Conversa com Mia Couto
Mia Couto define-se como biólogo a tempo inteiro e escritor nos intervalos. É casado e tem três filhos. Vive em Moçambique, onde nasceu. Vem a Portugal duas ou três vezes por ano. Foi uma sorte tê-lo encontrado disponível numa das vezes.
A história desta entrevista, ou estória, como ele gosta de dizer e escrever, começa num encontro mais ou menos acidental dois dias antes da manhã em que supostamente conversaríamos. No dia do meio, que começou demasiado cedo e terminou demasiado tarde, acompanhei-o num périplo de escritor de sucesso, como pomposamente lhe chamei. Sucesso quer dizer milhares e milhares de pessoas que lêem os seus livros, plateias rendidas, conversas inesquecíveis, filas intermináveis de autógrafos. Por fim, sentado num estúdio improvisado, agarrou-se a uma chávena de chá. Seriam duas da manhã. Enquanto o fotógrafo lhe roubava restos da alma a desvanecer-se, caracterizou cientificamente flores surripiadas a uma das conferências.
Serve a história para dizer que, quando finalmente nos sentámos para a entrevista, já sabia da sua extraordinária timidez, do seu amor violento a Moçambique. E estava também contagiada pela mística de África. Pareceu-me, por isso, demasiado suspeitoso que na mesa nua onde se depositou a conversa estivesse, sozinha, uma moeda de cinco escudos.
Como veio aqui parar esta moeda de cinco escudos?
É um esquecimento. Se fosse de mais valor não tinha esquecimento.
Foi você que a esqueceu aqui?
Quer saber se é uma coisa supersticiosa? Não é. Embora tenha as minhas superstições, não estão ligadas com moedas. É uma coisa que bebi do meu lugar, de Moçambique. O dinheiro não está ligado nunca às coisas do espírito. Os antepassados, que organizam o mundo dos vivos, nunca aceitam que a relação com eles passe pelo dinheiro.
É a antítese do mundo real onde tudo é comprável e as pessoas têm sempre um preço. Mesmo em Moçambique, apesar da importância que se atribui aos espíritos e à relação com os antepassados.
O tempo dos antepassados era um tempo em que não existia este dinheiro, como moeda de troca. Usava-se comida e, sobretudo, bebida. A bebida está ligada aos rituais, sempre. Em todas as grandes festas é um passo para a alienação e para a desordem colectiva. Há algumas em que os homens podem fazer amor com as mulheres que quiserem e vice-versa.
Você bebe?
Bebo meio copo e caio fulminado! Através do álcool instituo a desordem só em mim próprio.
É uma coisa que lhe agrada?
Não me agrada nem desagrada. Tenho um corpo chato que não me deixa portar mal. Põe sempre policiamentos e tem uns vigilantes à entrada. Sinto-me mesmo mal com a bebida. Por outro lado, tenho umas coisas interiores, uns truques, umas hormonas, que me fazem ter acesso a essa viagem que se tem quando se está embriagado. Posso embriagar-me sem beber.
Sem recurso a subterfúgios, sejam eles quais forem?
Os meus amigos dizem que caí no caldeirão.
Como o Obelix?
Sim. Todos nós temos essa possibilidade.
Os livros podem ser uma maneira, muito correcta e aceitável, de se evadir de si. A bebida implica, normalmente, uma transgressão.
Fico muito atrapalhado quando as pessoas se dirigem a mim e comentam os livros como se tivesse feito aquilo num acto de consciência. Sou uma outra pessoa quando se dirigem a mim. Aquilo corresponde a um momento quase de transe, em que viajei para outra parte de mim.
Sente necessidade de explicar isso?
Sinto. Não acho que seja uma romantização do acto de criação.
O que despoleta o processo criativo?
Há muitas situações: pessoas que encontro, viagens que faço.
…
Já respondi. Não respondi à sua pergunta?
É suposto isto ser um rígido exercício de pergunta-resposta?
Daqui a bocado está a fazer-me psicanálise. Se escorrego, começo a contar a história da minha vida e dos meus traumas.
Qual é o problema?
