Traffic Jam
Nota: Esta entrevista é imaginária. As palavras atribuídas a Pascale Marthine Tayou são minhas. Podia ter escrito um artigo sobre ele e usado o “ele” em vez de respostas directas. Mas as respostas que lhe coloquei na boca foram criadas a partir do que sabia acerca dele. Creio que dão tanta informação quanto daria um artigo e acho este procedimento bem mais divertido, com a aprovação do Tayou, claro. — Simon Njami
Simon Njami: Pascale Marthine Tayou, tens um nome estranho. Se não te conhecesse poderia pensar que és uma mulher. É o teu nome verdadeiro?
Pascale Marthine Tayou: O que é um nome? É algo que te define ou devias ser tu a defini-lo? É o meu nome verdadeiro, claro, dado que o escolhi. Qualquer que seja o nome que os meus pais me deram, foi ideia deles. Não houve nada que pudesse fazer quanto a isso. Se decidissem chamar-me “Papagaio” então aquilo que chamas ou queres dizer como nome verdadeiro seria “Papagaio”. Não achas que Papagaio é ainda mais estranho que Pascale Marthine? Todos nós temos um lado feminino que devemos tentar esconder, porque os homens devem ter uma determinada atitude. Eu não quero saber das convenções. Quis expressar o meu lado feminino.
Bom, sei que escolheste o nome quando decidiste tornar-te artista. Tem a ver com algo que querias expressar enquanto artista?
Quem te disse que sou um artista? Eu não sou um artista. Sou um ser humano a fazer as suas coisas. Se isso faz de mim um artista então assim seja. Mas, mais uma vez, esta cena do artista é uma convenção. Quem decide? Como funciona? Em relação ao meu nome, nunca quis que decidissem por mim. Vejo-me como um “construtor” porque faço coisas. Há uma certa hierarquia ou snobismo no mundo da arte que descobri há mais de uma década atrás. As pessoas estão sempre a pretender ser diferentes do que realmente são. Nunca quis cair nessa armadilha. Porque é que eu devo ser considerado um artista quando vejo à minha volta, por exemplo nos Camarões, uma série de gente dotada a fazer coisas que poderíamos admirar nos melhores museus? Mas essas pessoas não são apelidadas de artistas porque não pertencem ao sistema. Claro que eu tenho que lidar com o sistema artístico internacional. Mas não quero tornar-me seu escravo. Quero continuar a fazer aquilo que me apetecer sem temer julgamentos e críticas.
Referiste os Camarões. Esse é o lugar onde nasceste. Consideras-te um camaronês?
Antes de mais, vejo-me como um ser humano. Sou um cidadão do mundo. No entanto sou africano. Isto é algo que não posso negar. E, claro, sou um camaronês. Esse é o lugar onde nasci. O lugar onde os meus pais vivem e onde cresci para me tornar a pessoa que sou hoje. Esses dados são relevantes. Eu não acredito nessas tretas da globalização em que as pessoas pretendem ser algo diferente do que são. Sinto-me em casa cada vez que volto para os Camarões. Uma casa muito particular e específica, que vive em mim e que nunca morrerá. Quando estou em Gent, onde moro, também me sinto em casa. Mas é um espaço diferente, física e mentalmente. Nós vimos de algum lado. Talvez seja por isso que o mundo é um lugar tão interessante, porque todos temos personalidades diferentes, passados diferentes, formas diferentes de lidar com as coisas. Se eu tivesse nascido noutro lugar, aquilo que eu produzo seria diferente. A armadilha é que o mundo sempre tentou prender as pessoas num limite geográfico. Especialmente os africanos. Como se não pudesses não ser africano, e sentires-te em casa noutro lugar. Como se ser africano significasse alguma coisa diferente de ser belga. É igual. Só mudam os pormenores. Mas vivemos num mundo onde os detalhes são mais importantes que a essência das coisas. É uma pena.
Precisamente. A tua resposta permite-me saltar para a minha próxima questão, sobre a arte contemporânea africana. O que pensas deste conceito, consideras-te um artista contemporâneo africano?
Esta pergunta de novo. Pergunto-me se os meus colegas alemães estão sempre a ser interrogados sobre este tipo de tretas. Um dia alguém se lembrou desse conceito e agora temos todos que viver com isso. Mas o que quer dizer? Ninguém sabe dizer. Mas tornou-se uma espécie de mercadoria pós-colonial. Permite que os críticos ignorantes disfarcem a sua ignorância ao contextualizar peças que não conseguem entender. Houve algo de significativo na exposição Africa Remix, comissariada por Simon Njami. Alguns especialistas queixaram-se do facto de Njami ter seleccionado alguns artistas da Tunísia, Egipto e Marrocos. Njami pediu-lhes para olharem para um mapa. Este exemplo fala-nos de todas as fantasias que se escondem por detrás desse conceito. Dado que sou africano e um artista, então suponho que me encaixo nessa categoria de artista contemporâneo africano. Mas o que significa isso quando olhamos para o meu trabalho? Suponho que nada de especial. África é um vasto continente, não um país ou uma aldeia. E ao usar ese termo, as pessoas tendem a esquecer que somos indivíduos, e que as nosssas experiências e personalidades não se podem resumir a um conceito tão vago.
