Território e identidade em Cabo Verde: debate sobre a (frágil) construção identitária em contextos recém independentes no mundo globalizado
A partir de um breve panorama histórico-político de Cabo Verde nas últimas décadas com ênfase nos seus desdobramentos no território relacionaremos a pretendida indústria do turismo no país com os paradigmas do planejamento estratégico. Isto significa a valorização de parcelas específicas do território beneficiando apenas grupos investidores sem tomar em consideração os impactos sociais, culturais e territoriais de grandes empreendimentos imobiliários. A produção de “não-lugares” e o achatamento cultural da arquitetura dos grandes empreendimentos imobiliários, decorrentes deste modelo de ocupação do território, materializa uma assepsia políƒtica da questão identitária. Ocupação de território e arquitetura têm colaborado para uma fragilização identitária, reforçando os padrões do período colonial cuja estratégia de dominação era o apagamento deliberado das raízes africanas e aproximação à matriz européia na construção da caboverdianidade. Debater a partir de Cabo Verde possibilita-nos analisar como os fenômenos identitários e sociais da globalização, sintetizados na organização espacial, constituem instrumentos perpetuadores das relações de poder historicamente estabelecidas.
Cabo Verde: breve contextualização
Cabo Verde, um estado-arquipélago, está situado em meio ao oceano Atlântico, entre Brasil e África, nas proximidades da costa do Senegal. O país é formado por dez ilhas, das quais nove são habitadas: Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Sal, Boa Vista, Maio, Santiago, Fogo e Brava. O espaço territorial total equivale a menos de 0,5% do espaço marítimo: 4.033 km2 contra 700.000 km2, respectivamente.
A população de quase 492.000 habitantes é majoritarimente jovem (55% menos com menos de 24 anos) (INE, 2010), fortemente marcada pelo desemprego, cuja taxa ronda os 25% (ibidem)1. A renda per capita de US$1.330,00 é mais que o dobro da África Subsaariana (US$490,00), sobretudo devido às remessas dos emigrantes, correspondente a 30% do PIB e à ajuda internacional (equivalente a 10% PIB). A carência de recursos naturais em simultâneo aos ciclos de seca profunda tem expulsado grande parte da população para a diáspora. Hoje em dia está estimado em um milhão o número de caboverdianos morando fora do país, o equivalente a dois terços da população nacional.2
O recente passado sob domínio colonial, até 1975, não pode ser excluído de um panorama geral sobre Cabo Verde. O colonialismo marcou profundamente a história dos países africanos, deixando traços indeléveis nas suas estruturas e organizações sociais. De destacar que a colonização portuguesa foi das mais longas no continente, sendo que no conjunto dos países africanos de língua portuguesa, Cabo Verde ocupou um lugar de distinção durante o regime colonial. E, diferente dos demais, não presenciou em seu território a guerra pela independência. A singularidade caboverdiana reside por um lado em menor controle do território por parte das políticas coloniais, ao contrário, por exemplo, de Angola e Moçambique. Por outro, o abandono total da população sem quaisquer investimentos em infra-estruturas, acompanhado de um discurso reforçado acerca das mazelas climáticas (o país é ciclicamente assolado por severos períodos de seca), resultou numa aceitação praticamente passiva das condições desiguais de acesso à terra, cenário não contestado e tampouco revertido com a independência. Passadas três décadas da desvinculação político-administrativa de Portugal, a ocupação do território caboverdiano tem demonstrado uma manutenção do modelo ocupacional do regime colonial.
A criação do Estado independente praticamente sobrepõe-se ao acirramento da globalização neoliberal das últimas décadas. De certo modo tem-se continuado e recriado os vínculos de dependência, uma vez que colonização e globalização são conceitos bastante próximos. Para Milton Santos (2001) o colonialismo foi a primeira globalização, caracterizada pela ocupação territorial. A segunda globalização (a globalização neoliberal), iniciada em fins do século XX, é marcada pela fragmentação dos territórios (ibidem). Importa mais para este ensaio, contudo sem desconsiderar a perspectiva história, o processo iniciado nas últimas décadas com a consolidação da matriz econômica em nível mundial sob os preceitos do Consenso de Washington3, envolvendo novas formas de dominação social e política na geopolítica internacional. Apesar do forte viés econômico, a globalização é um fenómeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas e culturais interligadas de modo complexo e com profundos impactos nos territórios, sobretudo nos países subalternos. Do ponto de vista dos países africanos, sob dominação do norte global nos últimos cinco séculos, o período contemporâneo da globalização só fez mudar os atores dominantes. Porém, a relação de subalternidade colonizada do continente prevalece inalterada.
Descolonizar é olhar o mundo com os próprios olhos, isto é, de um ponto de vista próprio: “o mundo é o que se vê de onde se está” (SANTOS, 2001). A manutenção da excessiva influência do norte global nos países do sul (não casualmente antigas colônias) em termos econômicos, políticos e culturais mantém a lógica colonizadora. A forte pressão da agenda internacional sobre os governos africanos, tanto por parte das distintas agências multilaterais como pelas empresas é uma das faces deste período, no qual Cabo Verde não é excessão.
Malgrado o viés econômico de fortes imposições tecnológicas, a globalização deve ser analisada também como um fenômeno que envolve “novas formas de dominação social e política que resultaram de conflitos, estratégias e imposição vitoriosa de determinados interesses (…)” (FIORI, 2007: 52). Estas transformações do sistema capitalista em curso desde os anos 70 não podem ser entendidas sem considerar as estratégias de poder mundiais desenhadas a partir de seu eixo anglo-saxão (ibidem: 53). Trata-se de um mesmo e único processo histórico de criação de riqueza e acúmulo de poder político. Neste processo, observa-se uma forte hegemonia do norte sobre o sul.