Não estou muito preparado para desatar a fazer uma espécie de catarse dos meus traumas da infância, escondidos.
Já houve um processo catártico para chegar a essa consciência.
Tenho consciência que um dos temas a que recorro é a chamada identidade sexual. Está muito presente nos meus textos. Quando os leio, longe do acto de criação, entendo que usei o texto para resolver isso dentro de mim de uma maneira tranquila e serena.
Antes de mais, acredita na psicanálise?
Tanto quanto acredito numa relação entre duas pessoas que passe pela feitiçaria ou pela religião. O que está em causa, em cada um dos casos, é a crença que aquele outro tem poderes terapêuticos que te fazem chegar além de ti próprio, para te explicar de uma outra maneira. É o poder que depositamos no relacionamento que faz essa relação verdadeira.
Então, o psicanalista é uma pessoa treinada para desenvolver uma determinada relação com o outro como pode ser uma feiticeira ou um padre?
Um amigo. Acho que se podem equivaler.
Tem um melhor amigo?
Tenho vários.
O que é que eles fazem?
São diversos. Quase todos têm um traço comum: são pessoas irrequietas, têm uma pequena dose de loucura de maneira que não sejam completamente loucos. Vão de camponeses até jornalistas, escritores. A vida em Moçambique teve momentos tão duros e tão extremos que aprendi a revalorizar a amizade com critérios que não eram os meus.
Os seus amigos são todos homens?
A maior parte sim. Porquê?
Porquê pergunto eu.
Também me interrogo. Se calhar porque vivemos num mundo em que é complicado um homem ter grandes amigas, sem que isso passe por mil explicações e não se converta noutra coisa.
Há uma vulnerabilidade em si que as mulheres adoram porque, supostamente, lhes desperta o instinto maternal. Sente-se muito alvo da cobiça feminina?
Um amigo meu diz que organizo esta aparente fragilidade como um truque de sedução, como coisa apelativa. É provável que aconteça, não nego. Por outro lado, cresci no meio desta tribo, que se chama «Os Homens», e desenvolvi em relação a características ditas masculinas uma espécie de rejeição. Uma certa petulância, uma auto-suficiência, um sentido prático na relação com o dinheiro. Gosto muito de ser homem. Mas para ser homem, não preciso de ser aquilo.
No Ocidente os valores da masculinidade e da feminilidade estão cada vez mais diluídos. Em Moçambique a masculinidade é muito exaltada. De onde vem essa resistência?
Vem, por exemplo, dos rituais de iniciação masculinos. Mudaram muito, eu sei. No meu tempo implicavam uma certa violentação.
Para os homens ou para as mulheres?
Era uma violentação no sentido duplo. Era como se desligava as questões sexuais das afectivas, uma coisa que não conseguia aceitar. Pertenço à geração que se iniciava com as prostitutas. [risos] Corte, corte!
Corto esta frase?
Não. Não me pergunte mais sobre isto. Há uma coisa curiosa que queria dizer: na tradição moçambicana, a que não pertenço senão parcialmente, os homens, dentro dos rituais dessa masculinidade, podem passar por relações homossexuais. Recordo uma coisa que me chocou na altura, tinha 14 ou 15 anos; um amigo meu disse: «Esta noite vou dormir com um homem porque isso me dá força». Ele não era de todo homossexual nem se iria nunca assumir como homossexual.
Qual era o papel que ele ia assumir, o do activo ou o do passivo?
Não sei. Os mineiros, e quase todos os homens do sul trabalharam num período das suas vidas nas minas da África do Sul, têm um ritual em que se casam. Cada um tem a sua mulher, que é um homem, e vivem maritalmente durante o período em que estão nas minas. Mantêm as suas mulheres, voltam para as suas mulheres e não se convertem em homossexuais.
Num dos seus livros, «Terra Sonâmbula», há um velho que masturba um rapaz que tinha adoptado. É uma situação que suscita múltiplas leituras. Fica mais ou menos evidente o incesto, que é recorrente noutros livros; há a iniciação que pode comportar a homossexualidade mas que não implica que ela seja continuada; e há uma mística que envolve o acto e o torna mais bonito, sem a secura com que uma relação deste tipo seria apresentada.
