégias enunciativas e poéticas, de modo a dar conta das diferenças cosmológicas que estas práticas encenam. Portanto as variações da linguagem cinematográfica nestes filmes são efeito e afirmação da autonomia do cinema indígena.
Em Bimi, Shü Ikaya (2018), de Isaka Huni Kuin, Siã Huni Kuin e Zezinho Yube (último filme do diretor de Já me Transformei em Imagem (2008), filme que abriu a Mostra no Doclisboa) ao mesmo tempo em que somos convidados a conhecer a força de Bimi – mulher-pajé que rompe a tradição do povo Huni Kuin de não iniciarem mulheres no xamanismo, tornando-se uma importante curadora deste povo –, somos também conduzidos por uma outra história, que num registro reflexivo, nos é contada ao mesmo tempo em que a testemunhamos: a da transformação da câmera de vídeo e da linguagem cinematográfica em elementos da cultura desta etnia. Se por um lado o reconhecimento da sabedoria de Bimi norteia uma narrativa principal, de registro dos cantos, gestos e depoimentos da pajé, há o entrelaçamento de uma narrativa subjacente que reflete e afirma a assimilação do cinema como instrumento de afirmação e transmissão dessa cultura para as próximas gerações.
O gesto dos Huni Kuin de registrar o trabalho e a sabedoria de Bimi em filme não é um caso isolado entre os povos indígenas. Desde os anos 80, quando começaram a se popularizar as câmeras VHS, com sua portabilidade e acessibilidade, surgiram projetos como o Vídeo nas Aldeias, que aliaram-se a lideranças indígenas interessadas na imagem em movimento como instrumento de resistência. Ao longo dos anos e com o desenvolvimento não apenas da tecnologia, mas também das metodologias de ensino, houve uma expansão (sobretudo nos anos 2000) e consolidação de uma rede de povos que designaram alguns de seus jovens para serem realizadores dos seus próprios filmes, com diferentes níveis de autonomia no manuseio do equipamento (há desde realizadores que exercem exclusivamente a função de filmar até outros, como o xavante Divino Tserewahu e Alberto Alvares, do povo Guarani que concebem, filmam e montam os seus filmes).
As razões que levam os povos indígenas a incorporar o vídeo como instrumento de suas culturas se relacionam a uma característica ontológica da imagem cinematográfica, que é a de registrar a duração de um evento, evitando que ele desapareça. A partir do registro de seus rituais, fazeres, saberes e do próprio cotidiano, os realizadores se apropriam do cinema como mais um dos instrumentos a serem utilizados no empreendimento central e definidor para os povos originários: o de valorização de sua perspectiva, de sua forma singular de ver o mundo e organizar sua existência, ou seja, o cinema como mais um dos empreendimentos de uma geração no sentido de garantir que sua cultura, sua estética específica, seu mejx (‘beleza’, para usar uma tradução corrente da palavra mebêngôkre, palavra que qualifica tanto coisas físicas, objetos e corpos, quanto imateriais, e que não exprime somente valores estéticos, senão igualmente valores morais ou éticos) permaneça, seja transmitido para as próximas gerações.
Estamos aqui, com a Mostra, em outros territórios, regimes de visibilidade e de conceito de imagem: relacionados ao cinema ritual dos Maxakali onde os personagens centrais, os yãmĩyxop, espíritos, são seres do brilho, da imanência e da intensidade. Já a noção yanomami de xapiri nos leva à distinção marcante entre duas noções de imagem: a yanomami e a nossa. A noção da imagem yanomami está profundamente
avessada pelas características do transe do ritual xamânico. Os xapiri são, para este povo, espíritos acessados pelos xamãs durante o processo ritualístico e se caracterizam pelas suas formas de apresentação como imagens xamânicas (utupë), como descritas por Kopenawa em seu livro A Queda do Céu.
Assim, quando apontam suas câmeras para o acontecimento, povos indígenas como os Huni Kuin guardam outras noções, outros conceitos, outras formas de ver e se relacionar com a imagem, mas igualmente com todo o mundo a seu redor. Querem “guardar”a cultura, não no sentido de mantê-la fechada, mas sim, como sugere Madi Dias ao citar o poema de Antônio Cícero, “(…) olhá-la, fitá-la, mirá-la por/admirá-la, isto é, iluminá-la ou por ela ser iluminado./Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.” Quando os realizadores /cineastas Huni Kuin escolhem o pajé Agostinho Ika Muru (um dos personagens centrais do filme que abre a Mostra) ou a xamã Bimi como pessoas a serem filmadas, não desejam somente reter seus conhecimentos, mas também colocá-los em evidência, iluminá-los para que eles também iluminem o presente. Neste sentido, o registro serve como uma arma para dedicar a cultura aos futuros Huni Kuin, e também para fortalecer os contemporâneos.
