Notas estratégicas quanto aos usos políticos do conceito de lugar de fala
1. Muito se fala sobre como esse conceito tem sido apropriado de modo a conceder ou não autoridade para falar com base nas posições e marcas políticas que um determinado corpo ocupa num mundo organizado por formas desiguais de distribuição das violências e dos acessos. O que as críticas que vão por essa via aparentemente não reconhecem é o fato de que há uma política (e uma polícia) da autorização discursiva que antecede a quebra promovida pelos ativismos do lugar de fala. Quero dizer: não são os ativismos do lugar de fala que instituem o regime de autorização, pelo contrário. Os regimes de autorização discursiva estão instituídos contra esses ativismos, de modo que o gesto político de convidar um homem cis eurobranco a calar-se para pensar melhor antes de falar introduz, na realidade, uma ruptura no regime de autorizações vigente. Se o conceito de lugar de fala se converte numa ferramenta de interrupção de vozes hegemônicas, é porque ele está sendo operado em favor da possibilidade de emergências de vozes historicamente interrompidas. Assim, quando os ativismos do lugar de fala desautorizam, eles estão, em última instância, desautorizando a matriz de autoridade que construiu o mundo como evento epistemicida; e estão também desautorizando a ficção segundo a qual partimos todas de uma posição comum de acesso à fala e à escuta.
2. Portanto, não é sobre “quem”, mas sobre “como”. No limite, o que vem sendo desautorizado pelos ativismos do lugar de fala é um certo modo privilegiado de enunciar verdade, uma forma particularizada pelos privilégios epistêmicos da branquitude e da cisgeneridade de se comunicar e de estabelecer regimes de inteligibilidade, falabilidade e escuta política. Não é que brancos não possam falar de racismo, ou as pessoas cis não possam falar de transfobia, é que elas não poderão falar como pessoas cis brancas: isto é, como sujeitos construídos conforme uma matriz de produção de subjetividade que sanciona a ignorância, sacraliza o direito à fala, secundariza o trabalho da escuta e naturaliza a própria autoridade. Isso significa também o fato paradoxal de que eles não poderão falar como se não fossem cis e brancos, isto é: apagando as marcas da própria racialidade e conformidade de gênero, a fim de agir como se os privilégios da branquitude e da cisgeneridade não fossem coextensivos aos sistemas de opressão das vidas e vozes não brancas e trans.
3. Também tem sido comum ver críticas ao conceito político de lugar de fala baseadas numa crítica pós-identitária à noção de identidade. Se por um lado é necessário sempre pontuar os limites da forma identitária, nomeadamente o fato de que as experiências subjetivas e corporais frequentemente excedem os limites normalizados por uma determinada identidade, e que é impossível englobar num só movimento narrativo o todo de uma experiência política qualquer que seja. Entretanto, quando, a fim de criticar as políticas de marcação do local de fala, perde-se de vista que o que está sendo evidenciado pela maior parte dos ativismos do local de fala não são identidades, mas, mais precisamente, posições e que o conceito de posição, talvez diferentemente do conceito de identidade, incorpora já um certo grau de anti-essencialização estratégica. Assim é que, ao marcar a cisgeneridade numa certa experiência, o que se está a fazer não é afirmar inequivocamente o encaixe preciso entre a experiência de um corpo cis e a sua marcação categórica, mas, sim, está-se evidenciando o modo como a inscrição de um certo corpo como cis (isto é, como um corpo relativamente coerente à designação compulsória de gênero) no marco da cisnormatividade posiciona este corpo numa relação inequívoca de poder perante os corpos não inscritos da mesma maneira.
4. A noção de saberes situados precisa começar a servir para que pessoas brancas se situem de sua branquitude, pessoas cis de sua cisgeneridade, e por aí. Quero dizer: o modo como essa categoria entrou na nossa vida acadêmica e política acabou por refazer os mecanismos de hipervisibilização da experiência subalterna, criando um lastro para que a posição de politicamente oprimido fosse, enfim, narrável como uma forma de conhecimento. O problema fundamental disso é que, por meio dos saberes situados, aprendemos a falar de como o mundo nos fode, de como as relações de poder nos precarizam, mas não abrimos a possibilidade de situar-nos também em nossos privilégios, em nossos modos de estender a duração da ruína que é este mundo. Quero dizer: nos últimos anos temos tido a chance de aprender a falar sobre os efeitos de subalternidade que envolvem nossa experiência com o mundo, mas infelizmente esse trabalho não foi coextensivo ao de revelação dessas posições de poder cujo sentido da existência é inseparável da reprodução de regimes subalternizantes. Por isso o conceito de saberes situados acabou se limitando a reproduzir a hipervisibilidade da posição subalterna como objeto discursivo, sem criar condições para que, ao situar-se, os sujeitos posicionados em relação de privilégio perante a cisnormatividade, a heterossexualidade e a supremacia branca fossem capazes de perceber densamente a própria posição.
5. Em geral as críticas ao lugar de fala produzidas desde as posições branca e cis são efeitos da resistência política à marcação dessas posições de poder. Essa resistência é coextensiva às práticas de dominação que dão chão à cisnormatividade e a supremacia branca no mundo como o conhecemos. É justo na medida em que não são marcadas que essas posições conseguem aceder às categorias políticas de pessoa e sujeito; é também por meio não-marcação que as narrativas produzidas desde essas posições alcançam seu efeito de verdade e sua aparência de neutralidade. Dessa forma as críticas cis e brancas ao conceito de lugar de fala são parte de uma luta política pela manutenção das estruturas de privilégio e dominação que configuram essas posições como legitimamente humanas, em detrimento da subalternização de uma multidão de outros hiper-marcados pelas miradas cis-colonial e branca-supremacista.
6. Finalmente, cumpre responder às críticas que denunciam os ativismos do lugar de fala como violentos por reproduzirem as ferramentas de marcação dos sujeitos conforme suas posições no diagrama socialmente estabelecido pelas lógicas do mundo como o conhecemos. Não me interessa nesse ponto afirmar a não-violência desses ativismos, mas situá-la em relação à violência primordial à qual eles confrontam. Com isso quero dizer que os ativismos do lugar de fala estão operando um movimento denso de redistribuição da violência, o que significa que, ao marcar o não marcado, estamos fazendo com que o modo como a violência foi socialmente distribuída seja bagunçado, projetando sobre as posições até então isentas dessas marcas e, portanto, desigualmente inscritas como parte privilegiada do mundo como o conhecemos, a responsabilidade de confrontar a violência que dá forma a seu conforto ontológico.