Sobre o tom encantatório, é essa a tarefa da literatura: pegar nas coisas e tentá-las encantar. É uma cena simbólica que retrata dois Moçambiques que a guerra fez separar. O velho que representa uma raiz longínqua; e o miúdo que representa a hipótese de futuro (que está doente). O livro começa com este menino que, por causa da guerra, está desumanizado, não sabe andar, escrever, ler, não sabe nada. Há toda uma reiniciação que é feita por este velho. Da mesma maneira que o ensina a falar uma outra vez, ele o ensina a ter prazer, também. A cena da masturbação tem, desse ponto de vista, o mesmo valor que o velho ensinar o menino a marchar. Não é que o velho retire daí um prazer, ele não está instrumentalizando o menino.
Como é o incesto visto em Moçambique?
Também é interdito. Mas em certas circunstâncias, muito raras, um feiticeiro pode recomendar que um pai faça amor com a filha.
Num outro livro, «A Varanda do Frangipani», uma personagem assume que matou um homem porque o julgava portador do espírito do seu pai, que havia abusado dela. Na sua resistência a essa forma de masculinidade parecem sucessivas maneiras de matar a figura masculina.
Qual é a primeira construção da nossa masculinidade? É a figura do pai. A do meu pai, que felizmente está vivo e amo muito, contradiz o estereótipo do macho. É uma pessoa gentil, de modos suaves sem ser feminino, que valorizava muito o que era descontabilizado na altura. Trocava tudo para ver um poente bonito. Enquanto as pessoas olhavam para um jogo ou um carro, ele olhava para uma garça. Eu via como isso fazia com que ele entrasse em choque com o mundo que o rodeava. Aderi a essa figura, a essa maneira de estar, como qualquer coisa que descobri que também a mim me dizia.
Tem irmãos?
Tenho um irmão dois anos mais velho, que é advogado. Era com ele que brincava, chorava, e com quem andava à porrada. O meu outro irmão, mais novo sete anos, é um veterinário com um estranho gosto pelo trabalho. Nós brincamos e dizemos que, com essa dedicação ao trabalho, ele não deve ser da família…
Vivem em Moçambique?
Vivem. Somos quase vizinhos, os meus pais, eu, os meus irmãos. É uma família muito nuclear, quase clãnica. Como os meus pais foram daqui [Portugal] muito novos, aquela coisa dos primos e dos avós, não usufruímos disso.
Falam-se todos os dias?
Todos os dias não. Temos os fins-de-semana onde nos juntamos. A minha mãe é a coluna vertebral desta pequena família. Não se concebe fora do círculo dos filhos. Os meus pais tentaram quatro vezes refazer a sua vida em Portugal depois da Independência. O meu pai é de Rio Tinto (Porto) e a minha mãe de uma aldeia de Trás-os-Montes. Voltaram sempre para Moçambique e agora estão lá, acho que definitivamente.
É curioso. Porque são portugueses, não retornaram à metrópole em 74, e resistiram numa situação de guerra. Ficaram pelos filhos?
Não só. O meu pai contribuiu ele próprio, à sua dimensão, para que a Independência acontecesse. Desde o princípio nos fez acreditar que aquele era um outro país. Perguntam-me muitas vezes: «Optaste ficar moçambicano, ficar lá?» Não optei ficar lá, não optei ser. A vida optou por mim. Sem que soubesse, desde menino estava sendo preparado para ser parte daquela coisa. Nunca me ocorreu: «Vou ser o quê?» Já estava decidido.
Você sente-se a jóia da família e a jóia da coroa? Como é que familiarmente gera o facto de ser conhecido, de dar entrevistas?
Começo por esclarecer como isto funciona. Na minha família era tido como o menos hábil, o que prometia provavelmente menos. Em certos momentos tinham dúvidas se era realmente…
Inteligente?
Às vezes me chamavam com ternura «Atrasadeco», mas era evidentemente com grande amor.
