Urban Africa: Pan-African View

David Adjaye1, um dos já incontornáveis arquitectos da sua geração, a viver entre Londres e Nova Iorque, regressou a Lisboa. ‘Urban Africa - A Photographic Journey’ foi a razão.

Recentemente inaugurada no Pavilhão Preto do Museu da Cidade de Lisboa, esta exposição é uma viagem fotográfica, mas também a retrospectiva das memórias deste arquitecto que nunca deixou África.

Nascido em 1966, na Tânzânia, filho de diplomatas, muito cedo foi confrontado com a inevitabilidade de viajar, de se re-adaptar, de se re-encontrar. Esta condição nómada não foi, contudo, impeditiva de estabelecer fortes raízes com o continente africano, pelo contrário. A sua obra confirma a sua profunda relação com aquela paisagem, aqueles lugares.

Em Urban Africa (mas também nesta nossa conversa) David partilha a sua visão panorâmica deste extenso território e da sua vontade - agora assumida - de um dia lá voltar a morar.

Cortesia de Adjaye Associates / Courtesy Adjaye AssociatesCortesia de Adjaye Associates / Courtesy Adjaye Associates

 

Novamente Lisboa.

Sim, é bom estar de volta.

Desta vez a propósito da inauguração de ‘Urban Africa’. Esta sua viagem fotográfica é uma espécie de regresso ‘solitário’ às suas memórias de infância? Porquê agora?

Sem dúvida, foi assim que começou, de forma inocente, sem um objectivo predefinido. Foi uma busca, para preencher certos vazios da minha memória. Mas após dez, doze países, ao partilhá-lo com outras pessoas, pessoas que eu julgava conhecerem o contexto, tornou-se claro para mim que existe pouco conhecimento acerca do urbanismo naquele continente. Fiz uma exposição em Harvard, em 2003, para a qual tinham pedido que mostrasse o meu trabalho… mas eu sugeri  -  que tal mostrar antes a investigação que ando a fazer? A Toshiko Mori, na época directora, concordou em absoluto e perguntou-me: o que queres mostrar? Propus mostrar doze cidades africanas… tinha visitado quinze até então; literalmente constituiu um terço do projecto. Mostrámos o trabalho na entrada principal de Harvard e foi uma enorme revelação para muita gente. Foi muito estranho para muita gente, chocante mesmo, que não imaginavam que um discurso modernista, um discurso pós-modernista e um discurso pós-desenvolvimento também tinham os seus resíduos em África… surpreendeu-me que as pessoas não pensassem nisso, mas ali estava… todas as ideias que estávamos a discutir… ninguém tinha procurado compreender de forma sistematizada a relação entre estas ideias, no contexto daquele continente.

Cresceu a viajar pelo mundo, depois estabeleceu-se em Inglaterra. No entanto preservou uma relação mais forte com África do que teria se lá tivesse vivido. De onde vem esta ligação?

Culpo a minha mãe! (risos) Como viajávamos muito, os meus pais eram muito sensíveis à ideia de que nós tínhamos raízes numa cultura específica, numa identidade específica. Isso foi sempre muito claro em casa. Em casa éramos miúdos do Ghana como todos os outros… falávamos a língua, comíamos o mesmo… Havia estabilidade, nessa identidade. De uma forma estranha, embora não tenha passado muito tempo no Ghana, sei muito sobre o país, através dos meus pais e da família que sempre me rodeou. Foi possível sair, viajar pelo mundo, sabendo sempre que podíamos regressar, em segurança, à nossa identidade e núcleo familiar. Não nos dissolvemos no mundo!

Abidjan, Costa do Marfim. fotografia de David AdjayeAbidjan, Costa do Marfim. fotografia de David AdjayeBamako, Mali. fotografia de David AdjayeBamako, Mali. fotografia de David Adjaye

 

A arquitectura é diferente em África? Como é que acha que é entendida?

