Leonor nas Cidades - Baan

Há demasiados filmes portugueses sobre a juventude. Nem tantos sobre Lisboa. O novo filme de Leonor Teles é sobre ambas. Não que Lisboa não seja cenário ou motivo de atenção na não-ficção, mas é mais raro surgir como personagem na ficção. Mesmo o filme Onde Fica esta Rua (2023), revisitação aos Verdes Anos pela dupla de João Pedro Rodrigues e João Guerra da Mata, não nos traz a cidade como havia feito Paulo Rocha em 1963, mas antes um regresso minucioso aos lugares do filme, desprovidos do seu sentido de então e subtraindo as relações do presente. Acaba por funcionar quase como roteiro museográfico sujeito a uma memória particular afinada no cuidadoso labor técnico dos autores, mais ou menos interessante consoante essa subjetiva memória nos comprometa ou implique.

A cidade de Lisboa torna-se personagem, por exemplo, em Belarmino (Fernando Lopes, 1964), em O Cerco (António da Cunha Teles, 1970) em O Mal Amado (Fernando Matos Silva, 1973) e em Arena (João Salaviza, 2009). E também em Baan de Leonor Teles, nos momentos em que a realizadora, argumentista e diretora de fotografia, filma a Almirante Reis, a Morais Soares, o Bairro das ex-Colónias, talvez porque as conheça bem. Na passagem destas, ou da rua do Benformoso, para as ruas de uma cidade imaginária, cidade ponto de fuga, nasceu a pessoa-amor que traz consigo a possibilidade de saída do sufoco sentido em Lisboa. A transição mágica destas ruas para uma cidade na Ásia, para lá do desejo utópico de outro lugar, ilumina um continente presente em tantas comunidades que vivem e trabalham no país e nesta zona de Lisboa em particular. Nestes momentos emergem, coincidindo, a personagem e o tema: a cidade e a máquina-cinema de Leonor Teles. A máquina é posta também em movimento pelas duas atrizes Carolina Miragaia e Meghna Lall que interpretam as personagens principais com presença desassombrada. 

 Meghna Lall Meghna Lall

Uma promessa de contra-cultura 

A superlativa personagem principal percorre outros espaços na cidade de Lisboa, alguns situados no espectro referencial ou reminiscente do cinematográfico. A divagação inicial no bar Procópio (O Lugar do Morto, António Pedro de Vasconcelos, 1984), a viagem na moto e mesas de bilhar (O Capacete Dourado, Jorge Cramez, 2007), o passeio no viaduto pedonal (reminiscência de Truffaut) com música pop contemporânea. Tanto nestas cenas como na cidade nova dos negócios onde L. trabalha, já não encontramos Lisboa mas um acumular excessivo de cultura pop, à exceção da presença discreta dos trabalhadores na obra que L. visita. 

A fulgurante curta Balada de um Batráquio da mesma realizadora (urso de ouro no Festival de Berlim) apresentou-nos em 2016 uma autora de 24 anos com um cinema-ação pleno de agenda crítica, conquistada pela demanda em torno das suas próprias políticas/questões de identidade, motivo de uma pesquisa anterior em Rhoma Acans (2013), e continuada nas memórias do espaço do seu crescimento em Vila Franca de Xira, Terra Franca (2018) ou o mais recente Cães que Ladram a Pássaros (2019), que podia ser um prólogo ao filme presente. Os temas dessa agenda estão presentes em Baan: a xenofobia, dirigida a classes baixas e altas, o encarecimento da habitação com a gentrificação na presença de classes altas estrangeiras, as ideias de liberalismo selvagem, o desemprego ou subemprego para as gerações atuais qualificadas. 

O festim do eu na fast food 

Tudo isto empurra L. para a sensação de sufoco na sua vida presente. A mudança de casa ou o fim do amor talvez sejam pretextos ou gatilhos para ali chegar.

A maioria dos minutos desta primeira longa metragem de ficção em 16 mm ocupa-se do estômago e dos excessos do fast food, em derivas circunscritas ao prisma individual. A intensa liberalização da cidade, apontada criticamente pela personagem e nos temas políticos presentes, o tipo de relações económicas e sociais que dependem do indivíduo como lugar preponderante, mais ou menos isolado e com acessos truncados ao lugar da comunidade, deixa a sensação de que o peso na narrativa do filme das derivas fechadas no Eu sofre da mesma contaminação. A câmara e o ponto de vista concentram-se nela. Fará parte do aparattus neoliberal a individuação levada ao extremo mais do que a crise inapelável de ser jovem. 

Há uma clivagem formal do filme. Nos momentos em que se desenrola a atividade profissional de L. na city ou relacionada com ela, as cenas, diálogos e elenco aparecem-nos algo amadores e atabalhoados se comparados com os momentos da sua vida privada, entre as personagens principais, e um pouco com a amiga confidente, com mais verosimilhança e vigor. Esta diferença formal sublinha a sensação de deslocamento da personagem principal em muitos desses momentos. Quando encontra a sua promessa de amor desaparece o sentimento de deslocamento e  de não pertença. Lisboa evapora-se como personagem tornando-se adereço ou cenário quando a personagem está no lugar errado. 

No filme insinua-se a autocrítica, a crítica ao lugar de privilégio que permitiria conviver ou sobreviver com realidades duras, apesar de se sonhar uma cidade imaginária ou possível ao virar da esquina. Lugar de privilégio cuja dimensão passamos a compreender melhor no final do filme, a chave talvez para entender a natureza do sufoco de L. 

Leonor Teles diz que este é um filme sobre o fim do amor que conduziu a uma mudança de casa, eu diria que é um filme sobre uma pessoa jovem atormentada pelas suas contradições.

 

Margarida

A nossa solidão é esta avenida decotada

do passeio do acaso, do furtivo e escancarado,

artéria tantas vezes paralela ao coração,

onde um almirante não serve nenhuma arquitetura;

onde sobre a miséria do terminal do elétrico

até à igreja fronteira à sopa dos pobres,

temporárias sentinelas armando cartões

nas fachadas das lojas, trastes, artigos

de ocasião (apanham-nos de dia noivos

investindo num projeto de família).

O nosso é este meio de solidão, que se carrega

de qualquer coisa que não é bem perpétua

atmosfera de névoa, nem sujidade, que também

é terna, pena suspensa (corvos de Lisboa, naus

gastas), saudade, por que não, sentimento 

de povo sem pátria desmentido; creio creio

nisto que na indigência e vício coexiste a gente

dá-se e da carência faz-se uma disciplina às claras

e por muito pouco desprende-se quase nada

que se tem

Margarida Vale de Gato, Mulher ao Mar e Corsárias, Mariposa Azual, 2023.

 

por Josina Almeida
Afroscreen | 14 Fevereiro 2024 | Baan, cidade, juventude, Leonor Teles, Lisboa