Porque é que lhe chamavam? Era molenga?
Perdia tudo, esquecia-me de tudo. Apesar de ser fácil de temperamento, devo ter sido um filho que dá trabalho e chatice. Conto uma estória. Uma vez mandaram-me comprar pão; poucas coisas me mandavam fazer, já sabiam que não valia a pena. Fui à padaria, eram duas da tarde e os senhores me disseram: «O pão acabou, a próxima fornada é só às cinco». Sentei-me na escada e fiquei à espera, sem que isso constituísse grande problema porque estava embevecido a ver as pessoas a passar e, se calhar, a contar estórias para mim próprio. Os meus pais, vendo que não voltava, mandaram uma expedição para me rebuscar. Contavam a estória com uma certa graça, «Nem pão o rapaz sabe ir buscar! Como é que se pode ficar à espera três horas?»
Como é que a família olha agora para o seu sucesso?
Têm uma grande vaidade, um grande orgulho. Às vezes sacodem-me, «Fizeste, ganhaste, apareceste!» Eles é que recortam coisas.
Quando começou a escrever e a publicar, estavam à espera que chegasse tão longe, no sentido de ter tanto sucesso?
Não esperava eu, não esperava ninguém. Estas coisas acontecem por um conjunto de acidentes. É como haver vida na Terra. Publiquei um livrinho, «Vozes Anoitecidas», num papel miserável, numa edição muito pobre.
Foi na editora do seu pai?
Não. Ele trabalha como gerente, a editora não é dele. O livrinho saiu pela Associação de Escritores Moçambicanos. Um deles veio para aqui e uma Maria Lúcia Lepecki apanhou-o acidentalmente na secretária de alguém e o leu. Um dia recebi uma crítica de página inteira; a senhora via ali coisas que nunca imaginei que alguém pudesse ver, nem mesmo eu! Mas fiquei muito grato, queria conhecê-la e mandei-lhe uma carta de agradecimento. Foi esta circunstância que fez com que alguém olhasse para esta coisa e pensasse em republicar aqui.
O que aconteceu a seguir?
A Caminho também olhou. Contactou-me, propôs edição.
Lembra-se em que dia foi, o que estava a fazer?
Não me lembro bem. Primeiro foi um telefonema. Depois vim cá de férias e nem queria bem acreditar no que estava a acontecer. Pensava que ia ficar ali, ser editado num papel mais bonito e numa edição mais cuidada.
O eco do editor e dos leitores não lhe traz uma pressão?
Quando escrevo o livro não escrevo pensando em alguém, nem penso em agradar ou desagradar. O livro sai assim mesmo.
Não há uma figura em quem pense e no juízo que vai fazer?
Não. Aí, é uma coisa comigo. Se não gosto, o livro não sai, mesmo que pense num segundo momento que talvez calhasse bem. Fiz coisas que não publico e que eventualmente nunca publicarei.
São experiências demasiado arrojadas?
Não gosto por razões diversas.
São demasiado pessoais?
Algumas.
Dá a impressão de se esconder. A catarse que faz na escrita é uma coisa que só você entende.
É verdade. Não sou uma pessoa assim tão transparente como transpareço.
Apesar de não gostar do peso da responsabilidade, quando está cá fora sente que é o representante da terra, da gente?
Não me sinto representante. Mas sinto-me com responsabilidades. O meu país é muito conhecido por coisas que não são propriamente as mais positivas. Ficaria muito contente que fosse conhecido por outras razões. Há gente que escreve e com muito valor. Se alguma missão tenho e quero realizar, é essa: se sou o primeiro a chegar a alguns lugares, tenho de lutar para que outros entrem pela mesma porta.
Não é nada invejoso?
Não, tenho outros defeitos. Acho mesmo que no céu cabem muitas estrelas.
É uma visão muito poética.
Mas é verdade.
Em que se traduz o sucesso para si? Dinheiro, entrevistas, viagens, admiração?
