Barthélémy Toguo: unbounded exile
“É impossível falar razoavelmente em alto mar”.
Thomas Bernhard, Immanuel Kant, 1978.
Barthélémy Toguo chegou à Bienal de São Tomé e Príncipe (2008) com uma mala cheia de rolos de papel de alumínio. Tratava-se de remontar Terre Promise, a instalação que havia criado sete anos antes para a exposição Emergency Exit (Le Lieu Unique, Nantes, 2001), sobre os constrangimentos à mobilidade internacional e o desenraizamento africano face à cultura e história europeias. O papel de alumínio era o elemento desestabilizador da instalação anterior, constituída por uma pista longitudinal de madeiras, pedras… destroços. Enquanto que em Nantes estes materiais, pobres e arcaicos, haviam sido apresentados tal qual, em São Tomé, B. Toguo revestiu-os com a película fina e brilhante. A instalação era a mesma, e evidentemente outra.
No salão nobre do Palácio Marquês de Pombal, em Lisboa, integrado no projecto “Carpe Diem - Arte e Pesquisa” de curadoria de Lourenço Egreja, Paulo Reis e Rachel Korman, que levou a cabo um extenso programa de exposições, “masterclass”, personal Dj, ateliers abertos e conferências, expõs-se uma das grandes instalações de Toguo, intitulada Road for Exile1. Estivemos novamente em presença de uma oportunidade para revisitar projectos anteriores e a iconografia do artista, tendo como ponto de partida o desenho.
Barthélémy Toguo regressa e expande a sua “primeira” instalação no palácio de traça setecentista onde morou o Marquês de Pombal, e onde toponímia e história interceptam a Rua do Poço dos Negros2 e a abolição da escravatura3. A instalação tanto transforma o quadro espacial e historico-temporal em que se apresenta, como se deixa transformar por este, gerando-se, pois, interferências recíprocas. Esta constitui uma dimensão essencial da instalação, o que faz ampla justiça ao “sentido teatral ou cenográfico” já referenciados por Rebecka Wigh4 ou Jan-Erik Lundström a respeito da obra do artista5.
Road for Exile reflecte o trabalho que Toguo realizou ao longo de dois anos sobre o modo como a viagem codifica e exprime o tema do exílio, relacionando-o com o drama humano que constitui um traço essencial das grandes narrativas europeias. À primeira vista parece-nos um cenário em que tudo está imóvel (sugere-nos inclusivamente pintura), mas posteriormente a instalação exclui esse aparente efeito de “imersão”, e cada elemento ganha a sua autonomia. Jan-Erik Lundström caracterizou estas instalações como “assemblage a três ou quatro dimensões”, composições de materiais distintos “[que] jogam com as escalas, brincam e divagam com os materiais”6. E justamente é a montagem (a instalação) que reúne aquilo que à primeira vista nos parece contraditório. Na cabeça do espectador joga-se o jogo da colagem, a justaposição que lembra as práticas dos surrealistas que, como se sabe, indagaram com atenção os africanos7.
Road for Exile prossegue na mesma direcção. No centro da instalação, e com grande efeito escultórico, apresenta-se uma embarcação pequena sobrelotada de embrulhos e mercadorias, de diferentes tamanhos e cores. Um barco demasiado frágil para a carga que transporta. No chão, garrafas devidamente alinhadas, formam uma base instável, o mar. As paredes da sala estão completamente forradas a branco, e anulam a decoração da arquitectura pombalina do palácio. Os panos mosquiteiros, elemento recorrente na obra do artista, são utilizados como dispositivos cénicos8 que, como uma espécie de velatura, remetem para o sonho. O vídeo, a fotografia e a pintura são outros elementos que constroem esta grande instalação, na qual o espectador poderia estar como num teatro: sentado e em silêncio, até ao fim da peça. Tal como as restantes instalações9, Road for Exile pode ser lida como uma recriação anti-naturalista do mundo, ou seja, um conjunto de procedimentos que passam por aproximações e distanciamentos, imprevistos e encenações, pelo uso de imagens de dor para falar de beleza, dirigindo o olhar aos objectos para falar dos sujeitos.
Existe uma relação de familiaridade e estranheza para o espectador que chega à sala onde se expõe a instalação. Mobilizando a memória, imagens do passado, e imagens do presente será evidentemente capaz de estabelecer uma constelação de novas imagens, espécie de mapa do futuro desenhado com materiais do passado - a que W. Benjamin chamou “imagem dialéctica”. O espanto é uma dimensão essencial desta economia; não somente espanto em relação aos materiais ordinários que Toguo emprega e às ligações e justaposições que propõe; mas ainda espanto perante tal cenário face à arquitectura clássica e nobre do Palácio, caracterizado pela sucessão sincopada de salas decoradas com cenas mitológicas.
Se o espectador possuir algumas noções de história da arte, relacionará a frágil embarcação de Toguo com a tela de T. Géricault, Le Radeau de la Méduse (1819), obra de um intenso pathos, acerca da qual Michelet diria: “C’est la France, c’est notre société toute entière qu’il embarque sur ce radeau de la Méduse”10. Movimento e imobilidade são atributos tanto da grande tela de Géricault onde se representa a jangada à deriva, como da instalação de Toguo, ambas realizadas a partir de uma pesquisa documental que tem como horizonte o contexto africano (o naufrágio de Méduse passa-se ao largo da Mauritânia, no contexto da restituição do Senegal à França pela Inglaterra durante o período colonial; Road for Exile evoca o trânsito mental, humano e geográfico entre África e o Ocidente).