Em Cabo Verde, este período coincide com a denominada “abertura política”, nos anos 90. Esta década foi marcada no país, à semelhança de outros, como o Brasil, por exemplo, pela privatização e extinção de empresas estatais, favorecendo a ampliação do setor privado em diversas áreas da economia. No entanto, a história do Estado caboverdiano é bastante diversa daquela do norte global. Apenas após 15 anos de independência, com a estrutura estatal ainda em processo de consolidação e tendo um modelo administrativo de base colonial, há um desvio rumo à uma “desestatização”, descolado da história de formação do Estado nacional. Em breves linhas, o país atravessou um período de decomposição do Estado semelhante aos países centrais, sob o paradigma da gestão tercerizada das funções públicas, sem que a administração pública tivesse em Cabo Verde as mesmas características que justificaram a onda neoliberal no norte.
É justamente sob os auspícios neoliberais que, desde os anos 90, o governo de Cabo Verde tem apostado no setor turístico como importante pilar econômico. Se por um lado há, de fato, um afluxo de capitais signiticativo para o PIB nacional, por outro, são enormes os impactos territoriais e sociais dos grandes empreendimentos turísticos. Contudo, os custos indiretos destes impactos não têm sido computados adequadamente: crescimento populacional acelerado, sobrecarga da infra-estrutura urbana, concentração de renda, fragilização identitária.
O primeiro período pós-independência (1975-1992), foi marcado pela construção nacional e fortalecimento do Estado recém independente, através de um regime parlamentarista de partido único. A abertura para o multipartidarismo teve lugar na reforma constitucional de 1992, em concomitância, no contexto mundial, à consolidação da globalização neoliberal. É neste período que o governo opta por inserir o país no mercado internacional como um destino turístico de praia, “exótico”, “quase África”, “quase Europa”. A abertura democrática coincide, não por acaso, com o alinhamento do país às políticas neoliberais.
Além disso, os anos 90 são marcados, em Cabo Verde, não apenas pela abertura política, mas como “uma era do consumo, e com ela o consumo do espaço” (FIEDLER, 2008: 08). Com vistas a tirar proveito da capitalização do território, tem sido fundamental regular o crescente consumo do espaço alavancado desde o período. Por este motivo o país, através de cooperações multilaterias, tem investido na última década em planos de ordenamento do território. Faz parte desta estratégia a reserva de grandes áreas para o aproveitamento turístico. As denominadas ZDTIs (zonas de desenvolvimento turístico integral) são “áreas que por possuírem excelentes condições geográficas e valores paisagísticos têm especial aptidão para o Turismo” (decreto legislativo 2/93). Vale lembrar que da superfície nacional apenas 10% (cerca de 41.841ha) é destinado à agricultura, sendo o relevo montanhoso uma condicionante importante na exiguidade territorial para o plantio (ICIEG, 2008).
Desde os anos 2000, o turismo tem aumentado consideravelmente, segundo estudos do Banco de Cabo Verde. Em 2006, um ano após inauguração do aeroporto internacional da Praia, estima-se a entrada de 17 milhões ECV (159 mil euros), na atividade turística. Em 2008 este valor aumentou em 50%, alcançando cerca de 25 milhões ECV (230 mil euros) (CI, 2009).
Em face às pressões para respostas ao mercado mundial são enormes as consequências locais. Grandes empreendimentos imobiliários, principalmente turísticos, de grupos transnacionais têm aportado no país nas últimas décadas, com implicações de diversas naturezas, desde impactos espaciais/ambientais a culturais. A ocupação extensiva do território com foco em uma única atividade produtiva de grande porte, pode ser definido como “monocultura do turismo”. À semelhança dos latifúndios rurais monoculturais, esta ocupação do território consolida um mecanismo de concentração de riqueza, o qual, em Cabo Verde, vem sendo dominado por grupos estrangeiros conectados à uma elite nacional.
Ao mesmo tempo, este modelo de ocupação do território materializa vincadas contradições identitárias. Entre o ser “africano” e o desejo “europeu” (BARROS, 2010), revela-se uma subalternidade discursiva exposta tanto na ocupação do território quanto na arquitetura produzida nas últimas décadas.
Turismo e território: mercadorias de exportação
Cabo Verde tem observado nos últimos anos uma gama de projetos pontuais de intervenção urbanística, muitos dos quais feitos por arquitetos estrangeiros que nunca estiveram no país, apresentando propostas fantasiosas, economicamente inviáveis e de alto impacto ambiental e social. Não obstante todos estes problemas, tais propostas são fortemente abraçadas pelo poder público, mídia e população locais, todos, de um modo geral, ávidos pelo “desenvolvimento”, em sua acepção mais conservadora. Hoje em dia com maiores restrições de implantação nos países centrais, tais projetos de intervenção urbana ou desenvolvimento turístico imersos em forte marketing internacional, têm encontrado terreno fértil nos países periféricos sem uma massa crítica coesa nem uma voz dissonante.
Mega-projetos de intervenção urbana como a remodelação de Barcelona, da zona portuária em Londres, ou no Brasil, das docas em Belém e do pelourinho em Salvador, para citar alguns, inserem-se num modelo de compreensão do território denominado planejamento estratégico ou city-marketing. Desenvolvido sob a égide do neoliberalismo, o planejamento estratégico tem sido o paradigma de maior aceitação entre as classes dirigentes nos países pobres. Os principais objetivos destes planos são a manutenção da ordem de modo a facilitar a ação de grupos investidores, especialmente daqueles ligados ao capital imobiliário e grupos econômicos, pouco interferindo na qualidade de vida e no combate às desigualdades sócio-espaciais. O resultado são cidades, em todo o mundo, profundamente marcadas pela segregação espacial, na qual as zonas centrais mais bem servidas de infra-estrutura são ocupadas pelas classes mais abastadas. Nas regiões mal atendidas por serviços e equipamentos urbanos, reside a população de baixa e de baixíssima renda.
