Razões para lutar - entrevista a Luaty Beirão
Os jovens podem estar anestesiados mas não lhes faltam razões para lutar!
Num concerto de hip hop em Luanda, denunciou a cultura do medo e incitou a plateia a vaiar o poder. Alinhou numa manifestação que não chegou a acontecer, convocada anonimamente na internet, para uma estranha hora: meia-noite na praça da independência. Luaty Beirão aka Ikonoklasta aka Brigadeiro Mata Frakuxz estava nesse pequeno grupo de manifestantes que foi preso. Mas amanhã voltarão a marchar pela liberdade de expressão em Angola. Num país com a memória da violência entranhada, é preciso organização e muita força de vontade para desenvolver uma consciência política, e lutar todos os dias por direitos e liberdades. A juventude angolana tem um papel fundamental para fortalecer a sociedade civil. Precisa de ser ouvida. Luaty Beirão falou bem alto desta vez.
Quais foram os aspectos mais positivos dos acontecimento de Março (2011) em Luanda?
Uma certa tomada de consciência da sociedade civil para os problemas que a assolam. Quer se fosse a favor ou contra a suposta manifestação, ninguém ficou indiferente ao assunto, os jovens sentiram uma euforia que não me recordo de testemunhar, a não ser quando Angola ganha jogos importantes de futebol. Houve alguma mobilização de indivíduos, independentes de partidos ou ideologias, cada um à sua maneira, cada um deles catalisador de uma ideia que gostaria de ver materializada. Uns inventaram banners e flyers, outros organizaram debates à porta fechada com amigos, outros espalhavam a ideia em surdina, outros ainda vinham inflamar-se em comentários na internet. Foram mais flagrantes as evidências das fragilidades do regime, que revelou, ao descontrolar-se, não ter assim tanta certeza da sua popularidade e adoração. Não hesitaram em dar todo o tipo de bandeiras disparatadas, discursos musculados e estapafúrdios, o apelo a uma contra-manifestação onde boa parte das pessoas foi intimada a participar, as acusações inflamatórias ridículas de haver quem queira voltar à guerra e instabilidade. Enfim, uma sequência de bacoradas políticas que deveriam embaraçar todo o militante convicto das ideias originais do partido.
E o que foi mais frustrante depois dessa euforia?
Constatar que o nível de alfabetização está intrinsecamente ligado à falta de consciência dos direitos que aufere um cidadão num Estado que se diz democrático e de direito. A ignorância está por detrás da incapacidade de organização e, sobretudo, facilita a intimidação do povo.
Qual a melhor estratégia para enfrentar a cultura do medo?
Com educação, exemplos, sacrifícios, persistência e sabedoria, para evitar as ratoeiras dos serviços de inteligência que servem justamente para contrariar estes ímpetos reivindicativos.
Sentes que a sociedade angolana valoriza a voz da juventude?
Nem pensar. Os jovens são anestesiados com fantochadas importadas e superficialismos baratos. É só imitações, desde os “tchilar”, passando pelas modinhas de óculos de massa, às novelas onde as realidades retratadas são mimetizações de novelas da Globo, assim como em todo o audiovisual se investe na americanização. Podemos juntar a esta extensa lista as maratonas com cerveja a 15 kwanzas (o normal é cerca de 100 kwanzas) e os pastores que chulam os crentes cobrando percentagens dos seus ganhos. Os jovens estão amorfos. Os que recusam cair nesta palhaçada não têm muito lugar para se exprimir. Quando lhes dão uma brecha, rapidamente corrigem o erro ao acharem que afinal não passam de uns inconformados que se recusam a sujeitar-se à realidade virtual que este “Truman Show” impinge a todos. Assim sendo, as causas para contestar são todas.
Nestes dias, apesar do ambiente tenso, debateram-se conceitos como democracia, direitos, necessidade de mudanças. Parece que as lutas do norte de África ajudaram à visibilidade das injustiças do país.
Não sigo nem rádio nem televisão, mas sei que há raros momentos de interesse nos debates. Soube que se discutiram alguns desses assuntos, que na Tv Zimbo houve uma peça sobre a detenção dos jovens que se queriam manifestar e depois o jurista Bernardo Lindo Tito (que foi do Partido da Renovação Social) respondeu a perguntas sobre a legitimidade da manifestação e o choque com a lei 16/91, permanentemente usada como pretexto para recusar toda a manifestação que não seja para dar graxa ao regime. Porém, as discussões fizeram-se sobretudo fora dos meios de comunicação.
Que sugeres de acções concretas que traduzam o descontentamento?
Não sei como medir. As pessoas continuam a fazer comentários inflamados no Club-K (site criado por angolanos na diáspora, crítico e muito participado através de comentários), mas na hora de dar o corpo ao manifesto acabam por comprometer a meia dúzia de gatos pingados que o fazem, minando assim a credibilidade de qualquer iniciativa. Mas, na minha ingenuidade, gostaria de acreditar que as possibilidades são hoje muito maiores do que há três semanas atrás.