Em plena tempestade, a viagem segue os perigosos caminhos do sonho e do inconsciente.
A luz da instalação de Barthélémy Toguo é uma espécie de luar, que não é dia nem é noite, uma luz enganadora que altera a ordem dos factos, em tudo semelhante às palavras que um dos tripulantes da jangada do desastre de Géricault, o Capitão Dupont, referiu nas suas memórias: “Ainda hoje não sei a verdade sobre essa noite terrível”.
A noite e o enredo são intrínsecas a ambas “epopeias” (a de Géricault e a de Toguo), jamais lineares mas assombradas, reminiscentes de outras imagens, e que nos fazem sentir uma estranha familiaridade.
Um aspecto importante na pintura de Géricault (e latente à instalação de Barthélémy Toguo) é o tema do mestiço: um dos náufragos acena ao navio de resgate na linha do horizonte. Ele é um mestiço, um crioulo, efeito e símbolo da mistura de raças, que “resolve” a situação dramática da imagem. Este tema, marca presença na instalação de Toguo através da jangada, símbolo do que “liga”, daquele que está “entre”, na viagem entre o Norte de África e Gibraltar ou a Sicília. Com idêntica expressão, o artista Isaac Julien no video-instalação WESTERN UNION: Small Boats (2007)11, existe um anjo-mestiço que apresenta o trânsito dos corpos no mundo e nos fala dos constrangimentos da viagem no espaço contemporâneo.
Desta forma, a proposta de Toguo tem um sentido “político” manifesto (no sentido de Jacques Rancière). Se, por um lado, comenta, posiciona-se, dá a ver um tema da actualidade política, não o faz segundo a modalidade (conservadora ou mediático-espectacular) da coordenação natural de imagens, mas antes através da mise en scène de materiais heterogéneos e de operações que deixam o sentido à deriva. Com efeito, só este último aspecto, esta poética, autoriza que tudo se passe de forma diferente, e que se qualifique de política, a proposta de Toguo.
Texto previamente publicado na Revista L+Arte.
- 1. Inicialmente exposta em Black Paris, Musée d’Ixelles (Bruxelas, 2008), e posteriormente no ARCO (Madrid, 2008).
- 2. Onde se pensa ter sido local de despejo de cadáveres negros: cf. Jean-Yves Loude, Lisboa na Cidade Negra, D. Quixote, Lisboa, 2005.
- 3. Em 1761 Marquês de Pombal delibera a abolição da escravatura dentro da metrópole, mantendo-se, contudo, nas colónias.
- 4. Rebecka Wigh, ‘Absurdité du réel et politique du corps’, in Notre histoire, Paris Musées, Palais de Tokyo, 2006. J.-E. Lundström, ‘Performing the Hyphen: Theses on Barthélémy Toguo’s Theatres of Translation’, in Barthélémy Toguo’s: The Sick Opera, Palais de Tokyo, Paris, 2005, p. 26.
- 5. J.-E. Lundström, “Performing the Hyphen: Theses on Barthélémy Toguo’s Theatres of Translation”, in Barthélémy Toguo’s: The Sick Opera, Palais de Tokyo, Paris, 2005, p. 26.
- 6. J.-E. Lundström, ‘Performing the Hyphen…’, cit., p. 26.
- 7. Entre outros, veja-se J. Clifford, ‘On Ethnographic Surrealism’, in The Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethnography, Literature and Art, Harvard University Press, Cambridge (MA), 1988, pp. 135-151.
- 8. P.ex. característico do teatro de Romeo Castellucci / Societas Raffaello Sanzio, veja-se Genesi - From the museum of sleep (1999) ou A. 02 Avignon (2002).
- 9. Iniciadas com Unifinished Theater (Bienalle de Lyon, 2000), prosseguindo com Terre Promise (cit. supra), Rain on a Private Garden (Palais de Tokyo, Paris, 2006) e Lawless Zone 1 (‘Society must be defended’, 1st Tessaloniki Biennial, 2007).
- 10. Jules Michelet, L’Étudiant: cours de 1847-1848, Calmann-Lévy, Paris, 1877, p. 130: “C’est la France elle-même, c’est notre société tout entière qu’il embarqua sur ce radeau de la Méduse…Image si cruellement vrai que l’original refusa de se reconnaître. On recula devant cette peinture terrible; on passa vite devant; on tâcha de ne pas voir et de ne pas comprendre”.
- 11. Trilogia constituída por ‘True North’ (2004), ‘Fantôme Afrique’ (2005) e ‘WESTERN UNION: Small Boats’ (2007). Sobre a apresentação de ‘WESTERN UNION: Small Boats’ em Lisboa, veja-se Sofia Nunes, 2009, Isaac Julien - WESTERN UNION: Small Boats na ArteCapital (acedido em 08/2009) .