Esta é uma questão complicada mas gostava de saber como é que trabalhas. O que te impele e de onde retiras as tuas ideias ou inspiração, para usar a palavra convencional?
Não acredito na inspiração. Há algo demasiado místico nesse conceito. Dá a entender que um artista é um espécie de parvalhão iluminado, à espera que o vento da sabedoria lhe sopre na cabeça, o que foi sempre uma espécie de mentira comercial, associada aos artistas. De acordo com essa ideia, um artista deve ser um ser sofredor, torturado pela sua criação. Eu não sou um ser sofredor e não sou torturado pelo meu trabalho. Não estou à espera que Deus me mostre a luz. O que faço resulta daquilo que observo à minha volta, uma reflexão sobre o mundo onde vivo. Talvez seja isto que faz de mim contemporâneo: lido com o meu tempo e com questões do meu tempo, tentando transformá-las em objectos que se chamarão arte. E isto pode acontecer em qualquer lado, no Japão, nos Estados Unidos, em África… Vejo-me como uma espécie de contador de histórias, um colunista. Posso ser atraído por qualquer coisa – ambiente, política, economia. Não interessa, desde que me provoque questões que terei que resolver. E o medium seguir-se-á. Não tenho qualquer apriori relativamente ao medium. Ele é ditado pela história que quero contar. Pode ser escultura, pintura, desenho, vídeo, não interessa. O que me interessa é conseguir representar o melhor possível as ideias que vou tendo.
Tiveste uma educação formal?
O que queres dizer com “educação formal”? Claro que tive educação formal, e ainda estou nesse processo. Mas se estás a falar da academia, então devo considerar-me um autodidacta. Mais uma vez, isso não quer dizer nada. Não acredito que aprendas a ser artista numa academia. Se assim fosse, não havia muitos dos artistas que existem pelo mundo. Pelo contrário, sinto-me feliz por não ter sido enchido de teorias e exemplos que poderiam ter morto a minha percepção das coisas. Eu estudei Direito. O que significa que tenho formação académica. Acreditas que qualquer pessoa que tenha terminado a escola de artes possa auto-denominar-se artista? Acho que a melhor formação possível está no confronto com a matéria. Só a acção te permite encontrar soluções para determinado problema. Sem esse confronto, não sabes o que significa desenhar ou fazer uma instalação. Eu acredito na experiência. Acredito, como disse antes, que a formação é um processo contínuo, que só termina quando paramos de repirar. O resto é treta.
Há já alguns anos que fazes parte da cena artística mundial. O que pensas dessa cena?
Não tenho nada de especial a dizer sobre ela. Não me vejo como parte dela. Sempre tive a sensação que a minha carreira se deve a um enorme mal-entendido. Desta forma, vejo-me sempre como um visitante, alguém que está aqui hoje mas que amanhã pode estar noutro lugar qualquer. E creio que esta é a única maneira de sobreviver nesse mundo. Se vivesse obcecado com os críticos, os comissários e as feiras, isso afectaria o meu trabalho que já não poderia gozar da liberdade que tenho hoje. Penso que este “internacional” é necessariamente mau. Não pretendo dizer que esteja tudo errado e que não quero fazer parte dessa cena. Tal como disseste, eu faço parte dela. A questão é, como? Como podes participar no jogo sem ser enfraquecido e instrumentalizado? Sou um forasteiro e é aqui que quero permanecer para poder continuar a ser o artesão, o construtor que sou. Mas quando olhas para isto como eu, a única conclusão a que se pode chegar é que este é um mundo louco, cheio de si mesmo e amoral. Suponho que seja apenas um reflexo da humanidade.
Mais uma questão: existe algo que não tenhas feito e que gostarias de fazer?
Há tantas coisas que não fiz. Mas há algo que ocupa a minha cabeça em particular. Uma das muitas razões porque África é ignorada, é a falta de estruturas locais. África e os africanos estão cheios de energia. Produzem. Vivem em condições extremas. Os mais talentosos têm muito poucos locais onde mostrar o seu trabalho e, na maioria das vezes, dependem de uma estrutura ocidental. Gostaria de criar uma estrutura nos Camarões onde as pessoas pudessem trabalhar e mostrar o seu trabalho, sem ter de seguir regras criadas por outros. Precisamos de ter o maior número de estruturas possíveis para que os artistas africanos possam mostrar o seu trabalho nos seus próprios países.
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