Representa coisas boas e más. Algumas não quero, outras gosto de ter. Uma coisa boa é que o mundo fica mais pequeno de repente, como uma aldeia onde as pessoas todas se conhecem e te saúdam. Tem logo um lado mau porque é muito unilateral. Gostava de conhecer as pessoas que me param e querem falar comigo. Não quero ter fãs; quero ter amigos.
Isso é inviável.
Quero conhecer as pessoas. Se calhar é um bocado romântico. Nas sessões de autógrafos, com a família, a minha mulher, o meu editor, tenho às vezes algum desencontro porque eles dizem: «Assine lá isso». Mais ou menos como quem diz: «Despache-se». São momentos demorados.
Não é um frete nem um bocadinho, ser inundado de gente a roubar partes de si?
Às vezes se transforma nisso.
Quem é que o acompanha nestes périplos de escritor de sucesso?
Ando cada vez mais com a minha mulher. Faço questão que me acompanhe e que a gente encare isto juntos. Não no sentido «Venham ver como o vosso pai ou marido é reconhecido». Nada disso. Acho importante que cada um de nós visite o trabalho do outro. A minha mulher trabalha num hospital. É importante que eu experimente as condições terríveis em que ela trabalha para entender como chega a casa todos os dias.
É médica, não é?
É hematologista, a única de Moçambique. Acho também que devia participar num dia de escola dos meus filhos para perceber como é que aquilo funciona.
Há quanto tempo está casado?
Há doze. Tenho três filhos: um de 21, uma de 17 e uma de 8.
Foi pai muito cedo.
O meu filho estuda Ciências Ambientais na África do Sul, na Cidade do Cabo.
Porque é que estuda na África do Sul?
O ensino, em geral, se degradou. Não é uma questão técnica. A relação professor-aluno deixou de ter o sentido sagrado que a deve envolver. Queria muito que os meus filhos finalizassem os seus estudos em Moçambique. Agora talvez seja possível porque a nível do ensino superior as coisas estão melhorando. Mas não posso sacrificar mais o destino deles àquilo que são as minhas opções. Já o fiz e isso deixou-me um sabor amargo.
Como assim?
Vivi os anos terríveis em que não havia nada. Saíamos de casa de manhã com aquela terrível pergunta: o que iremos trazer hoje para os nossos filhos comerem? Isso tinha um sentido enquanto éramos todos a experimentar privações. Mas depois, quando se propôs uma certa hierarquização, o sofrimento deixou de ter carácter épico. Explico: eu era da Frelimo. Os membros da Frelimo receberam, numa dada fase, um cartão de abastecimento especial. Dava-lhes privilégio de acesso a lojas onde se adquiriam algumas, poucas coisas. Por causa dos meus princípios éticos recusei aquele cartão, deitei-o fora. Não queria ter tratamento especial. Mas isso introduzia em mim uma questão moral gravíssima: iria sacrificar o bem-estar dos meus às minhas opções morais. Os meus princípios podiam provocar nos outros, neste caso nos meus filhos, a continuação de uma situação intolerável.
É uma equação violentíssima.
Foi resolvida assim: a Patrícia, porque era médica, recebeu também uma licença para ter acesso a uma loja menos especial. E aceitámos.
Já passou fome?
Já. Mas era uma fome transitória, ligada ao facto de trabalhar no mato e o meu regresso à cidade ter ficado atabalhoado.
Parece subvalorizar a sua fome. Como se ela não pudesse ser chamada assim por assistir à fome gritante dos outros.
Uma coisa é ter fome e saber que daqui a três dias quando vier a avionete, o carro ou o mau tempo passar, se pode comer. Outra, é saber que a avionete não vem, que não há nada.
Muitas vezes a ajuda humanitária é desajustada. Os problemas resolvem-se muito pontualmente sem se criarem situações estruturais.
O trabalho que faço como biólogo é tentar reabilitar estratégias internas, indígenas, que farão as pessoas depender menos da ajuda externa em períodos de crise.
Estava a ocorrer-me um excerto de um livro carregado de humor onde é muito evidente a corrupção ao mais alto e ao mais baixo nível. Há uma cadeira de rodas da ajuda humanitária usurpada por um dos personagens que a aluga a outros que queiram dar umas voltinhas. E há o tráfico de armas conectado com os administradores, que são brancos e portugueses. A corrupção grassa no país de alto a baixo?