O movimento hip hop tem tipo um papel fundamental no amadurecimento da cultura contestatária?
Não considero sequer que nós tenhamos uma “cultura contestatária”. O que vejo é cidadãos a optarem por uma vertente musical em que um dos critérios é denunciar as injustiças e até pode repreender o governo, moderadamente, sem roçar os limites permitidos pela liberdade de expressão numa pseudo-democracia. Banalizou-se a crítica de tal maneira que já não é necessário, por exemplo, o investimento que foi preciso para diluir o movimento Black Power no hip hop americano. Aqui, deram algum espaço de manobra, permitindo eventos de maior dimensão, até com patrocínio dos próprios criticados. Aí começam os compromissos de consciência versus carteira.
O sistema já conhece o movimento underground, mas talvez não estivesse preparado para ser driblado pela vossa ousadia…
O sistema sabe de tudo o que se passa para além dos nossos quintais, se muitas vezes até os quintais sabe de quem são, quem os frequenta e as conversas que por lá fluem. O movimento underground, associado à contestação e à consciencialização no seu nicho, que aumentou consideravelmente nos últimos anos, é um movimento tolerado mas que tentam controlar de forma inteligente. Para já, têm a vida facilitada pelos próprios órgãos de difusão, públicos e privados que, subservientes, se dedicam todos a uma assassina auto-censura. Ficam os artistas limitados à sua independência e capacidade de organização para conseguir utilizar outros veículos para difundir o seu produto. Para nós, a palavra de ordem é: “viva a pirataria!” Mas queria fazer especial referência ao novo fenómeno dos “grandes” espetáculos de hip hop que até têm orçamento para “encomendar” artistas estrangeiros. É um grande salto e não é por acaso que empresas afectas ao próprio MPLA estejam hoje a financiar esses shows que saem do nosso anterior pequeno universo. Jogam com a vaidade do ser humano, à qual nenhum “underground/révu” está isento, com a sensação de conquista, de sucesso. O artista que chega ao patamar de Atlântico ou Karl Marx, não vê com muito bons olhos o regresso à plateia de 30 pessoas, com o som a fazer feedback e o vizinho como técnico de som. Assim se doma a fera, atirando-lhe bifes suculentos que, na realidade, mais não são do que presentes envenenados.
A razão para o vosso desabafo estava lá. Mas a linguagem usada no Cine Atlântico não terá desvirtuado um pouco o sentido da contestação?
Antes de mais sou um ser humano com sentimentos e, depois, um artista com preocupação social, mas não um político de Assembleia. Não preparei o meu comício com escolha sábia de palavras polidas, não tive o sangue-frio suficiente para manter o tom de voz dentro dos limites que se diz publicamente aceitáveis. Não há qualquer tipo de premeditação da verborreia, há sim a emoção incontida e momêntanea de algo que se quer eternamente silenciado que finalmente explode e a ingenuidade de um irremediável sonhador. Tudo isto com uma plateia de ouvidos sedentos de mensagens directas e a euforia que se gerou naquele pequeno momento. Foi assim que saiu. Se o uso de palavrões num acto público me descridibiliza ou me tira a razão, deixo ao livre arbítrio dos meus pares.
Serão confundidos com uma oposição que, congregando alguma inteligentsia, não consegue mostrar grande ciência política?
Não consigo perceber bem se com “oposição” te referes a algum dos partidos que existem hoje no nosso país, com ou sem assento parlamentar. Se de facto for isso, não creio haver lugar para ambiguidades no meu curto discurso postado no youtube. A não ser o facto das pessoas deixarem-se chocar pelo uso de palavrões sem ouvirem até ao fim, digo inequivocamente que “não queremos bandeiras partidárias”. Também não quero ser redutor nas críticas à oposição subscrevendo o “não consegue mostrar ciência política”, apesar de, até agora, eu não me reconhecer plenamente nela. Será um pouco frouxa, um pouco apática, um pouco (inaceitavelmente) conformada. Acho que falta nos partidos com mais expressão um pouco de atitude militante fora da assembleia, como fazia o PADEPA do Leitão.
Sentes-te parte integrante de uma oposição activa da sociedade civil?
Dei a cara por achar pertinente e oportuno. Quis apenas incentivar algumas pessoas naquele público que sei não serem dos mais informadamente inconformados. Logicamente que as consequências eram previsíveis e, para ser sincero, pensei que seriam piores. Mas não me assumo como líder de nada, cada um tem de agir de acordo com a sua consciência e princípios.
Que soluções e ideias gostavas de propor?