Não me parece que o processo de construção seja necessariamente diferente. Mas a forma de a habitar e traduzir são completamente diferentes. E essa é que me parece a ideia que, em África, é importante compreender. Há um processo construtivo… na medida em que existe um entendimento empírico de como se constrói um edifício. Mas a utilização do edifício e a forma como as pessoas assimilam o seu sentido são totalmente diferentes. O contexto social tem aqui uma enorme importância… porque existe um certa imagem pré-concebida da arquitectura em África, onde as pessoas associam um certo estilo de vida a este território… mas não é necessariamente assim. A vida quotidiana é ambígua, e eu defendo que é determinada pelo nosso entendimento do clima e região. Porque as condições climáticas são tão extremas, não são temperaturas medianas, é muito… agreste. Até a savana de Sahel, que não é deserto, ainda é muito intensa. A savana é extraordinária, uma região plana, com vegetação incrível, de campos, sem zonas urbanas… mas encontras lugares como Nairobi, fascinante, plano… mas o coração do continente é a floresta tropical, profunda, na cintura central e ocidental africana, é a região mais rica do continente, porque é onde se localizam os rios…

Faz toda a diferença…

Totalmente! É aí que as culturas são mais fortes. A presença dos rios, da agricultura, tornam as culturas… voilà… É muito óbvio quando se analisa do ponto de vista antropológico, tudo faz sentido… O local influencia o objecto. Há que olhar com sensibilidade, só depois é possível compreender o sentido das imagens… Este trabalho não pretende falar sobre arquitectura enfatizando o objecto, mas como fragmentos dentro da composição da cidade. Uma arquitectura que só é assimilada quando se compreende o lugar. Há pistas nas fotografias, não óbvias. Somos levados a questionar mais: porque é que isto me parece familiar mas não o é?

Tunis, Tunísia. fotografia de David AdjayeTunis, Tunísia. fotografia de David AdjayeAntananarivo, Madagascar. fotografia de David AdjayeAntananarivo, Madagascar. fotografia de David Adjaye

 

Agora mais detalhadamente, o que julga transportar de África para o contexto da arquitectura ocidental?

Creio que tenho um discurso distinto sobre a noção de habitar e de espaço público, mesmo inconscientemente. Foi através da pesquisa que me tornei mais consciente das minhas próprias práticas. Tenho uma necessidade constante de tornar coisas públicas, uma noção aberta de espaço público, mesmo quando isso não está lá, e isso é uma característica da minha sensibilidade africana. Uma ideia de um espaço público aberto. Ver. Não esconder, ver! Isso está presente no meu trabalho. Outra coisa - não sei se é uma característica africana ou não - é um certo encanto com o potencial dos materiais. Há muitas maneiras de entender isto. Por exemplo, quando vejo certos bairros de lata, fico impressionado com o encanto da materialidade. Transcende-me ver que tudo é possível, numa nova combinação, numa nova composição… é muito forte para mim. Muito, muito forte. Penso que isto revela uma sensibilidade relativamente à oportunidade dos materiais, que é própria deste continente: um desejo de encontrar potencialidades em cada material.

Das suas palavras acerca desta exposição - longe de ser uma mera selecção de fotografias - ficamos com a sensação de que canalizou um grande esforço para este projecto…

Uma tonelada!

Quase como se se tratasse de um projecto de arquitectura…

Mas é um projecto de arquitectura! Até porque a minha arquitectura, cada vez mais, baseia-se na relação e no entendimento das cidades, independentemente de onde fica a cidade. Para compreender os meus projectos é preciso compreender onde se encontram. Caso contrário estamos a avaliar - Huuummm… está ok! Eu não estou interessado no fetichismo do objecto fora do contexto. Pode ser que interesse a outras pessoas, óptimo, mas não é o que me move. A minha orientação e as minhas estratégias requerem uma capacidade de fazer parte do local. Não estar apenas de passagem! Quem passa pelos meus edifícios pode realmente nem os ver, mas se tiver oportunidade de utilizar um dos meus edifícios numa cidade…

Gaborone, Botswana. fotografia de David AdjayeGaborone, Botswana. fotografia de David Adjaye

Vejo-o como um perfeccionista, aliás, a sua obra fala por si. Laboratórios de pesquisa exaustiva sobre casas, mais recentemente equipamentos públicos. Vejo nessa sua forma de estar uma enorme qualidade. Querer saber, conhecer, dominar para então depois ‘brincar’. Divertiu-se também, nesta incursão por África?

Completamente! E ironicamente tive muitos amigos que queriam vir comigo, e eu recusei! Era um espaço para mim… mas fiquei um pouco triste quando terminou, por ter chegado ao fim - Meu Deus! Consegui… Visitei cada um daqueles países.

Lembra-me Niemeyer, que aliás entrevistou há uns anos para a BBC…

É um herói para mim.

Quando ele fala sobre a importância do desenho: ‘O arquitecto tem que saber desenhar, desembaraçar a mão para trabalhar…’ Parece-lhe correcto estabelecer um paralelo entre a câmara digital e o caderno de esquissos de que Niemeyer fala?