Não de maneira diferente que grassa noutros casos. É mais descarada. Tal e qual como a escravatura ou a colonização, a corrupção é a continuação de uma relação que tem sempre dois lados. Não há os corruptos de um lado e os honestos do outro. A escravatura foi feita com cumplicidades internas. Havia elites africanas que enriqueceram muito. Esta leitura da história que hoje há é muito simplista. Como há um certo sentimento de culpa dos europeus, ela passa bem. Mas deve ser interrogada, porque criou da parte dos africanos o discurso vitimista, de ser preciso fazer valer na Europa aquilo que perdemos durante séculos.
Porque é que esteve ligado à Frelimo? E como passou ao lado de toda esta corrupção?
Porque acreditava e tinha um grande empenho.
Já não está ligado?
Sou simpatizante, mas não sou membro. Custa muito cortar alguns laços que foram muito importantes na minha vida. Nasci numa cidade em que o colonialismo estava ali, à vista. Ninguém me explicou, ninguém veio com um discurso político para me incorporar num sentimento de militância anti-colonial.
Os seus pais eram burgueses?
Não. O meu pai era jornalista e poeta. Tínhamos uma vida dura, difícil. Mesmo do ponto de vista da inserção social e política era difícil num meio politicamente tão arrumado. Eu e a minha família entrámos em ruptura com aquilo. Foi fácil aderir a qualquer coisa que representava o fim daquilo; principalmente o que me chocava era o racismo. Quando fui para Lourenço Marques (Maputo dantes chamava-se Lourenço Marques), comecei a estudar Medicina.
Mudou-se para estudar?
Sabia que não ia exactamente para estudar. O movimento estudantil era muito forte. Havia fracções de estudantes que tinham ligações com a Frelimo e já orientavam a sua actividade em função dos objectivos da Frelimo. Estive ligado a esses grupos. A minha vida passou a ser toda norteada pelas razões da causa. Em 25 de Abril de 74 estava num jornal chamado «A Tribuna», estudava e trabalhava. Pediram-me que ficasse, deixasse de estudar e permanecesse a tempo inteiro. Rapidamente, e infelizmente, converti-me em director da agência de informação. Eu e um grupo criámos a primeira agência noticiosa dentro de Moçambique. Andei pelas províncias a criar redes de correspondentes populares, etc.
Como é que funcionava essa rede? Visitavam os sítios e procuravam a pessoa que melhor se expressasse e pudesse contar o que lá se passava?
A Frelimo tinha uma rede muito forte desde a base até ao topo. Nos primeiros anos houve uma adesão imensa. Os núcleos de base escolhiam pessoas dos locais mais remotos (que vinham de bicicleta). Mandavam as notícias escritas num papel que demorava até dois meses a chegar a Maputo. As notícias eram: «Um elefante atacou uma machamba [horta] do meu vizinho». Havia ali mundos diversos que se chocavam. A seguir fui director da revista «Tempo» e, durante anos, do «Jornal de Notícias», que era o órgão oficioso. Depois, deixei de ter alguma crença no projecto. Havia um grande divórcio entre o que se fazia e o que se dizia que fazia.
São as inevitáveis contradições político ideológicas. As guerras são sujas.
Aconteceram coisas que me traumatizaram. Como amigos meus serem presos. De repente, e sem entendermos porquê, nos tornámos vítimas do poder que defendíamos. O que era traumático era a falta de lógica disso tudo. Pretendia-se um socialismo parecido com o soviético, o chinês, qualquer outro; mas Moçambique nunca foi capaz de criar um sistema, fosse ele qual fosse.
Nisto tudo passou um tempo valente.
Mais de dez anos. Para lhe mostrar o que é a ausência desse regime, não trabalhava no jornal e o meu nome continuou a sair quase durante um ano no cabeçalho como sendo director. Repare no nível de desorganização e irresponsabilidade que não seria possível num outro regime.
Foi então que decidiu voltar a estudar?