O território é, por conseguinte, uma mercadoria a ser vendida e consumida. Como tal, as intervenções, mais do que atender demandas de seus habitantes, devem tratar de reforçar seus atributos específicos e “vendáveis” de modo a atrair “visitantes solventes”, (BORJA e CASTELLS, 1997). A gestão do território ganha contornos de planos de marketing, nos quais uma “boa” imagem de cidade/país deve ser reforçada, enquanto as tensões sociais, amenizadas, ou mesmo ocultadas. O ocultamento deliberado das tensões existentes no espaço urbano beneficia a especulação imobiliária facilitada pela legislação urbanística excludente e pela ação do Estado em áreas de maior interesse do capital.
Este modelo econômico centrado em vantagens competitivas entre os países foi muito divulgado nos anos 90 a partir da publicação de Competitive Advantages of Nations, de Michael Porter, professor da Harvard Business School. A reprodução deste modelo de infinita maximação econômica traduziu, em termos de governança estratégica, o pensamento neoliberal acirrado daquele período. A partir deste conceito, Michael Porter propôs uma metodologia para o desenvolvimento regional, na qual empresas com alto nível de agregação juntam-se para aumentar a competitividade de determinado setor. Com uma compreensão marcadamente empresarial da gestão pública, Porter chegou a afirmar que as empresas e não as nações competem em mercados internacionais (PORTER, 1990). Dentre os diversos problemas apontados em seu trabalho, por especialistas da área, o mais relevante para o caso de Cabo Verde é o cerne do desenvolvimento atrelado à competitividade e a redução de políticas nacionais a decisões de negócios (AKTOUF, 2002). Somado à matriz do pensamento urbano que compreende o território como um meio para o marketing das cidades, tem-se um direcionamento das decisões estratégicas para o país pautado pela ótica dos negócios e do marketing.
Numa perspectiva histórica de desigualdade econômica não é possível para países periféricos competirem com economias solidamente estabelecidas. Vale mencionar, ademais, a exploração de séculos destas mesmas economias frágeis pelas grandes potências econômicas atuais. Em outras palavras, não é possível falar-se em “vantagem” quando se sabe que há uma imensa diferença entre “(a) as condições iniciais que permitiram a decolagem econômica do ocidente no século XVII e (b) as condições atuais a partir das quais se pede aos países do terceiro mundo que façam a sua própria decolagem” (ibidem: 49).
Uma vez que as vantagens competitivas das nações pressupõe uma hipótese de simetria de poderes, Porter, ao fim e ao cabo, despreza o jogo de forças ao qual todas as sociedades estão submetidas, sobretudo ao nível mundial, com o aprofundamento das políticas neoliberais. Ao desconsiderar as assimetrias de poder econômico entre os países, seu modelo colabora para invisibilizar a exploração histórica do norte sobre o sul global, “já que o mais fraco é exposto como aquele que não sabe usar suas vantagens competitivas” (ibidem: 51).
Em simultâneo a um entendimento das “vantagens competitivas das nações” (PORTER, 1990), no que concerne ao pensamento urbano, o planejamento estratégico dos anos 80 e 90 estabeleceu o território como mercadoria estratégica. Dentro de um modelo competitivo na conquista de investimentos financeiros, o planejamento estratégico incentivou projetos de remodelamento e requalificação urbana, no qual as cidades competiam entre si pela instalação de grandes empresas ou de grupos estrangeiros.
A indústria do turismo em Cabo Verde tem sido pautada por estas premissas, orientando a promoção do país como um destino turístico alternativo, próximo da Europa, de clima ameno e recursos naturais bem conservados. O Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), elaborado em 1995, considera o turismo um setor estratégico para o desenvolvimento social e econômico do país. Esta perspectiva é reforçada no PND 2002-2005. O governo acredita que o setor é capaz de mobilizar e atrair recursos que a longo prazo poderão ser utilizados em outros setores estratégicos no desenvolvimento. Por este motivo, diversos são os incentivos para investimentos nesta área.
O direcionamento quase que exclusivo da economia caboverdiana para o setor turístico de viés internacional, somado a um entendimento do território em termos mercadológicos, tem limitado a análise dos impactos turísticos à perspectiva macro-econômica. Contudo, ao se avaliar as consequências na qualidade da ocupação do território, nestes locais nos últimos anos, é possível observar uma sobreposição dos aspectos negativos sobre os positivos: as deseconomias do turismo podem, afinal, significar uma implosão da qualidade de vida.
O não-lugar e as fragilidades identitárias
A política de ocupação do território em Cabo Verde, pautada pelos grandes empreedimentos imobiliários e pela valorização excessiva do cimento e vidro, tem colaborado para uma fragilização identitária. A massificação dos empreendimentos apaga as potencialidades e especificidades locais. As vantagens competitivas pela diferenciação, conforme preconizadas por Porter (1990), limitam-se a uma diferenciação em termos de custo e incentivos fiscais. Isto é, Cabo Verde será um destino de investimento do capital internacional enquanto durarem os investimentos públicos que o subsidie. A vantagem competitiva é traduzida apenas em termos econômicos, por sua vez pouco sustentáveis a longo prazo, dada a pouca retenção local dos dividendos e os resultantes impactos no território.
