Um lugar à mesa, por favor!

Não, não é a música da Solange Knowles traduzida para português, nem tampouco um convite para o almoço.

Pelo contrário, é um questionamento sobre quem se senta à mesa, quem pode falar e quando podemos falar nos espaços feministas.

Numa mesa vasta como o feminismo, nem sempre todxs1 temos um lugar à mesa. Entre classismo, racismo e heteronormatividade2, algumas de nós ficam para trás sem conseguirem fazer valer a sua voz nessa mesa cuja ceia principal é a reivindicação de direitos da MULHER.

Entenda-se que quando falo de reivindicação de direitos, não me refiro a igualdade de género.  

A reivindicação dos direitos da mulher no feminismo tem como objetivo discutir o sujeito mulher. Essa agenda vai para lá da igualdade de género e engloba um visão feminista transformadora, que implica a aplicação de uma perspectiva feminista na criação de políticas, estruturas legais, sociais, económicas e culturais. Na verdade, propomos-nos a combater o patriarcado3. E, ao falarmos de feminismo intersectorial, propomos-nos a combater algo ainda maior: o hetero patriarcado4.

Combater este sistema, criando um outro que dê lugar ao sujeito mulher, implica dar espaço a novas vozes, a ceder lugares a outras falas. E é aqui que começa o nosso aventureiro questionamento. É aqui que começa a pergunta que não (se) quer calar.

Como e de que  mulher estamos a falar, se nem todas as vozes estão nessa mesa? Se a vasta maioria não se encontra à mesa, que direitos e a favor de quem estamos a reivindicá-los? Quem afinal tem lugar à mesa na discussão feminista?

Existem, com certeza, várias cadeiras ainda vagas, mas hoje, não quero falar de um feminismo que incida particularmente sobre um tipo de mulher, mas sim de um feminismo que nos permita a todxs ter  lugar à mesa: o feminismo intersectorial. Entenda-se, contudo, que não falo por todas as mulheres e nem me atrevo a falar de lutas sobre as quais não percebo. O papel do feminismo intersectorial é pois dar lugar a quem, dentro da sua vivência pessoal, vivencia uma certa opressão, permitindo um espaço de fala e de voz para que cada uma reivindique os seus direitos.

foto da Djelsa Ariana para o projecto Identidade quem somos do Arquivo de Identidade Angolano.foto da Djelsa Ariana para o projecto Identidade quem somos do Arquivo de Identidade Angolano.

Há anos que ouço esse discurso do feminismo intersectorial, do seu espaço de fala e da sua abertura em dar uma cadeira a todxs, mas a verdade é que vejo, estive e continuo a presenciar a luta diária do mesmo em se concretizar em espaços feministas, seja porque existe uma luta constante de prioridade na agenda feminista de assuntos que acabam por excluir algumas mulheres, seja por existir uma hierarquia de opressões que leva a negação das mesmas, por estas serem consideradas menos urgentes e menos importantes. A verdade é que esse feminismo intersectorial é um espaço de luta diária que exige de nós, ocupantes da mesa e do espaço onde ela se encontra, uma ginástica diária de solidariedade.

O meu lugar de fala começa não só com o saber DOAR5 a minha fala – afinal não sabemos todas o mesmo e o saber e sua representatividade devem ser rotativos – mas principalmente de DAR6 a fala.

A palavra solidariedade é um dos termos que, com o tempo, se foi esvaziando no campo da afectividade, tendo-se transformado num monstro comido pelo capitalismo – também ele, tal como muitos outros termos, tiveram a sua derradeira morte assim – e, por isso, andamos a navegar numa falsa premissa de que a solidariedade é “isto” que vemos em forma de uma suposta caridade ou condescendência. Não, não é disto que falo. Falo de uma solidariedade, tal como nos propõe Awino Oktech no livro Queer African Reader, quando discute solidariedade como substituto de irmandade.

É sobre isto que vos quero aqui falar.

