Mais um dia de vida - Angola 1975

Ficamos muito felizes com o regresso em português deste grande livro, pela Tinta-da-China. A tradução foi profundamente revista e sai pela primeira vez completa, com páginas que na primeira edição internacional tinham sido suprimidas.

Kapuscinski, escritor e um dos maiores repórteres do século XX, esteve em Angola num período conturbadíssimo: entre o 25 de Abril de 1974 e a independência do país africano, em Novembro de 1975. 
tema(s): Literatura de Viagens
tradução: Ana Saldanha
prefácio: Pedro Rosa Mendes
coordenação: Carlos Vaz Marques
1.ª edição: Setembro de 2013
n.º de páginas: 192

 

 

Durante três meses, vivi em Luanda, no Hotel Tivoli. Da janela do meu quarto, avistava a baía e o porto. Ao largo, estavam ancorados vários navios de carga com bandeiras europeias. Os seus capitães mantinham contacto via rádio com a Europa e faziam uma ideia mais precisa acerca do que estava a acontecer em Angola do que nós — prisioneiros numa cidade sitiada. Quando circulou pelo mundo a notícia de que a batalha para tomar Luanda estava iminente, os navios distanciaram‐se da costa e mantiveram‐se na linha do horizonte. A última esperança de salvação afastou‐se com eles, visto que a fuga por terra era impossível, e corriam boatos de que o inimigo iria bombardear o aeroporto e desactivá‐lo a qualquer momento. Mais tarde, veio a saber‐se que a data para o ataque a Luanda fora alterada e a frota naval regressou à baía, à espera, como sempre, de carregamentos de algodão e café.

O movimento destes navios era uma importante fonte de informação para mim. Quando a baía ficou deserta, comecei a preparar‐me para o pior. Escutava com atenção, tentando ouvir o som do fogo de artilharia a aproximar‐se. Perguntava‐me se haveria alguma verdade no que os portugueses murmuravam entre si, que dois mil soldados de Holden Roberto estavam escondidos na cidade, aguardando ordens para iniciar o massacre. Mas, no meio desta ansiedade, os navios voltaram à baía. Interiormente, saudei os marinheiros, que nunca vira, como salvadores: a paz continuaria por mais algum tempo.

No quarto ao lado do meu, viviam duas pessoas de idade: o Sr. Silva, negociante de diamantes, e a mulher, a Dona Esmeralda, que estava a morrer de cancro. Ela passava os seus últimos dias de vida sem amparo nem paliativos, visto que os hospitais estavam fechados e os médicos tinham ido todos embora. O seu corpo, contorcido pelas dores, desaparecia no meio de um monte de almofadas. Eu tinha medo de entrar no quarto deles. Entrei uma vez para perguntar se a incomodava quando escrevia à máquina durante a noite. Esqueceu a dor por um momento, o suficiente para dizer:

«Não, Ricardo, já não me sobra tempo suficiente para me incomodar com o que quer que seja.»

O Sr. Silva andava pelos corredores horas a fio. Discutia com toda a gente, amaldiçoava o mundo, desconfiando de que o desfeiteavam. Até gritava com os pretos, apesar de, naquela altura, já toda a gente os tratar com bons modos e um dos nossos vizinhos ter passado a interpelar africanos que não conhecia de lado nenhum para lhes dar um aperto de mão e lhes fazer uma vénia. Eles julgavam que a guerra lhe tinha afectado o juízo e afastavam‐se a toda a pressa. 

O Sr. Silva aguardava a chegada de Holden Roberto e estava sempre a perguntar‐me se eu tinha alguma novidade sobre o assunto. A visão dos navios a afastarem‐se da costa encheu‐o de felicidade. Esfregou as mãos, empertigou‐se e mostrou a dentadura postiça.

Apesar de estar um calor insuportável, o Sr. Silva andava sempre com roupas quentes. Tinha fiadas de dia‐ mantes cosidos nas pregas do fato. Uma vez, num acesso de bom humor, quando parecia que a FNLA estava já à entrada do hotel, mostrou‐me uma mancheia de pedras transpa‐ rentes que pareciam fragmentos de vidro esmagado. Eram diamantes. No hotel, constava que o Sr. Silva trazia consigo meio milhão de dólares. O velho senhor não sabia o que fazer. Queria escapar com a sua riqueza, mas a doença de Dona Esmeralda amarrava‐o ali. Tinha medo de que, se não partisse de imediato, alguém o denunciasse e o seu tesouro lhe fosse confiscado. Nunca saía à rua. Até queria mandar instalar fechaduras extra, mas todos os serralheiros tinham partido e já não havia ninguém em Angola que soubesse fazer esse serviço.