Em termos de produto turístico, está-se fabricando um país no qual batucadeiras4 e ritmos latinos são homogeinizados em espectáculos realizados nos palcos de estilo neo-bizantino dos empreendimentos turísticos, como os resorts em Sal e Boa Vista. A arquitetura destes hotéis é bastante reveladora deste pastiche cultural: domos árabes misturam-se a máscaras africanas, nivelando, por meio da arquitetura, perspectivas históricas e temporais distintas. Este achatamento colabora deliberadamente para o esvaziamento político característico do “multiculturalismo”, a lógica cultural do capitalismo global (ŽIŽEK, 2006), interferindo diretamente na construção dos desejos, pautados principalmente pela valorização do que é de “fora”, “estrangeiro”, em detrimento dos valores locais. Deste modo, não apenas as casas têm sido substituídas pelo bloco-cimento sob forma de “status” como relações afetivas de diversas naturezas entre estrangeiros e nacionais têm frequentado o sonho de diversas moças e rapazes por todas as ilhas. Tanto a mercantilização do território, quanto a fragilização identitária com a sobrevalorização do “estrangeiro”, são produtos de um mesmo processo de inserção do país numa agenda de desenvolvimento internacional.
De ressaltar que o “estrangeiro” valorizado, copiado e desejado é o branco europeu, em contraposição ao pejorativo “imigrante” ou “mandjaku”, utilizado para designar os estrangeiros negros originários da costa africana. Dito de outra forma, há uma forte racialização identitária (ROCHA, 2009), na qual o caboverdiano busca afastar-se do negro africano. Esta cisão com o continente foi, de certo modo, “imposta” pelas estratégias usadas pelos portugueses de distanciar o caboverdiano das raízes africanas e aproxima-los da matriz européia (ELLERY, 2009). Na mesma direção é construída a “caboverdianidade”, uma identidade forjada nos tempos da colônia, a partir das elites, majoritariamente formada pelos “brancos da terra” escolarizados, ou seja, a elite intelectual (DOS ANJOS, 2000).
No modelo de governanção colonial, o caboverdiano ocupou postos de comando na administração das colônias. Além disso, não lhes foi imposto o Estatuto do Indigenato, em vigor de 1926 a 1931 na Guiné-Bissau, em Angola e em Moçambique5. Como uma espécie de “capataz” da metrópole, ao caboverdiano foi designado desde sempre um lugar de distinção na hierarquia colonial. Desta feita, há a “construção de um imaginário de superioridade que se considera ter sido criado e difundido pelo colonizador e, posteriormente, reforçado pelas elites intelectuais caboverdianas, que passaria a atingir todos os ‘palopianos’“ (ELLERY, 2009: 77). É esta mesma elite, sobretudo através da literatura, que constrói simbolicamente a caboverdianidade ou a “crioulidade” (DOS ANJOS, 2000; BARROS, 2009).
Trata-se de um discurso acerca de uma pressuposta harmoniosa mistura de raças, com base ideológica nos escritos de Gilberto Freyre. Ao analisar a formação da sociedade brasileira o sociólogo afirmou, nos anos 30, que a miscigenação entre brancos, índios e negros resultou num convívio harmonioso entre estes povos, abafando as relações de poder e opressão existentes no Brasil. Este “mito da democracia racial” instaurado por Freyre privilegia o que se denomina “branqueamento” da raça, num direcionamento claro de valores positivos do eurocentrismo: a brancura e a valorização das raízes da cultura européia.
Alicerçada sobre o discurso freyriano, a propaganda colonial salazarista propagou igualmente o “mito multirracial”, ou seja, de que a dominação portuguesa seria assente numa miscigenação pacífica e na ausência de racismo. O “mito multirracial” é desconstruído, principalmente, com o discurso de Amílcar Cabral na ONU em 1962, quando é apresentada uma análise crítica do colonialismo português. Nos anos seguintes, Cabral continua a denunciar a violência colonial materializada nas precárias condições de trabalho nas colônias, no deslocamento forçado de trabalhadores entre as províncias, na exclusão dos negros e mestiços da administração colonial, na separação entre nativos e metropolitanos, inclusive no território, e, especificamente, no Estatuto do Indigenato ” (CABRAL apud ANDRADE, 1978).
No entanto, o discurso colonial não apenas busca legitimar a dominação para o mundo, mas colabora fortemente para a construção da caboverdianidade, isto é, o “mito da especificidade caboverdiana” (BARROS, 2009). Este mecanismo diferencia hierarquicamente Cabo Verde dos demais países africanos como um meio para comprovar o “sucesso” da ação colonizadora portuguesa nos trópicos, tão bem sucedida que para muitos o arquipélago seria um prolongamento da metrópole (ibidem). Entenda-se que subjaz a esta idéia uma aproximação dos valores europeus, ainda que sob a égide “tropical” ou “crioulo”, em detrimento de uma “África selvagem” cada vez mais longíqua.
Em outras palavras, nesta mistura racial higienizada e afastada da violência física e simbólica de sua gênese há constante referência a uma “perda da identidade africana”, não sendo considerada “a possibilidade de os colonos portugueses terem ‘perdido’, eles também, suas ‘identidades europeias’, revelando muito mais um pensamento que reproduz o discurso da assimilação (passividade) pelo lado do oprimido” (ELLERY, 2009: 73).
Politicamente ruma-se na mesma direção. A retórica impregnada na parceria especial do país com a União Européia evidencia a polaridade subalterna desta relação (BARROS, 2010). Outras delimitações de pertença do arquipélago, como por exemplo, a “invenção” da Macaronésia ou do espaço Atlântico, repelem a proximidade continental com a África, mirando, não por acaso, à antiga metrópole (ibidem).
A gramática do território e das novas construções materializa esta fratura identitária entre o desejo de ser Europa (ou o Norte-Global) e a impossibilidade de não sê-lo. O argumento da integração utilizado para justificar a parceria especial com a União Européia, mesmo que uma integração subordinada, tem alicerces, como já exposto, no regime colonial quando Portugal destacava Cabo Verde ante os demais países africanos, diferenciado pela sua “população civilizada”, ou ainda, aquando do Estado Novo, as ilhas eram representas pela propaganda colonial como “Portugal desterrado” e “Portugal Crioulo” (ibidem).