Deste modo, proponho-vos um feminismo onde a palavra solidariedade não seja um ponto de comunhão das nossas semelhanças, mas sim um ponto de entendimento das nossas diferenças.

Citando e traduzindo Awino,alguns fundamentalistas partem da perspectiva de que a solidariedade deveria partir do laço de semelhança entre as mulheres (…) contudo a solidariedade foi criada não na assunção da  mesma opressão e permite uma maior diferenciação na raiz da opressão.” (2013; Queer African Reader , p.21)

Quero com isto dizer que a solidariedade, quando substituída pela irmandade, traz ao de cima questões como raça, classe, sexualidade, saúde mental, deficiência, etc; obrigando-nos a entender que não é o facto de sermos mulheres que nos torna semelhantes, pois não proviemos do mesmo tipo de opressão. Esta discussão permite-nos reconhecer os vários tipos de opressão que nos diferenciam.

É, portanto, no espaço feminista que podemos construir essa solidariedade e, ao convidar-vos para pensar num feminismo intersectorial, convido-vos para pensar na interligação de opressões, no elo que nos diferencia para lá da identificação como mulher, seja cisgénero7 ou transgénero8.

A verdade é que quando nos pensamos como sujeitos, percebemos que as ideologias nos ajudam a chegar à noção de quem somos na nossa viagem identitária. E com ela vem a análise das nossas opressões, suas estruturas e privilégios (se os tivermos).

Essa vivência solidária que nos obriga a pensar nas nossas diferenças é um exercício que começa com uma análise de quem deixamos ocupar esse espaço, como ocupamos esse espaço e como nos comunicamos nele. Se no espaço feminista deixarmos entrar todxs as mulheres, se na nossa agenda incluirmos, de facto, assuntos de todxs as mulheres e se realmente dermos voz a todxs as mulheres, talvez tenhamos hipótese de caminhar em direcção a um espaço de solidariedade real.

A minha experiência tem sido positiva, mas, antes, tive de me munir da minha própria voz e sei que nem todxs temos esse privilégio. Tive outros espaços que me ajudaram a navegar a minha identidade e que me permitiram chegar aos espaços que tenho hoje, sendo um deles o Ondjango Feminista.

Sem dúvida alguma um espaço solidário, africano e intersectorial. Mulheres de classes, raças, idades, orientações sexuais diferentes que se encontram para discutir, construir e reflectir sobre  o que é feminismo angolano.

Quando falo de orientações sexuais diferentes, olho para mim mesma. Enquanto mulher queer9 angolana, que ocupa espaços feministas, convido  a quem tende a atacar, por via das redes sociais, pessoas com diferentes orientações relativas à sua sexualidade a não lerem tudo o que é heteronormativo, utilizando argumentos como: “as feministas são lésbicas” ou “as feministas odeiam homens”. Argumentos como esses ocupam um lugar desnecessário na luta feminista ou pró-feminista. Nem todas as feministas são lésbicas e nem todas odiamos homens, mas todxs somos livres de repensar a sexualidade dentro das caixas que foram construídas.

Nesta medida, convido-vos a pensar como criar espaços solidários para mulheres como eu e outras não normativas que possam existir por aí; espaços que elas possam também ocupar e falar.

O objectivo deste texto é nos questionarmos sobre como a solidariedade está a ser exercida dentro dos espaços feministas que frequentamos. Para melhor expressar o que, de facto, pretendo dizer passo a citar uma passagem do livro Mulheres, de Carol Rosetti, que descreve tão bem a interseccionalidade  (2014: Livro Mulheres; preâmbulo):