Absolutamente. No fundo isto são desenhos, são estudos, a composição é um estudo. Adoro a câmara por isso, acredito tratar-se do caderno de esquissos do séc. XXI. Dá-nos a capacidade de olhar vezes sem conta, aproximando, afastando, estudando novamente… E de ser livres, com ‘coisas’ para as quais eventualmente nem quereríamos olhar. A câmara digital força esse olhar.  Mesmo quando são ‘coisas’ de que pessoalmente não gostamos… força-nos a pensar.

Estas fotografias estão cheias de vida, pessoas… tantas ou mais do que arquitectura. O que me parece muito interessante.

É, de facto, verdade.

Li algures que os taxistas foram grandes aliados.

Foram os meus maiores adeptos! Quando comecei a ir a África, inicialmente arranjei guias para me mostrarem os sítios, mas rapidamente percebi que os guias tinham uma visão muito formatada, uma visão muito delimitada da cidade que me queriam mostrar, e não a realidade das cidades. Eles tinham uma imagem que queriam vender. Queriam no fundo condicionar a minha leitura e só depois deixar-me regressar a casa. Essa ‘curadoria’ era demasiada para mim… demasiado autoral… não me interessa essa propaganda, não estava ali para ser encantado pela visão de que África é um óptimo lugar para todos. Eu sei que alguns africanos ficariam chocados por eu andar a visitar casas pobres. Mas eu não estou a julgar realmente, também vejo casas pobres em São Francisco, não é esse o objectivo. Percebi que os taxistas podiam ser genuinamente desinteressados. ou incapazes de ‘embelezar’. Especialmente este género de taxistas… ia a casa deles, comer uma sopa com eles…

Nouakchott, Mauritânia. fotografia de David AdjayeNouakchott, Mauritânia. fotografia de David Adjaye

É uma informalidade surpreendente?

Exactamente. Muito bem visto. Eles começavam sempre por perguntar onde é que eu queria ir. Havia sempre um breve momento, quase como se fosse uma relação amorosa, depois eu escolhia um e seguíamos. Durante uns minutos tentava perceber se conseguíamos comunicar, em termos básicos. Depois dizia-lhes que ligassem o taxímetro, e pedia-lhes que me mostrassem todas as partes da cidade que eles conhecessem, queria ir a todos os sítios. Desde o sítio onde não acontece nada aos sítios mais perigosos, a todo o lado. Demorasse o tempo que demorasse, não importava. Um dia, dois dias, três dias, uma hora. Como eles quisessem. E é extraordinário, quando colocamos as coisas nestes termos, eles ficam surpreendidos. Começam por dar voltas e só depois nos guiam. Ao fim de algum tempo já percorremos as rotinas da cidade, fizemos os circuitos dos turistas, os das pessoas que vão de um trabalho para o outro, os passeios de fim de semana e o resto. Os padrões herdados das cidades. É incrível, porque quase que podemos fazer mapas na cabeça, porque eles seguem um método, as suas raízes… e antes que te apercebas, tudo chega a um fim natural, quando se começam a revisitar lugares. Nessa altura começam a andar em círculos e tu concluis - Bem, parece que a cidade é isto. Depois peço para voltar a determinadas zonas e fotografo essa área. Normalmente não saio do carro, não gosto de estar fora do carro, nem de fazer grandes composições. Parávamos e eu fotografava. Só se fosse muito difícil é que saía do carro. Tentava que as pessoas não percebessem que eu estava a fotografar.

Compreendo. ‘Estar’ sem interferir…

Eu queria que a vida seguisse normalmente, ser muito discreto. Porque sempre que eu saía do carro, altera-se o lugar, a realidade muda. Por isso, os taxistas foram óptimos. Permitiu-me agir com uma certa informalidade e uma certa distância. Porque, claramente eu sou o autor, mas queria sentir-me não-autor… de-autor… de uma certa forma, como matéria. Como uma molécula.

Hoje em dia como vê a sua relação com África? Puramente profissional, emocional? Tem projectos para África?

O meu problema é que eu não consigo resistir ao continente, atrai-me sempre. Agora, ao fim de quinze anos a trabalhar pelo mundo, finalmente estou a trabalhar em África. Finalmente sucumbi! Mas também porque finalmente existe a possibilidade, as economias estão a crescer. A zona de onde vem a minha família, a África ocidental, está em claro desenvolvimento. Sinto que agora existe a oportunidade de trabalhar no continente, e após ter terminado esta pesquisa que ocupou dez anos da minha vida, sinto que tenho uma perspectiva pan-africana, que adquiri uma ferramenta mental muito útil. Estou a trabalhar na África ocidental e na África do Sul, e espero vir a ter lá um escritório… e quem sabe, outra casa! Eu vivo no mundo!