Neste jogo de atração e repulsão, território e arquitetura sempre exerceram uma função basilar delimitando, configurando e desenhando os espaços de poder. Nas últimas décadas, sob os auspícios da globalização neoliberal, o consumo do espaço tem impelido aos arquitetos a “missão” de construir e inventar lugares esvaziados de sentido e preenchidos de desejo. É sob esta perspectiva que Cabo Verde tem materializado a sua imagem: asseptizada, para atender a expectativa do visitante, e esvaziada de si, no desejo de aproximação/incorporação com o norte. Ao tentar impor-se internacionalmente com um destino significativo no turismo internacional e ao apostar nos grandes empreendimentos do tipo resort, sob o modelo “all inclusive”, o país tem se transformado em um “não-lugar” (AUGÉ, 1994).
Desde os anos 70, a condição pós-moderna tem sido intensamente debatida sob o alinhavo da sociedade de simulacros, do consumo e do espetáculo (BAUDRILLARD, 1981, 2008; HARVEY, 1992; JAMESON, 2006; BAUMAN, 2001; DEBORD, 1997). Os grandes hotéis em cadeia para atender a um turismo cada vez mais massificado são não-lugares contemporâneos, juntamente com aeroportos, estações de metrô e supermercados (AUGÉ, 1994). O usuário do não-lugar mantém com este uma relação contratual representada por símbolos da supermodernidade: cartões de crédito, passaporte, telefone celular, mecanismo que permitem o acesso, comprovam a identidade e autorizam deslocamentos impessoais.
Se por um lado o conceito de lugar é definido através da troca e da “intimidade cúmplice dos locutores”, o não-lugar produzido pela sobremodernidade, como demonstra Augé, mediatiza todo um conjunto de relações consigo próprio, não criando “nem identidade singular, nem relação, apenas solidão e similitude” (ibidem: 108). A impessoalidade é a síntese do não-lugar definido por vazios identitários, relacionais ou históricos. Estes vazios são lacanianamente ocupados por uma identidade forjada e artificial configurada pela somatória de clichês sobre dada cultura, como os arabescos arquitetônicos do hotel Riu-Karamboa, nada condizentes com a história e cultura do país. Através dos não-lugares, é descortinado um mundo provisório comprometido com o transitório e com a solidão.
O achatamento cultural da arquitetura dos grandes empreendimentos imobiliários em Cabo Verde traduz uma assepsia política da questão identitária, dando corpo e volume, através da arquitetura, ao multiculturalismo, criticado pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek. Para o autor, o multiculturalismo é a forma ideológica do capitalismo que trata cada cultura local “à maneira do colono que lida com uma população colonizada” (ibidem: 72), estabelecendo relações de distanciamento com o Outro naquilo que, no caso do multiculturalismo, Žižek chama de “racismo com distância” (ibidem). A identidade do Outro é respeitada como uma “comunidade ‘autêntica’ fechada sobre si mesma, em relação à qual o adepto do multiculturalismo mantém, por seu lado, uma distância que torna possível a sua posição universal privilegiada” (ibidem, aspas no original). O resultado deste respeito e distanciamento com relação ao Outro constitui uma afirmação da superioridade do Mesmo.
Trata-se de um sistema político caracterizado, essencialmente, por uma política sem política: a experiência do Outro privado da sua Alteridade. Este mecanismo de instauração da superioridade com distanciamento é o mesmo que leva turistas a safaris pela África selvagem, às praias exóticas de Cabo Verde ou, em sua versão pós-moderna, ao safari urbano pelas favelas brasileiras. Apesar da proximidade física do visitante com estes contextos, não é possível romper o fosso social entre realidades tão opostas. A exotização da cultura local por meio da mistura descabida entre “batuque e salsa”, por exemplo, expõe o grotesco a partir do qual o “racismo com distância” (ibidem) organiza o mundo. Processos de reificação e mercadorização de manifestações folclóricas têm acontecido em diversas partes do mundo, sobretudo nos centros históricos “revitalizados”, nos quais todas as noites grupos folclóricos se apresentam para turistas. Desde que dentro dos padrões estabelecidos pelo dominador, estes grupos podem ser tolerados e até mesmo incorporados. Trata-se do que Žižek apontou, no caso do multiculturalismo, de uma tolerância ao Outro enquanto este não seja o verdadeiro Outro, mas sim um Outro asseptizado (ŽIŽEK, 2006: 76).
Ao designar o lugar do Outro, cristalizando sua identidade de maneira exotizande, há um esvaziamento político deliberado das forças emancipatórias que a questão identitária potencialmente pode ter. Antonio Ciampa (2002) tem trabalhado o conceito de identidade como metamorfose, explicada a partir da relação entre o indivíduo e o grupo numa tensão constante entre políticas de identidade e identidades políticas. A partir de uma compreensão do poder nas relações sociais, o conceito de identidade proposto por Ciampa, em meados dos anos 80, nos permite destrinchar seus aspectos tanto regulatórios quanto emancipatórios (cf. Lima, 2008). Desta maneira, as políticas de identidade, importante fator de mobilização política coletiva, podem ser
emancipatórias quando ampliam a possibilidade de existência na sociedade, garantindo direitos para os indivíduos, ou regulatórias, quando criam regras normativas que muitas vezes impedem que o indivíduo consiga sua diferenciação. Ao passo que as identidades políticas surgiriam quando os indivíduos desenvolvessem uma concepção de identidade para si mesmos e passassem a se diferenciar do grande número. Podendo em um primeiro momento se valer das políticas de identidade para fazer valer seus direitos, fortalecendo as possibilidades de reconhecimento, aumentando os laços solidários e, num segundo momento, assumindo novos projetos e novas pretensões de reconhecimento (ibidem: 12).
