Thugs no feminino: um breve olhar sobre o fenómeno
Normalmente, quando se fala ou se ouve falar de thugs, pensamos logo num grupo de jovens do sexo masculino, delinquentes, sedentos de sangue, tendo nas brigas territorializadas em espaços bem contextualizados e definidos, uma espécie de escape de adrenalina. Tal associação não é de todo errada, contudo, destoa um pouco da realidade. Se é verdade que alguns grupos de jovens delinquentes apropriaram-se do termo, também não é descabido afirmar que thugs é, antes de mais, um estilo de vida juvenil, upgrade do termo yo (termo em que os jovens hip-hoppers eram conhecidos na Praia, na segunda metade dos anos de 1990) ou boss.
Em tempos, num colóquio sobre “Segurança e Violência em Cabo Verde”, realizado na Universidade de Santiago, na cidade da Assomada, alguém da plateia questionou-me acerca do papel desempenhado pelas mulheres nos grupos e se tinha conhecimento da existência ou não de grupos thugs compostos apenas por elementos do sexo feminino na cidade da Praia. A minha resposta foi peremptória. Não tenho dados empíricos que confirmem a existência de grupos thugs femininos, mas, no que toca ao papel das mulheres nos grupos, tal e qual as mulheres que faziam parte do grupo delinquente hegemónico do final do ano de 1980, os netinhos de vovó, alguns grupos thugs usam-nas como iscas em assaltos.
Obviamente, há dois anos, não haviagrupos thugs hooligans no feminino na Praia. Havia sim, jovens do sexo feminino, em alguns casos, namoradas de alguns elementos dos grupos thugs que, de quando em vez, agrupavam-se com outras na mesma condição e respondiam às provocações das namoradas e/ou amigas de elementos dos grupos rivais dos seus machos em festas e demais actividades lúdicas.
Contextualizando os thugs no universo cultural do hip-hop, convém salientar que, de modo geral, prevalece ainda um discurso dominante que tende a minorar a importância da mulher na referida cultura, apresentando-a como um acessório ou adorno da actividade masculina. Noutros casos, ela é apresentada como uma espécie de alvo para o discurso masculino sobre as diferenças de género, cuja principal manifestação pode ser encontrada no machismo e na misoginia existente na comunidade negra norte-americana, vangloriada pelo gangsta rap.
Existem, no entanto, segundo Simões, autoras que contestam esta menorização, enfatizando as actividades desenvolvidas por vários rappers do sexo feminino. Se é verdade que o rap, elemento oral do hip-hop, tende a ser apresentado como a voz dos sem voz, ou seja, a voz de revolta dos jovens negros oprimidos (ou dos jovens periféricos e semi-periféricos, no caso cabo-verdiano), a sua versão feminina, pelo menos nos Estados Unidos de América, corresponderia a uma dupla forma de opressão: a de ser negra e mulher.
Transpondo este exercício teórico para o espaço social cabo-verdiano, nos anos de 1990, um dos grupos que poder-se-á ser considerado como um dos clássicos ou old school do rap feito nas ilhas, foram precisamente um grupo feminino, com residência no Bairro Craveiro Lopes, denominado Tchipie Girls que, com a célebre música “matchuburro”, ícone da revolução simbólica feminina contra a dominação simbólica masculina, pôs o dedo na ferida e denunciou os discursos machistas presentes na sociedade cabo-verdiana, sobretudo no seio da camada juvenil. Infelizmente, ao contrário, do que sucedeu nos Estados Unidos de América, em que as mulheres encontraram no rap uma arma de tornar públicas as diferentes formas de discriminação pelas quais passam, nas ilhas, a moda não pegou.
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Revisitando Bourdieu, poderei afirmar que se é verdade que as mulheres, submetidas a um trabalho de socialização que tende a diminuir ou a negar a violência simbólica da dominação masculina, remetendo-as ao silêncio e à resignação, os homens são também prisioneiros, e dissimuladamente vítimas, da representação dominante.