Obrigado David.

Não consigo deixar de partilhar… estou cheia de inveja… deve ter sido uma tremenda experiência! Como gostaria de ter feito esta exposição… Parabéns e bem vindo a Lisboa!

(risos)

  • 1. DAVID ADJAYE é actualmente um dos mais reputados arquitectos da sua geração. Reconhecido por uma grande sensibilidade e visão artística, a utilização engenhosa dos materiais, o design personalizado e a sua capacidade para esculpir e apresentar a luz, os seus trabalhos têm merecido a mais alta consideração, tanto por parte da comunidade de arquitectos como do público. Depois de formar o seu estúdio, Adjaye Associates, em Junho de 2000, recebeu uma série de encomendas de grande prestígio. Projectos de escala, público e geografia variada, colaborações com artistas – incluindo Chris Ofili e Olafur Eliasson –, exposições de design, pavilhões temporários e residências particulares, tanto no Rein Unido como nos EUA. Mais recentemente, famosos centros de arte e importantes edifícios públicos, em Londres, Oslo e Denver, são prova da atenção que David Adjaye dedica à compreensão das necessidades dos habitantes de cada espaço e ao respeito pela integração dos edifícios no ambiente natural em que se enquadram. Ideias que assentam na premissa da qualidade de vida da sociedade nas cidades. David Adjaye compreende o seu papel como modelo para os jovens e participa regularmente em diversas palestras. Foi ele o Professor Kenzo Tange de Arquitectura na Escola Superior de Design de Harvard, em 2007, tendo leccionado na Universidade de Princeton, em 2008. Anteriormente, tinha sido Unit Tutor na Architectural Association. Foi igualmente conferencista no Royal College of Art, onde recebeu o grau de mestre (MA) em arquitectura, em 1993 e recebeu a Medalha de Bronze do Primeiro Prémio RIBA. David Adjaye fez a sua formação na David Chipperfield Architects e, mais tarde, na Eduardo Souto de Moura Arquitectos, no Porto. As suas Idea Stores, em Crisp Street e Whitechapel receberam vários prémios e em 2005, David Adjaye recebe o prémio RIBA Building. O seu projecto mais recente, concluído em 2010, é a SKOLKOVO - Moscow School of Management (Escola de Gestão de Moscovo), alvo de críticas muito positivas. Presentemente David Adjaye lidera a equipa FAB - Freelon Adjaye Bond/Smith Group, responsável pelo projecto do futuro National Museum of African American History and Culture (Museu Nacional de História e Cultura Africano-Americana), em Washington DC, previsto para 2015. Em Maio de 2005, a Thames & Hudson publicou o primeiro livro de David – David Adjaye Houses: Recycling, Reconfiguring, Rebuilding (As casas de David Adjaye: Reciclar, Reconfigurar, Reconstruir), distribuído em todo o mundo. Em Janeiro de 2006, a Galeria Whitechapel, de Londres, foi palco da sua primeira exposição ‘David Adjaye: Making Public Buildings’ (David Adjaye: Fazer Edifícios Públicos), que foi acompanhada de um livro com o mesmo nome. A exposição esteve depois patente no Instituto de Arquitectura da Holanda, em Maastricht, no Studio Museum, em Harlem (Nova Iorque), no SCAD Savannah e no Museu de Arte Contemporânea, em Denver. David Adjaye co-apresentou duas séries de televisão da Dreamspaces, para a BBC, uma série de seis episódios sobre a arquitectura contemporânea, e apresentou dois programas da rádio BBC: no primeiro, apresenta uma entrevista com Oscar Niemeyer e, no segundo, com Charles Correa. Em Junho de 2005, David apresentou o programa de televisão «Building Africa: Architecture of a Continent» (Construir África: Arquitectura de um Continente). Neste contexto, prosseguiu o seu projecto pessoal de documentar cada uma das cidades capitais africanas, o qual culminou, em 2010, com a exposição «Urban Africa» (África Urbana) – uma viagem fotográfica por David Adjaye, apresentada pela primeira vez no Design Museum, em Londres. O livro foi editado em finais de 2010. Em Junho de 2007, David recebeu um OBE, pelos serviços prestados à arquitectura. Recebeu igualmente um doutoramento Honoris causa, em artes, da Universidade de East London, em Novembro de 2007. www.adjaye.com
Translation:  Rita Palma

por Rita Palma
Cara a cara | 1 Junho 2011 | arquitectura, cidades africanas, david adjaye, urbanismo