A contribuição de Ciampa dentro do campo teórico da psicologia social foi, entre outras coisas, apontar as limitações dos conceitos de identidade que tendem a descrevê-la como algo estático, inclinada à cristalização, e fora do caráter opressor do sistema capitalista. Para o autor, o contexto político é fundamental e indissociado da questão da identidade e, por isso, em sua compreensão, identidade é um conceito com fragmentos de emancipação e de sutil opressão (ibidem). Neste sentido, identidades prévia e autoritariamente decididas, como é o caso das identidades do multiculturalismo, criticado por Žižek (2006), têm um aspecto profundamente regulatório e opressor.
Sob esta ótica, os “entertainment shows” dos hotéis em Cabo Verde são simulacros de batucadeiras e funanás, asseptizados para uma fácil assimilação do turista em férias, descompromissado com a realidade local. Não importa entender a força subversiva destas manifestações duramente repreendidas em tempos coloniais devido a relatarem (e delatarem) o árido cotidiano da vida no país. Tampouco interessa a memória coletiva marcada pelos ciclos de seca e pela diáspora. A falta de água cantada em tantas músicas limita-se, para o turista, aos avisos nas casas de banho dos hotéis, nos quais pede-se economizar tal recurso natural escasso no país. Reclusos em seus enclaves de excelência infra-estrutural, para estes estrangeiros, a “hora d’agua” não é mais do que uma expressão bizarra e incompreensível.6
Território, arquitectura e identidade
A identidade caboverdiana enquadrada pela morabeza, batuque e funaná dos desdobráveis turísticos é esvaziada de sua especificidade e atualização para ser cristalizada numa política de identidade opressora construída de fora para dentro e imutável no tempo e no espaço. Resta ao habitante local atender aos desígnios esperados pelo visitante temporário, sob pena de perder mercado no turismo internacional, ávido pelo exótico. Preso a esta identidade imposta, o país entra num ciclo de perversa fractura identitária. A arquitetura que acompanha estes empreendimentos materializa este ciclo: em plena Sal-Rei, edifícios marcadamente locais vêm copiando as cúpulas arabescas do hotel Riu-Karamboa, como sinal de status. É o simulacro do simulacro. Para ser aceito, um povo subalternizado deve atender as expectativas do Outro (no caso o Mesmo hegemónico global), ao invés de lutar pelo seu direito à diferença.
O resultado tende a ser uma caricatura de si: com dificuldades de auto-referir-se, esvazia-se a capacidade coletiva de metamorfose e constante recriação, processos basilares para identidades políticas de emancipação. Grupos e indivíduos estão em constante processos identitários, acumulando diversas identidades ao longo do tempo, construídas permanentemente por percursos históricos e contextos políticos. Figuras identitárias a-temporais consolidadas pelos grandes empreendimentos internacionais tão somente aprisionam e esvaziam o carácter emancipatório da construção de si.
Os não-lugares de Augé constituem os espaços em resposta ao multiculturalismo criticado por Zizek, sob as políticas de identidade opressoras de Ciampa. Tratam-se de fenômenos identitários e sociais da globalização sintetizados na organização espacial. A produção arquitetônica associada a este contexto está preconizada no texto anti-modernista Aprendendo com Las Vegas, de Robert Venturi (2003). Embora escrito nos anos 70 como uma crítica aos dogmas da arquitetura modernista que dominou a produção arquitetônica do século passado este manifesto em defesa de uma “arquitetura popular” tem alimentado toda uma produção dos não-lugares nas últimas quatro décadas.7
A arquitetura pós-modernista nos anos 70 e 80 ressignificava os cânones anteriores. Como crítica à austeridade do modernismo, os arquitetos pós-modernos fizeram uma reavaliação do papel da história, reabilitada na composição arquitetônica, principalmente como meio de provocação e ironia. A cidade histórica foi re-estudada em busca da reabilitação da escala humana no urbanismo. Há também uma volta ao interesse pela cultura popular. Passado este período inicial, a mera repetição formal proposta pelos pós-modernistas críticos tornou-se uma solução mercadológica, com uma forte ligação a centro comerciais, prédios corporativos e sociedade de consumo. Esvaziada do conteúdo crítico, os excessos ornamentais da arquitetura pós-modernista são apenas cenários perfeitamente absorvíveis pelos grandes projetos de remodelação urbana do planejamento estratégico, com sua alta especialização em não-lugares. Este é o caso dos grandiosos edifícios em Dubai ou da polémica proposta Mararishi Tower para o centro de São Paulo8.
Em 1990, o arquiteto Rem Koolhaas, um dos expoentes de sua geração, inicia seu texto sobre o que designa “cidade genérica” com a pergunta: “a cidade contemporânea é como o aeroporto contemporâneo?” (1995: 1248; original em inglês). Em direção oposta à leitura crítica de Marc Auge sobre os não-lugares, Koolhaas propõe praticamente uma ode à cidade genérica: “quais as desvantagens da identidade e, convergentemente, as vantagens do vazio?” (ibidem). Em sua concepção, identidade é um aprisionamento ao passado. Sob este aspecto, seu ponto de vista se aproxima das críticas ao multiculturalismo e às políticas de identidade. Todavia, com uma leitura parcial sobre identidade, o arquiteto não concebe uma possibilidade emancipatória da questão identitária. Para entender a construção social da identidade é preciso por em contexto história, espaço e tempo, todos atravessados por relações de poder.