Tendemos a buscar referências outras para explicar as nossas especificidades e, no esforço desse exercício, não damos conta que acabamos por reproduzir uma visão colonial sobre a relação de género em Cabo Verde, definindo-a em conformidade com os modelos de feminilidade e masculinidade exteriores ao nosso universo, ignorando a plasticidade parental e o tipo familiar híbrido existente no país.
A ideia de que o homem é dominante em todas as situações sociais assenta nessa visão colonial e remete ao indivíduo do sexo masculino a uma armadilha, a ponto de obrigá-lo a ter de afirmar a sua virilidade em todas as circunstâncias. A virilidade, entendida por Bourdieu como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas também como aptidão para o combate e para o (en)cargo, é um campo de afirmação do homem, enquanto que, à mulher, a honra, essencialmente negativa, só pode ser defendida ou perdida – a sua virtude sucessivamente virgindade e fidelidade – pelo homem “verdadeiramente homem”. Aquele que se sente vinculado a estar à altura da possibilidade que lhe é oferecida de aumentar a sua honra procurando a glória e a distinção na esfera pública.
A exaltação dos valores masculinos no contexto social crioulo deve-se sobretudo aos medos e às angústias suscitados pela feminilidade, o que conduz ao investimento, por vezes exacerbado, de todos os jogos de violência, tais como os desportos, principalmente os desportos de combate, onde se põe à prova as qualidades viris. A virilidade tem de ser validada pelos outros homens. Sendo assim, a violência ou a pertença a grupos violentos, grupos dos “verdadeiros homens”, é uma forma de afirmação masculina, tal e qual é também o inculcar nas crianças os malefícios dos enternecimentos desvirilizadores do amor nos homens.
Fugindo um bocado das causas costumeiras apontadas para a integração de jovens do sexo masculino em grupos viris, como é o caso dos grupos thugs, é forçoso apontar também como uma causa provável o medo do feminino. É de se notar que em Cabo Verde, certas formas de coragem, como por exemplo a recusa de medidas de precaução e a necessidade de desafiar o perigo por meio de comportamentos da bazófia, encontram o princípio do medo de perder a estima ou a admiração do grupo e de cair na categoria tipicamente feminina dos fracos, dos “mofinos”, dos “maricas” ou dos “paneleiros”, etc.
No caso feminino, num primeiro momento, a adesão das jovens a grupos de homens “verdadeiramente homens” deveu-se, por um lado, a essa dominação simbólica masculina e, por outro, a admiração que essa camada da população nutria por esta nova figura social, que se encontrava ancorada à ideia sedutora de ter um macho “brabo” e valente como homem protector. Contudo, revisitando a história cabo-verdiana e o papel das mulheres no espaço social crioulo, deparamos com uma realidade de submissão fictícia das mulheres em relação aos homens, aceites na maioria dos casos pela não desonra do companheiro e, por conseguinte, da família.
Não é descabido afirmar que a mulher das ilhas sempre soube defender-se sozinha, visto que, ao longo da História, foi sendo socializada para não contar com o homem (entendido apenas como um reprodutor – pai di fidju), ao contrário da criança do sexo masculino que foi sendo ao longo da história (com algumas excepções) socializado para a migração (para fora de casa ou para fora do país).
Desta feita, não é de se estranhar o papel crucial das mulheres cabo-verdianas em algumas revoltas, sobretudo na ilha de Santiago. Na década de 1990, numa pequena vistoria ao Jornal A Semana, dei conta que muitos crimes hediondos ali relatados foram cometidos por mulheres (situações em que se assassina a sangue frio o companheiro, enquanto este dormia, com água fervida contendo desfrizante). Considerando como verdadeira a ideia de que muitos desses casos surgiram como uma reacção a situações de violência doméstica (e da ineficácia do poder judicial a esse respeito), também é verdade que há casos em que o acto surge como ciúmes ou represálias contra a manutenção das relações poligâmicas por parte dos homens, socialmente aceites e, em alguns casos, encorajadas (muitas vezes pelas próprias mulheres).