Existem mulheres negras, brancas, morenas, latinas, asiáticas, indianas, indígenas. Existem engenheiras, donas de casa, prostitutas, senadoras, artistas, executivas, atrizes. Há mulheres cegas, surdas, mudas. Mulheres bipolares, deprimidas, ansiosas.
Existem heterossexuais, lésbicas, bissexuais, arromânticas, pansexuais, assexuais. Mulheres cristãs, ateias, budistas, islâmicas.
Há mulheres que não são ativistas, que nunca ouviram falar em feminismo, que nunca discutiram racismo. Mulheres que lutam de formas diferentes, a partir de ideias que não conhecemos. Existem mulheres que têm vergonha de compartilhar suas escolhas por medo de serem julgadas. E mulheres que discordam de tudo isso que eu disse até aqui.
Cada uma tem sua própria história, e acredito que todas elas merecem ser ouvidas e representadas. Minha abordagem será abrangente, convidando todos os que dividem comigo essa ideia de liberdade a celebrar a diversidade do ser humano.”

É com esta passagem que convido todxs a sentar à mesa, mas mais importante convido-vos a dividirem comigo esse querer construir um espaço feminista diverso, inclusivo e solidário feito por nós e para nós com uma fala diversa, em que cada uma parta do seu lugar de diferença.

Um lugar, por favor! – disse ela puxando a cadeira ao mesmo tempo que levantava o dedo em sinal de quem quer e vai falar.

 

Artigo originalmente publicado na página da Ondjango Feminista

 

  • 1. O termo todxs é um termo inclusivo para referenciar todas as mulheres, sejam elas mulheres cisgénero, transgénero, não binárias ou qualquer outra forma de identificação não normativa.
  • 2. O termo heteronormatividade é um termo usado para descrever situações em que orientações sexuais diferentes da heterossexual são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais, crenças ou políticas.
  • 3. Patriarcado é um sistema que atribui um poder desigual a homens e mulheres, legitimando a opressão das mulheres através de instituições políticas, culturais, económicas, religiosas, culturais e militares, atribuindo, como consequência uma superioridade masculina em todas as áreas da sociedade.
  • 4. Hetero patriarcado é o sistema sócio político onde homens cisgénero e heterosexuais têm autoridade sobre mulheres LGBTIQ.
  • 5. A palavra doar é aqui utilizada para se referir ao equilíbrio intergeracional que muitas vezes não acontece nos espaços de activismo, como é o espaço feminista. Doar espaço e voz a outras pessoas, criando novos saberes, novas aprendizagens e, mais importante, novas representatividades.
  • 6. A palavra dar é aqui utilizada como uma forma de ceder, de forma voluntária e solidária, a palavra a outrem, construindo um espaço onde outras mulheres possam ganhar a sua fala por meio de empoderamento, contribuindo assim para as pessoas ocuparem os seus devidos lugares de fala.
  • 7. Cisgénero (Cis) é uma pessoa cuja identidade género, ou seja, a nossa identidade pessoal relacionada ao nosso género, se conjuga com o sexo de nascimento. Ex: pessoa que nasce com sexo de nascimento feminino se considera mulher por também considerar essa a sua identidade de género. O facto de ser cisgénero não implica que a pessoa aceite os comportamentos, papéis e expressão de género ligados a essa identidade de género, implica apenas que o seu sexo e género se conjugam.
  • 8. Transgénero (Trans) é uma pessoa cuja identidade género, ou seja a nossa identidade pessoal relacionada ao nosso género, não se conjuga com o sexo de nascimento. Ex: pessoa que nasce com sexo de nascimento feminino mas se identifica como homem, por ser essa a sua identidade de género. O facto de ser transgénero não significa que viva apenas no binarismo de género, ou seja, que possa ser apenas uma pessoa trans mulher ou trans homem. Existem também pessoas transgénero fora do binarismo, a que denominamos de pessoas trans não binárias.
  • 9. Queer é um termo utilizado para falar de minorias sexuais e englobar pessoas não normativas, seja por não serem heteros seja por não serem cisgénero. É o termo mais adequado para falar da fluidez na sexualidade, embora muito discutido e contestado teoricamente.

por Paula Sebastião
Corpo | 11 Dezembro 2018 | angola, feminismo, Ondjango Feminista, solidariedade