Muitos movimentos sociais em diversos países, com destaque para aqueles voltados à questão étnica e de gênero, têm sido bem sucedidos em postular fortes argumentações emancipatórias da identidade, pautando-se pelo equilíbrio entre a igualdade e o reconhecimento: “temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza” (Santos, 2006: 313). É nesta tensão entre igualdade e diferença que está a possibilidade de resistir, impedindo a captura da diferença como mecanismo homogeneizante.
Ao desconsiderar esta possibilidade, a obra de Koolhaas torna-se um arauto do pós-modernismo, despolitizada e tão opressora quanto àquela que critica. Ao defender a cidade genérica como “a cidade sem história” a qual pode produzir uma nova identidade a cada dia, acaba por postular o aparato teórico-ideológico que guiará grande parte da produção arquitetônica na passagem dos séculos XX e XXI. A produção de Koolhaas encontra ressonância em diversos de seus pares. Ricardo Bofill, arquiteto espanhol, autor do projeto Gamboa Frente Marítima9, na Praia, coaduna este mesmo universo.
Trata-se de uma arquitetura genérica para “cidades genéricas”. Isto é, são projetos com pouca relação com o contexto no qual se inserem, acreditando-se sempre capazes de remodelar, a partir da arquitetura, novas dinâmicas econômicas, sociais e culturais. Entretanto, o que tem sido observado é um perverso processo de gentrificação usualmente decorrente de grandes empreendimentos com fortes impactos no território.10
A requerida liberdade da não-identidade de Koolhaas está associada à contruatalidade solitária de Augé. A identidade acaba por ser o elemento unificador de grupos e sociedades, sem a qual um conjunto de pessoas jamais forma um coletivo. Sem uma construção concreta e simbólica dos espaços, sem uma coesão social com base numa comunidade de sentidos, não há conhecimento e reconhecimento de si. Neste cenário, não há qualquer possibilidade de resistência. A cidade genérica, o não-lugar e a arquitetura-cenário constituem, portanto, instrumentos perpetuadores das relações de poder historicamente estabelecidas.
Em Cabo Verde, se o acelerado crescimento do país a partir dos anos 90 permitiu, por um lado, um maior acesso a bens e produtos dos quais a população estava anteriormente privada, por outro lado, tem criado um ambiente de fragilidade identitária que pouco ou nada colabora para fortalecer uma capacidade contra-hegemónica de resistência, em seu sentido mais alargado.
A aposta no turismo internacional e nos investimentos imobiliários de grande porte têm desenhado uma trajetória de submissão do país aos desígnios do mercado internacional. Sob este aspecto, o território é apenas uma mercadoria vazia e anódita que pode ser substituída a qualquer momento por novas vantagens competitivas algures. Saem os investimentos, ficam os impactos territoriais.
Em adição aos impactos característicos de um processo de inchamento das cidades, com sobrecarga na infra-estrutura instalada e uma visível piora na qualidade de vida, as disparidades econômicas e sociais definidoras da sociedade são claramente espelhadas no território e nas zonas residenciais das cidades. Pode-se verificar, atualmente, em Cabo Verde, por meio da análise das habitações construídas, tanto nos bairros de alto padrão econômico, como naqueles mais precários, o abandono de certas práticas culturais de habitar e a afirmação de outras. Ou seja, algumas mudanças radicais estão em curso nos hábitos de morar e nas tendências construtivas no país, sob a influência dos excessos arquitetônicos de cimento e vidro.
A solidificação das desigualdades no espaço urbano tem eliminado o senso de comunidade dos modos de habitar do caboverdiano, caraterística anteriormente definidora de espaços de sociabilidade. Os locais de convívio, ao redor das moradias, compunham uma relação orgânica entre a habitação e as demais zonas do habitat. A transição entre o exterior e interior das casas, aliada aos espaços entre os conjuntos construídos, proporcionava uma dinâmica social e comunitária importante dentro e fora da habitação. Nos bairros de alto padrão econômico há uma escassez de áreas de interação entre a moradia e o espaço público. O resultado é um conjunto pouco ou nada comunitário, no qual as fachadas perdem a função de membrana de transição entre o público e o privado e adquirem um valor de ostentação. Este processo é indicador de uma sociedade em crise identitária e de valores: o ter sobrepõe-se ao ser e o individual ao coletivo.
Ademais, as concepções construtivas importadas são muitas vezes inadequadas ao clima e à cultura locais. Hoje em dia, as forças econômicas e sociais que redesenham o território, de igual modo influenciam tendências construtivas e hábitos de morar. Tais forças exercem uma poderosa pressão para o abandono de certas práticas e à adesão de soluções pouco adequadas ao ambiente e à coesão espacial e social.
Em síntese, nas últimas décadas, os inúmeros projetos imobiliários e turísticos de capital internacional têm acirrado os processos de multi-fragmentação da condição urbana em Cabo Verde. A fricção local / global tem imposto uma agenda internacional aos agentes públicos e um “ideal” de desenvolvimento à população, sem haver qualquer voz dissonante neste quadro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste ensaio, apresentamos em breves linhas a complexidade local diante da matriz predominante do pensamento urbano, direcionando a ocupação do território em termos de uma monocultura de ocupação, voltada para o turismo. Como em toda parte, a monocultura tende a concentrar tanto produção quanto poder em determinados grupos ou setores sociais. Neste contexto, o “fascismo contratual” (Santos, 2006), não deixa margem de negociação para os atores locais, ao mesmo tempo em que estão afastados das decisões sobre o território.