Claramente que o fenómeno da existência de grupos femininos em actividades delituosas não é novo em Cabo Verde, nem a existência de brigas entre “konbossas” (onde o troféu é o homem). No entanto, a adesão de jovens do sexo feminino a actividades grupais de hooliganismo pode ser considerada uma novidade. A moda pode não ter pegado no rap, mas pegou na manifestação thug da violência. De facto, hoje, deparo-me na Praia com alguns grupos thugs femininos, em que as principais actividades são o “kasu bodi” e o hooliganismo.
Diferentemente dos grupos thugs masculinos, em que é possível encontrar nos espaços de reunião elementos femininos (quer sejam namoradas ou amigas), no interior dos grupos thugs femininos encontram-se exclusivamente mulheres. Sendo o fenómeno recente e, por limitações etnográficas no seio dos grupos femininos (de momento não possuo no interior destes grupos a mesma confiança que tenho nos grupos masculinos e, portanto, a mesma liberdade de movimentação), é-me difícil ter ainda uma explicação objectiva acerca dessa diferença.
Reparo que a nível do arsenal bélico, os grupos thugs femininos usam quase que exclusivamente armas brancas, onde se destaca o x-acto. Neste ponto poderei afirmar que os grupos thugs masculinos estão melhor apetrechados, uma vez que fazem uso de armas industriais, em alguns casos de alto calibre, e armas de fogo artesanais (“boka dedju”). Por razões que têm a ver com as representações da feminilidade e da masculinidade no contexto cabo-verdiano, os grandes financiadores, directos e indirectos, do armamento dos grupos têm maior confiança em determinadas tarefas nos jovens thugs masculinos do que nas jovens thugs femininas, estando os primeiros associados à virilidade e os segundos à astúcia, sensualidade e sexualidade.
Assim sendo, nos serviços que requerem respeito, força ou violência excessiva (casos de protecção nas campanhas políticas ou em negócios ligados ao narcotráfico, serviços de matadores ou espancamento, extorsão, etc) solicita-se o trabalho dos thugs masculinos, e estes em serviços onde necessário é recorrer a tácticas de diversão, subcontratam as jovens do sexo feminino. Muitas vezes, em assaltos à mão armada, sobretudo a taxistas, os elementos dos grupos femininos que frequentam os espaços de sociabilidade thug, são utilizados como iscas, aproveitando da sua astúcia e sexualidade.
É de salientar que os grupos thugs femininos começaram a aparecer como reacção – violência como defesa – às provocações das acompanhantes dos thugs masculinos com quem o seu bairro (ou o seu grupo de amigo) tinha “bifes”. Mais tarde, algumas jovens utilizadas pelos seus machos como iscas no “kasu bodi”, ganharam alguma autonomia e juntamente com algumas amigas começaram a “bloquear” homens, num primeiro momento na saída de discotecas, depois de os seduzir no interior das mesmas. Há relatos de algumas brigas por um território imaginário nesta actividade.
Tal e qual no caso dos seus pares masculinos, entendo a actividade feminina no universo thug como uma forma de afirmação pessoal, social e identitária ou igualmente como uma forma de empoderamento feminino, numa sociedade com características machistas, desigual e fragmentada. Um outro fenómeno interessante (também usado pelos elementos dos grupos thugs femininos) de afirmação e empoderamento feminino em Cabo Verde, historicamente reproduzida mas actualmente redefinida, é o que banalmente se designa por “soku na rostu”, enquadrado teoricamente no conceito sexo transaccionado. Contudo, tal fenómeno daria um outro tipo de investigação… não menos estimulante e importante para melhor se entender as questões de género e as relações de poder entre os homens e mulheres no contexto das ilhas.