Fui para Biologia. Tinha 30 anos.
Isso foi em 85. Em 87 «Vozes Anoitecidas» saiu cá. Quer dizer que andava no segundo ano de Biologia quando os seus livros começaram a ser publicados em Portugal.
Sim, era um jovem estudante universitário [risos].
Como foi esse retorno à escola? Porque foi para Biologia e não voltou para Medicina?
Ainda me matriculei em Medicina. Queria ser psiquiatra. Eu escrevia, tinha ligação com grupos de teatro. Já me tinha distribuído por várias coisas e, na altura, sabia o que era viver com uma médica. Tinha esta percepção de que lá, ou se é médico ou se é outra coisa. O regresso à escola foi muito interessante porque convivi com jovens que, na quase totalidade, eram de outra raça e com idades que orçavam entre os 17, 18 anos. Foi um convívio muito profundo porque tínhamos actividades de campo que demoravam semanas.
Tinham uma adolescência diferente da sua, que foi muito mais politizada.
Nasci num contexto colonial em que 95% dos colegas eram brancos. Depois foi o inverso. Mas nunca senti que houvesse qualquer problema de rejeição, de exclusão.
Nunca foi alvo de racismo?
Não posso dizer que não. Moçambique não é um país ingénuo nesse aspecto. Mas nunca foi nada de tão grave assim que desse para me colocar no papel de vítima.
Os colegas olhavam-no como um irmão mais velho?
De facto. Eles me perguntavam coisas até do domínio da sexualidade. Uma vez estávamos numa camarata e havia uma grande discussão. Quando entrei disseram: «Já chegou o Mia, vamos perguntar como é». E a pergunta era: «Quando um homem beija uma mulher quem é que tem de fechar os olhos?»
Qual é a resposta?
Respondi: «Se o beijo é apaixonado, ninguém sabe se está com os olhos fechados ou abertos». Olharam-me com o olhar mais desconfiado que possa imaginar, «Este gajo não percebe nada de beijos!» [risos] Já na altura sabia que o beijo não faz parte dos rituais de namoro por tradição. É uma coisa muito recente. Descobriram o beijo há uma ou duas gerações. Saltaram para dentro do beijo e não saem mais de lá!
Beijam-se na rua?
Não é muito frequente. Só os mais jovens, sim. Fazem-no até com uma certa ostentação.
Beijou as suas namoradas na rua?
Não. Corríamos o risco, inclusivamente, de ser presos; advertidos, pelo menos. Depois da Independência, os polícias, os guerrilheiros que patrulhavam a cidade, tinham valores morais das zonas rurais e achavam que aquilo não se fazia em público.
Ainda a propósito da escolaridade, gostaria de recuar mais no tempo porque soube que o Zeca Afonso foi seu professor. Num dos livros há um personagem que se chama Pastor Afonso, um mestre, que é uma das referências morais do personagem principal.
Já é a segunda pessoa que acredita que o Pastor Afonso é de origem portuguesa. Mas não é. É um preto. Construí-o assim.
O Zeca Afonso foi seu professor na Beira ou em Maputo?
Na Beira. Queria ensinar outras coisas. E ensinou. Tinham a ver com a situação política, com o despertar para o momento que estávamos a viver. Como professor de Geografia, não me recordo de nenhuma coisa que tenha ficado [risos]. Gostávamos muito dele por causa da irreverência. Uma vez partiu a perna e foi para a escola de calções.
Não é fácil perceber porque é que obstinadamente se manteve em Moçambique, sabendo-se que viveu o grosso da vida em situações de guerra.
Achava que se saísse, de alguma maneira, eu morreria. Vivi algumas situações muito difíceis, extremas. Vi pessoas morrerem.
Justamente, torna-se ainda mais incompreensível.
É óbvio que há ligações minhas com o lugar e as pessoas e seria muito difícil refazer as raízes num outro qualquer lugar. Depois, há quase um sentimento religioso que nos liga à missão de construir qualquer coisa.