Uma das razões evocadas pelos detratores dos manifestantes é o clássico argumento: “só reclamam e não apresentam soluções”. Apesar de não concordar que, para se diagnosticar um mal e repudiá-lo, deva encontrar mecanismos para solucioná-lo, é claro que cada um de nós tem algumas ideias e sugestões. Para começar, a aplicação da dita tolerância zero que ficou pela demagogia do discurso e que, se fosse levada a sério, iria pressionar aqueles que prevaricam e estão habituados a safar-se na impunidade. Mas como todos têm “rabo de palha”, fecha-se os olhos e tolera-se, em nome da criação de uma burguesia angolana que venha a ser uma classe empresarial empreendedora, criadora de empregos e motor da economia. Na verdade só conseguiram tornar cultural o “esquema” e o clientelismo, aumentaram o fosso social, a economia continua a depender a 70 por cento de um único recurso mineral, a educação precarizou-se e a sociedade foi forçada a partidarizar-se. Uma distribuição mais racional do OGE (Orçamento Geral do Estado) é imperativa, e o investimento, nos anos que se seguem, deve ser canalizado massivamente para a educação e saúde, em detrimento de tudo o resto, incluindo as novas tecnologias. A ideia de um Angola moderna e comparável com o Ocidente, que se quer imitar a todo o custo, é ridícula. Não se consegue isso do dia para a noite importando tecnologia de ponta, precisamos de gente qualificada senão continuaremos eternamente na dependência do know-how estrangeiro. Isso não se cumpre em dois dias. Há tanta coisa por fazer e outra tanta a ser mal feita, veja-se por exemplo o plano decadente de urbanização com um óbvio fetiche pela simbologia fálica…
Não sou político de profissão e não tenho pretensões de o ser. Quem decide são eles, nós continuaremos eternos espectadores, cada vez mais atentos, engrossando o grupo de pressão mais legítimo do poder político (apesar de ser o mais adormecido, mais tolerante e, consequentemente, o menos eficaz): a sociedade civil. Infelizmente a nossa capacidade de reunião e assembleia foi asfixiada e suprimida por causa do receio do actual regime por tudo o que sejam ideias que considerem ameaçadoras ou subversivas à sua hegemonia. Os grupos de discussão vão sendo remetidos a um forçado silêncio.
Como trabalhar para a união em torno de uma resistência e outro tipo de rumo para Angola?
Existem certos pressupostos que têm de ser cumpridos e eu vejo o analfabetismo como uma das principais causas para que tal não aconteça. No momento em que estamos, e depois de termos dado início a este processo, pretendemos não deixar esmorecer o espírito de reivindicação que finalmente despertou, e pretendemos usar todos os métodos de pressão legais para continuarmos. Neste nosso país existe um medo desmesurado de tornar públicas as angústias, com pavor da ira que possa despoletar nos poderosos. Há, portanto, terreno fértil para singelos gestos individuais que terão impacto nas psiques de quem com eles tenha contacto, como não teria jamais em verdadeiras democracias já bastante habituadas a este tipo de acções. Estes gestos individuais continuam e estou à espera que se auto-promovam. Não acabaram com o abortado dia 7 de Março.
Antes da pseudo-manifestação tinham a noção de que colocariam o estabsihment com o credo na boca?
Nem um pouco. Nós ficamos completamente ultrapassados pelas proporções que isto tomou. Na realidade não havia razão para tanto alarido. Se o MPLA tivesse ficado calado no seu canto, uma centena de pessoas haveria de mostrar o seu desagrado e voltaria para casa com sensação de missão cumprida. O tal de Agostinho Jonas não apareceria, descridibilizava os “aventureiros”, o M mandava para a praça da independência a sua imprensa privada (TPA), no noticiário faziam uma peça dividindo o ecrã em dois, comparando o “mar” de gente do dia 5 com a pequena centena do dia 7, mostrando onde estava o coração dos supostos 80 por cento de votantes. Ganharia a imagem do regime que se tenta projectar como sendo democrática, ganharia a sociedade na consciência que tem um papel a cumprir, e não só esperar e apontar dedos ao governo pelo mau trabalho, e ganhava a nossa imberbe democracia que ia poder dar mais um passo firme na sua consolidação, pois até agora não se consegue erguer sozinha.
Depois deste entusiasmo e conflito todo… nova investida? Com os mesmos métodos?
Temos nova manifestação convocada para dia 2 de Abril na Praça da DIPANDA (Independência). Tentamos ao máximo estar dentro das inúmeras limitações impostas pela famigerada lei 16/91. Entregámos hoje a carta endereçada ao Governador de Luanda e estamos à espera que se completem as 24 horas que eles têm para ilegalizar a manifestação, caso contrário consideraremos que está cumprida da nossa parte a lei e que não foram encontrados entraves legais para impedi-la. O momento não é de deixar arrefecer as coisas, devemos aproveitar que se agitaram as águas no seio da juventude até então amorfa e distraída com superficialismos, dar um pouco de dinâmica a esta sociedade civil, conquistar um pouco do espaço que nunca nos devia ter sido subtraído.
parte desta entrevista saiu no jornal angolano Novo Jornal, 1/4/2011