Lembremos que estes jovens realizadores não estão fazendo cinema como quem assimila um dado cultural alheio, mas estão inventando um lugar em sua própria cultura (poderíamos aqui dizer ontologia) para esta forma de pensamento – uma forma que se utiliza de blocos de duração/movimento, como diria Deleuze. Domingues, na esteira de Deleuze e Lévi-Strauss, compara a sofisticação do “pensamento selvagem” das lideranças indígenas àquele pensamento arriscado pelos jovens em seu fazer cinematográfico nascente.
Gilles Deleuze dá aos cineastas o status de pensadores. Cineastas-pensadores. Levando-se em conta as considerações de Claude Lévi-Strauss sobre a emergência de intelectuais indígenas, nós também passamos a chamar estes cineastas de intelectuais-intérpretes. Não sabemos e não nos importamos muito em saber se a filosofia indígena nasce ou das “rudes crenças” ou dos “primitivos intérpretes”.
Há intelectuais indígenas hoje que estão pensando a contemporaneidade com um nível de sofisticação e relevância que deveria ser mais radicalmente considerado pela sociedade global. Os cineastas indígenas estão, do mesmo modo, construindo um pensamento sobre o mundo através das imagens. Assim como há grandes lideranças e intelectuais indígenas – entre os quais, por exemplo, Davi Kopenawa, Aílton Krenak (um dos curadores da Mostra), Sônia Guajajara, Mário Juruna, Alvaro Tukano e tantos outros que, diante do massacre histórico a que são submetidos muitos povos, vêm até a sociedade não indígena para resistir através de seu conhecimento e do trabalho da diplomacia (no sentido conferido por Bruno Latour ao termo) –, há também aqueles que o fazem através das imagens do cinema, como Divino Tserewahu (Xavante), Pajé Agostinho Mateus Ika Muru Huni Kuin, Zezinho Yube, Yxa Pi (Patrícia Ferreira), Isaac Pinhanta, Alberto Alvares, entre outros, como um gesto estratégico para os seus povos inclusive no que tange à circulação de conteúdos culturais, de modo a resistir e a sensibilizar a sociedade ocidental. Todavia, a consistência e a continuidade do trabalho destes realizadores produziu filmes intensos, surpreendentes e complexos, que os inscrevem na história do cinema ao lado de outros cineastas da cultura ocidental, não indígena. Evidentemente, há níveis diferentes de envolvimento com a arte, de aprendizado da técnica e das poéticas cinematográficas, mas diante de filmes de valor tanto estético quanto etnográfico como os exibidos na mostra Ameríndia ou como Wai’a Rini (2015) de Divino Tserewahu, Urihi Haromatipë - Curadores da terra floresta (2014) de Mozarniel Iramari, os filmes de Isael Maxakali e tantos outros exemplos acreditamos que seja possível afirmar que já existe um corpus que nos autoriza a dialogar com este cinema como um legítimo pensamento criador em imagens sobre estas culturas. Por tudo isso, percebemos a importância e militamos por se ampliar os lugares de diálogo entre o pensamento cinematográfico indígena e a tradição ocidental do cinema.
Quanto à possibilidade de que os filmes indígenas sejam vistos pelo olhar dos brancos, é também de grande interesse das lideranças. Há uma constatação de que, ao conhecer a diferença entre os povos e seus modos de existir, os brancos têm mais chance de respeitar a cultura indígena. Uma esperança de que, afetado pelo pensamento indígena, o pensamento ocidental se transforme. Supor um índio genérico, isolado nas florestas e perdido na pré-história (como são colocados por um tipo comum de preconceito) é diferente de conhecer a complexidade e a singularidade de cada povo, suas histórias, tecnologias culturais, sabedoria e formas de vida e de pensamento. Por isso, o cinema está sendo também apropriado como forma de resistência cultural, pois também é preciso que os povos indígenas contem a sua versão da história, e com isso possam recriar o lugar que ocupam no tecido sensível.