Esse altruísmo…
Não é altruísmo. Estou a pensar em mim, na maneira como posso ser feliz. O contrário era aceitar uma missão neste mundo onde não me reconheço e as pessoas compram a felicidade a prestações.
Portanto, não comprou o seu frigorífico a prestações?
Não.
Como é a sua vida material? Vive numa casa, com quintal?
Com um quintal pequeno, sim. Não vivo mal.
É uma imagem colonialista; mas imaginamos que os brancos que vivem em África têm casas brancas com alpendres enormes e terrenos a perder de vista.
Não há, sobretudo nas ex-colónias portuguesas. A construção espaçosa, o usufruto dos terrenos, é muito da colonização inglesa. A minha é uma casa vulgar aqui, não tem nada de especial: uma sala, uma cozinha, quatro quartos. É uma casa relativamente boa, mas não tem nada de luxo.
Tem vídeo?
Tenho vídeo, computador, isso tudo.
Perguntei porque sei da sua dificuldade em ver cinema.
Só agora é que há uma sala de espectáculo da Lusomundo. Estou muito grato à Lusomundo (aproveito para agradecer!). Estivemos anos e anos sem cinema. Quando vinha à Europa uma das coisas que queria respirar era cinema.
Que coisas levava no regresso?
Trazia listas de encomendas dos amigos e da família.
Que género de encomendas?
Agora já há quase tudo. Naquela altura pediam as coisas mais incríveis. As pessoas do povo, por exemplo, pedem muito azeite de oliveira e bacalhau, duas coisas que os portugueses deixaram lá e que têm muita força. As outras pessoas pedem coisas muito variadas, como telemóveis.
São marcas muito visíveis da ocidentalidade.
As pessoas, mais do que ocidentais, querem ser americanas.
A americanidade chega através da televisão?
Chega. É muito forte. Os filhos da elite moçambicana sonham todos ser americanos, vestem como os negros americanos, cantam como os negros americanos.
Rap?
Rap.
A imagem que têm é que ser moçambicano é ser pobre? Quando a guerra acabou era o país mais pobre do mundo.
Ser moçambicano não é ser pobre, ao contrário.
Então de onde vem essa vergonha?
A vergonha deles é porque Moçambique praticamente não existe. Só a Maria de Lurdes Mutola, a nossa corredora, ganha.
Não produz estrelas de Hollywood: não tem mulheres lindíssimas a aparecerem nos filmes, nem galãs por quem as senhoras se apaixonam. Tem a Mutola e o Mia Couto.
Tem mais. Tem o Malangatana, muito conhecido fora, e alguns nomes que estão a despontar e são importantes nas artes plásticas.
A plasticidade da linguagem é uma das suas características mais fortes. Você que gosta tanto de desmontar as palavras, tem algum vocábulo sagrado e imutável?
Talvez «Mulher». Tenho esta ideia de que a mulher tem uma relação especial com o mundo que passa pela sua capacidade de gerar vida.
Há muita gente que o julga mulher. Por causa do seu nome.
Ocorre esse equívoco. Às vezes é ainda mais engraçado: confundem-me o sexo, a raça, a idade, tudo ao mesmo tempo. Uma vez na Bulgária tardavam em me apanhar no aeroporto, estava a ficar aterrorizado porque não tinha dinheiro, não conhecia a língua, não sabia quem me vinha buscar. Junto ao balcão percebo que alguém diz a palavra Moçambique e, em francês, tento explicar que sou eu. O outro diz: «Não, não, venho buscar uma escritora africana». E até me explicar foi difícil. Ainda por cima sou António.
Porque é que se chama Mia?
Por causa de gatos. Os meus pais contam que quando tinha dois, três anos vivia com os gatos, misturava-me com os gatos, achava que era um gato. Temos em casa fotografias em que estou comendo com os gatos. Disse que queria ser chamado de Mia; os meus pais aceitaram e ficou.
Ninguém lhe chama António?
Não. Se me chamarem António, tenho de pensar duas ou três vezes. Hoje não tenho essa relação com os gatos. Prefiro os cães.
Publicado originalmente no Diário de Notícias em 1998 e retirado do blog de Anabela Mota Ribeiro.