"Não mates a minha mãe!"

1. Primeiro de fevereiro de 2020. Vinda do Alentejo, chego cedo ao Marquês de Pombal, assim como o aparato policial, que contam homens, pistolas e cacetetes. Eu almoço bacalhau à lagareiro com azeite quente e muito alho num restaurante onde, há mais de 40 anos, se alimentam jornalistas do Diário de Notícias, empresários de médio calibre, ou a nata da cultura. O lugar chama-se exatamente Nata do Marquês. Depois do bacalhau, junto-me às pessoas na Rotunda, de onde aprecio, de baixo para cima, a estátua do cavalo com um Marquês de Pombal conhecido, entre outros feitos, por ter abolido a escravatura, ainda que não tenha sido bem assim. A nossa cena equestre a simbolizar verticalmente o poder, é igual à de qualquer outra cidade europeia, assim como o poder é o mais perverso dos exercícios. 

Abraços e small talk com os manifestantes, preliminares que me inibem, nunca se consegue dizer o quanto admiramos as pessoas que acompanhamos, mais ou menos de perto, firmes nos seus posicionamentos e lutas. Uma ativista da INMUNE vende-me uma t-shirt que tem grafado «Justiça para Cláudia Simões», frase que infelizmente teve e terá diversos nomes de vítimas. Recebo um papelinho com instruções para o caso de sermos agredidos ou presos. Descemos a Avenida com centenas de pessoas a gritar «Gentalha unida jamais será esquecida», ou seria «Gentalha esquecida sempre unida»?, «a nossa luta é todos os dias, contra o racismo e a xenofobia».

Cláudia Simões, mais uma mulher negra espancada, cara desfeita num golpe mata-leão, em que o leão era o polícia da PSP Carlos Canha que a agrediu em frente à filha, desesperada, a assistir ao desespero da mãe. A ouvir a mãe gritar: “Ele quer furar-me um olho”. A ouvir o polícia irascível: “Morde, morde, morde”, “esta gente não sabe as leis” ou “levas um balázio”. E a menina a implorar: “Não matem a minha mãe!”.  

Por se esquecer de um passe, o da filha, sendo que as crianças até aos 12 anos viajam gratuitamente (quantas vezes levei a minha filha de transportes sem ter sequer tirado o passe), Cláudia Simões foi vítima de ódio racial e de violência policial.

Pairando pela avenida, sente-se a força e a impotência de tantas mulheres como Cláudia Simões, que passaram por terríveis provações, sem apoio dos media, da justiça e das estruturas de uma sociedade que as abandonou. Manifestação forte mas exausta de gritar as mesmas coisas, talvez menos espontânea e emocional do que a do Giovani ou do que, um ano antes, a subida triunfal da Avenida por tantos jovens negros indignados, com a raiva das imagens do bairro Jamaica a explodir dentro das suas cabeças. 

Manifestação Justiça por Cláudia Simões 1/2/2020, fotografia de Marta LançaManifestação Justiça por Cláudia Simões 1/2/2020, fotografia de Marta Lança

 

2. No final da manifestação, desço em passo apressado até ao barco para Cacilhas. Através dos vidros sujos do cacilheiro, apontamentos de luz realçam a natureza de passagem do rio. Bem sei que quem atravessa o Tejo todos os dias não terá epifanias de autodescoberta nem lhe ocorre admirar a beleza do rio e da travessia, a não ser a grande cegada de permanentemente sentir-se roubado de tempo de vida, roubado da sua própria vida. Sentir que é tarde demais para chegar a casa e cedo demais no dia seguinte. Na exigência de tantas horas espremidas em trabalho, saldadas num salário que mal dá para comer e, em tantos casos, não chega para dormir sob um teto seu. 

Ironicamente, nessa mesma tarde debatemos, no Teatro Municipal de Almada, a peça austríaca «Viagem de Inverno», de Elfriede Jelinek, sobre a situação da Europa. A miúda que ficou oito anos presa numa cave e que, ao libertar-se do carrasco, incomodou o mundo com a sua forma de descrever o horror que lhe acontecera, evitando ser a «vítima» convencional. Estabelecemos paralelos entre as caves da Áustria e as caves portuguesas, entre a desnazificação e as continuidades coloniais e outras questões. 