Esta afirmação de lugares para a diversidade indígena no tecido social, no caso do cinema, ultrapassa uma visão que se tem do índio desde o exterior para causar uma mudança ainda mais profunda: atinge a organização social e cultural do olhar, e desafia a pensar quem é considerado como capaz ou não de contar uma história. Como diz Canevacci, o cinema indígena é responsável por alterar a hierarquia da visão, mudando os lugares de “quem tem o poder de enquadrar o outro e quem deveria continuar a ser enquadrado”. Podemos também nos referir a este processo através do pensamento de Rancière, segundo o qual a distribuição social de riqueza e poder não se resume aos critérios econômicos, mas também afeta quem tem o poder de acessar e construir a elaboração sensível do mundo, definindo “competências ou incompetências para o comum”. Os povos indígenas, ao ocuparem a linguagem cinematográfica (e outras formas antes consideradas ocidentais como a escrita, as belas artes, a fotografia, as hipermídias, etc), também estão criando uma ruptura no campo sensível comum, ocupando-o, retomando um espaço. Ou como diria Aílton Krenak, sobre os realizadores indígenas: “Hoje eles conseguem invadir a tela. Invadir terra e tela, duas paisagens que eles aprenderam a ocupar.”
Talvez só possamos ter uma medida do alcance político deste cinema e do seu impacto sobre o regime sensível de nossa época quando analisarmos os desdobramentos desta alteração do lugar de fala do indígena, que torna-se também aquele que elabora narrativas sobre os próprios rituais. Este deslocamento altera tudo o que pode ser dito sobre estas culturas, e altera também e de modo radical, o próprio cinema, reinventando modos de filmar, de montar e de contar histórias. É uma crise, no melhor sentido do termo, ou talvez uma insurreição: onde antes só havia índios diante da câmera, há agora índios diante e atrás delas, narrando o que escolherem, do modo como são capazes.
Este deslocamento além de implicar a readequação das categorias cinematográficas (por exemplo, autoria, direção, ficção, etc), de alguma forma leva à invenção de novas dinâmicas estéticas: o pensamento indígena ocupa a linguagem cinematográfica, deslocando-a a seu modo; a linguagem cinematográfica é desafiada a aproximar-se de elementos culturais nunca antes por ela figurados.
Para exemplificar no campo central da existência dos povos originários, podemos pensar os filmes, feitos por indígenas, sobre xamanismo. As práticas xamânicas implicam a tradução de aspectos cosmológicos para a linguagem cinematográfica, exigindo uma reconfiguração da linguagem padrão, originando novas ideias em cinema; são práticas muito singulares e variáveis entre as etnias, e o lugar de fala de um cineasta indígena é particularmente distinto de outro narrador; a própria narrativa sobre estas práticas altera e reescreve categorias do cinema e do conhecimento em geral de modo intenso e extenso (desfaz as fronteiras rígidas entre o humano, as plantas e os animais, entre o testemunho e o delírio, ou ainda, entre o visível e o invisível).
Os cinemas indígenas estão também constituídos por filmes abertos a mundos por vir, como analisa André Brasil num artigo em que compara a arquitetura do kuxex, a casa dos cantos do povo Maxakali, com a poética dos filmes realizados por eles:
Se há então algo como uma visada interna, ela se constitui por suas relações com o fora, relações que a casa dos cantos (kuxex) cifra em sua precária arquitetura: a frente fechada ao centro da aldeia, seu fundo é aberto, voltado à mata. No caso dos filmes tikmũ’ũn, uma analogia poderia se desdobrar para dizer do plano cinematográfico: tal como a kuxex, sua parte visível (sua “fachada”) é cerrada, sendo a parte invisível (o “fundo”, o extracampo) aberta, voltada para fora, exposta aos animais e espíritos que, vindos da floresta, visitam a aldeia.
Deixamos como pensamento ainda aberto, ao final, a percepção de que há em grande parte dos cinemas ameríndios uma forte relação ontológica com o exterior dos corpos, tradução de uma cultura animista, acentrada, não antropocêntrica, mas antropofágica. A visualização não deve ser uma procura de constantes que permitam a descrição do que seria a cultura indígena ou um ritual de cura ameríndio, mas sim uma reflexão sobre em que medida estes filmes, ao as sumirem esta atenção à duração e a abertura aos seres não humanos – sejam eles espíritos, plantas ou animais – incorporam à linguagem características de seu modo de existência, não apenas o registrando mas, em certa medida, constituindo-o.