Em frente a mim, vivia um casal jovem, Artur e Maria. Ele era funcionário público colonial e ela, uma loira calada, calma, com olhos enevoados e sensuais. Estavam à espera de partir, mas primeiro tinham de trocar o dinheiro angolano por dinheiro português, o que levava semanas, porque as filas nos bancos eram intermináveis. A nossa empregada da limpeza, uma mulher idosa e cheia de vivacidade e simpatia chamada Dona Cartagina, veio‐me confidenciar que o Artur e a Maria viviam em pecado. Isso queria dizer que viviam como pretos, como aqueles ateus do MPLA. Na sua escala de valores, era o grau mais baixo de degradação e infâmia a que um branco podia descer.

A Dona Cartagina também aguardava ansiosamente a chegada de Holden Roberto. Não sabia onde se encon‐ trava o seu exército e pedia‐me notícias às escondidas. Também me perguntou se eu dizia bem do FNLA no que escrevia. Disse‐lhe que sim, cheio de convicção. Em paga, ela limpava‐me sempre o quarto com esmero e, numa altura em que não havia nada para beber na cidade, trouxe‐me — de onde, não faço ideia — uma garrafa de água mineral.

Maria passou a tratar‐me como um homem prestes a cometer suicídio quando eu lhe disse que permaneceria em Luanda até ao dia 11 de Novembro, data em que Angola se tornaria independente. Na sua opinião, não ficaria uma pedra por tombar na cidade. Toda a gente morreria e Luanda transformar‐se‐ia num grande cemitério, habitado por abutres e hienas. Aconselhava‐me a partir o quanto antes. Apostei com ela uma garrafa de vinho em como sobrevive‐ ria e que nos encontraríamos no elegante Hotel Altis, em Lisboa, às cinco da tarde do dia 15 de Novembro. Cheguei tarde ao encontro, mas o recepcionista tinha um recado para mim, de Maria, dizendo que tinha esperado, mas que partia com Artur para o Brasil no dia seguinte.

O Hotel Tivoli estava a rebentar pelas costuras e assemelhava‐se às estações de caminhos‐de‐ferro polacas logo após a Segunda Guerra Mundial: cheio de gente que oscilava entre a agitação e a apatia, carregando trouxas atadas com cordas. Cheirava mal em toda a parte, um fedor ácido, e uma humidade pegajosa e abafada espalhava‐se pelo edifício. As pessoas transpiravam de calor e de medo. Havia um ambiente apocalíptico, uma expectativa de destruição. Alguém chegou com o boato de que se preparavam para bombardear a cidade durante a noite. Uma outra pessoa ouvira dizer que, nos bairros dos negros, se afiavam facas para cortar a garganta aos portugueses. A insurreição explodiria a qualquer momento. «Que insurreição?», perguntei, para poder informar Varsóvia. Ninguém sabia exactamente. Apenas uma insurreição, e descobriremos de que natureza é quando nos atingir.

Os boatos deixavam toda a gente exausta, enervada, sem capacidade para pensar. A cidade vivia num ambiente de histeria e tremia de medo. As pessoas não sabiam como lidar com a realidade que as rodeava, como interpretá‐la, habituar‐se a ela. Os homens reuniam‐se nos corredores do hotel para realizarem conselhos de guerra. Os mais pragmáticos e menos imaginativos eram a favor de barricar o Tivoli à noite. Os que tinham perspectivas mais amplas e a capacidade de situar as coisas num enquadramento global defendiam o envio de um telegrama às Nações Unidas, apelando à sua intervenção. Mas, como é costume entre os povos latinos, tudo terminava em discussão. 

(…)

por Richard Kapuschinski
Mukanda | 27 Setembro 2013 | 1975, angola, descolonização, guerra civil, Independência, jornalismo, luanda, Richard Kapuschinski