Manifestação Justiça por Cláudia Simões 1/2/2020, fotografia de Marta LançaManifestação Justiça por Cláudia Simões 1/2/2020, fotografia de Marta Lança 

3. Quase 4 anos depois, iniciou-se o julgamento, que podemos ir acompanhando, entre outros, pelos artigos de Joana Gorjão Henriques. Carlos Canha, o polícia, e Cláudia Simões, a trabalhadora, passageira do autocarro, são ambos ofendidos e arguidos. O gesto mais importante é o facto de Cláudia Simões não se ter calado depois de toda a tragédia que lhe aconteceu. São muitas as pessoas que perdem a coragem de denunciar e de seguir com processos por saberem à partida que a justiça nem sempre está do lado dos frágeis, e porque nos casos de polícia contra pessoas radicalizadas são raras as boas notícias (e viva a sentença histórica no caso da esquadra de Alfragide, 2015). A Cláudia Simões, apesar de ter o rosto totalmente desfigurado, de ter ficado incapacitada de trabalhar nos meses posteriores a agressão, da sua filha ficar traumatizada para o resto da vida, foi em frente na denúncia da sua barbárie pessoal e coletiva, a da justiça pela vítimas de violência racial, ela e tantas outras antes e depois na história da subhumanidade. Apesar da humilhação, de também ela ser julgada por ter mordido o agressor, como se uma reação de defesa e sobrevivência a quem lhe tira o ar pudesse alguma vez ser um ataque à “integridade física” de um profissional armado… Apesar da humilhação de reviver tudo aquilo e de episódios sórdidos como ter de tirar a peruca para mostrar à magistrada os danos no seu cabelo, puxado à bruta pelo agente (“Depois de Claúdia tirar a peruca, deixando visível uma rede sobre a cabeça, a juíza pediu-lhe também que retirasse a rede. Há por aí alguém que se lembre dos zoos humanos?”, pergunta a jornalista Paula Cardoso). Apesar de tudo isso, pode ser mais um julgamento fundamental na história do anti-racismo em Portugal, irmamente ligada à repressão policial. 

Manifestação Justiça por Cláudia Simões 1/2/2020, fotografia de Marta LançaManifestação Justiça por Cláudia Simões 1/2/2020, fotografia de Marta Lança

4. Em 2014 entrevistei para o Rede Angola, na sua casa, Maria Sala (Filó), angolana radicada em Portugal, que acabara de sofrer uma brutal e gratuita agressão por parte de um polícia, com o requinte de ter o filho, de cinco anos, a assistir ao espetáculo da mãe a ser violentada e levada como criminosa. Passou-se no Centro Comercial de Massamá/Barcarena onde era proprietária de um pequeno restaurante-bar. Este encerrava diariamente as 22h, com uma margem normal de 30 minutos para limpeza, Filó encontrava-se às 22h15 no interior da loja com uma amiga que a ajudava a arrumar a casa. O segurança em funcionamento intercedeu impelindo-a a fechar de imediato o restaurante para encerrar o Centro, chamando o polícia de serviço para a despachar.

O polícia empurra-a de forma brusca, e Filó tenta defender-se instintivamente, tropeçando e fazendo um pequeno arranhão ao agente. Segue-se então uma impressionante sucessão de agressões violentas, desde choques eléctricos a pontapés, até ser forçosamente algemada pelo polícia, em conivência com o segurança, para ser detida. “Não mates a minha mãe!”, de novo o grito da criança inocente, para sempre marcada. Já no carro, a agressão e humilhação à jovem mulher prosseguiu sem tréguas, com socos na cara e insultos racistas até à esquadra de Massamá [na Quinta das Flores], onde o espancamento continuou, pela parte do mesmo agente. Durou das 22h30 às 2h e pouco da manhã. Às 10 h do dia seguinte, Maria Sala teve de apresentar-se, ainda convalescente, no Tribunal de Sintra, pois o polícia acusou-a de desacato a autoridade. O julgamento, que era para ser sumário, foi adiado, passou a Inquérito e a Justiça ia averiguar o que se passou. Entretanto Maria Sala também ganhou coragem e apresentou queixa contra o agente, e, na altura que falámos, aguardava que este fosse notificado. Contou com a ajuda de uma advogada atribuída pela segurança social. Desconheço o desenlace desta história.  

Temos muita esperança que o caso de Cláudia Simões consiga fazer justiça, real e simbólica, a tantas agressões e impunidades, a este abuso de poder, a este ódio racial, machista - de natureza colonial - que ainda vive em tantos, nestes casos, polícias portugueses, embrutecidos por uma cultura que ainda não soube ensina-los a desembaracar-se dos seus mais primários preconceitos

por Marta Lança
Cidade | 25 Novembro 2023 | anti-racismo, Cláudia Simões, justiça, manifestação, mulheres, ódio, violência policial