A monocultura do turismo e a decorrente fragilidade identitária têm colaborado para acirrar a segregação espacial e as desigualdades sociais, ao invés de amenizá-las, como era esperado pelo governo ao colocar em curso o Plano Nacional de Desenvolvimento, em 1995. Passados mais de uma década desta aposta, é tempo de balanço. O ritmo de crescimento acelerado das cidades caboverdianas não apresenta qualquer sinal de reversão ou estagnação para os próximos anos. Sal-Rei e Rabil em Boa Vista são cidades em ebulição. Não há sinais de que a entrada de capitais do setor turístico tenha vindo a colaborar para um empoderamento das autarquias locais em responder tais taxas de crescimento.
Em Cabo Verde, com uma estratégia de desenvolvimento turístico de base fortemente internacional, há um alto risco de o país enfrentar um desaquecimento no setor, com o agravante de ser imperioso solucionar os enormes impactos territoriais gerados. Com vistas a frear o processo de acirramento das desigualdades em diversas escalas (local, nacional e internacional) a qual o país está submetido é necessário haver o empoderamento dos atores locais, com a tomada de consciência sobre o seu papel neste jogo de forças. Propomos, portanto, a politização do território, através do reconhecimento dos diversos agentes que interferem nos seus direcionamentos e tornando visíveis variáveis usualmente dissimuladas. Desta maneira, para uma abordagem emancipatória sobre o território, há que se garantir um equilíbrio de forças para que as múltiplas vozes tenham a oportunidades e a capacidade para organizar seus interesses e para participar autonomamente em processos de tomada de decisões significativas.
Isto significa que atores sociais mantidos à margem das tomadas de decisão sobre o território como os moradores locais, trabalhadores e imigrantes, possam juntamente com autarcas, governos e empresários nacionais democraticamente avaliar os custos e benefícios dos empreendimentos de grande porte. Neste processo a questão identitária emerge como ponto fulcral de valorização e reconhecimento, fundamental para equilibrar os sistemas de desigualdade e exclusão da modernidade capitalista. Identidades políticas, quando coletivamente construídas com vistas à projecção de cenários futuros de transformação social e quando autonomamente definidas, têm um carácter profundamente emancipatório.
Este texto foi publicado no livro Psicologia Social Crítica: Paralaxes do Contemporâneo (Sulina, 2012), organizado por Aluísio Ferreira de Lima.
REFERÊNCIAS
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FOTOGRAFIAS DE ANDRÉIA MOASSAB
- 1. Cabe referir a enorme polêmica sobre a metodologia de cálculo do desemprego, revista em 2010. Nos critérios anteriores a taxa nacional de desemprego, no mesmo período, registrava 21%, chegando a 38% na faixa mais jovem (INE, 2010). Ademais, trabalhos no terreno apontam para uma taxa de desemprego bastante mais elevada do que os dados oficiais, com quase a totalidade de comunidades sem trabalho, nas mais diversas ilhas (MOASSAB e VIEIRA, 2010).
- 2. Este cálculo é uma estimativa do governo e merece ser relativizado. Caboverdianos de segunda, terceira ou quarta geração, sem qualquer vínculo com o país têm sido incluídos neste dado.
- 3. Conjunto de medidas de ajustamento macroeconômico definidas em 1989 por economistas de grandes instituições financeiras como o Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, cujas dez regras básicas são: (1) disciplina fiscal; (2) redução dos gastos públicos; (3) reforma tributária; (4) juros de mercado; (5) câmbio de mercado; (6) abertura comercial; (7) investimento estrangeiro direto sem restrições; (8) privatização de empresas estatais; (9) desregulamentação ou flexibilização de leis trabalhistas e econômicas; (10) direito à propriedade.
- 4. Gênero musical e dança de Cabo Verde, no qual mulheres que tocam e dançam o batuque, estruturado no canto-resposta, historicamente hostilizado pela administração colonial, por ser considerado “africano”.
- 5. O Estatuto do Indigenato visava a “assimilação” dos indígenas (nativos africanos) na cultura colonial, oficializando a discriminação no regime através da divisão de três grupos populacionais: os indígenas, os assimilados e os brancos. Somente os assimilados, entre os não-brancos, tinham algum direito assegurado enquanto cidadãos.
- 6. “hora d’água” é o momento em que há água na rede pública, que pode ser uma ou duas vezes por semana apenas, quando a população com acesso à rede aproveita para fazer suas reservas (em caixas d’água, tambores, garrafões).
- 7. Popular, no sentido usado por Venturi, refere-se à arquitetura comercial anônima, como é o caso dos casinos de Las Vegas.
- 8. Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, sofreu uma explosão imobiliária na última década, caracterizada por obras grandiosas e de forte apelo turístico, como os Palm Island e The World, ambos arquipélagos artificiais; o hotel Buj Al Arab, de sete estrelas, e o edifício Buj Khalifa, com mais de 800 metros de altura. O Mararishi Tower em São Paulo foi um mega projeto de intervenção urbana proposto nos finais dos anos 90. A proposta, do Grupo Brasilinvest e do Maharishi Global Development Fund, tinha como eixo central a construção de um centro financeiro em um edifício com mais de cem pavimentos. Depois de anos sob intensa polémica, não chegou a ser construído.
- 9. Trata-se de um mega projecto com nove torres de apartamentos na orla da Praia, capital de Cabo Verde. A proposta inclui o aterro do mar, ligando a praia com um ilhéu. Para além da grandiosidade desproporcional ao contexto, os prédios têm a forma de máscaras africanas, numa mímese simplista e desconectada da realidade local, uma vez que em Cabo Verde as máscaras não fazem parte das práticas ritualísticas.
- 10. Do inglês gentrification o termo tem sido utilizado na literatura especializada para referir-se a processos de caráter excludente e privatizadores nos quais há uma expulsão de moradores originários de determinadas espaços urbanos devido a intervenções (com ou sem auxílio governamental) que provocam a sua valorização imobiliária.