memórias da plantação: episódios de racismo quotidiano, PRÉ-PUBLICAÇÃO
capítulo 2 – quem pode falar? falar no centro, descolonizar o conhecimento
«Pode a subalterna falar?»
Gayatri C. Spivak (1995) formula a seguinte pergunta: «Pode a subalterna falar?» À qual responde imediatamente: «Não!» É impossível à subalterna falar ou recuperar a voz, pois mesmo que ela se esforçasse com toda a sua força e violência, ainda assim a sua voz não seria ouvida ou entendida por quem detém o poder. Neste sentido, a subalterna não pode realmente falar; ela está sempre confinada à posição de marginalidade e silêncio prescrita pelo pós-colonialismo.
Spivak recorre à imolação das viúvas na Índia como símbolo da subalterna. Defende que a viúva indiana está encarcerada no interior do colonialismo e do patriarcado, tornando quase impossível para si ganhar voz. O acto de queimar a viúva na pira do marido confirma a sua ausência como sujeito. Esta ausência simboliza a posição da subalterna como sujeito oprimido que não pode falar porque as estruturas de opressão não permitem ouvir estas vozes, nem dão espaço para que sejam articuladas. Spivak oferece aqui um ângulo de grande relevo ao questionar a noção de falar. Quando diz que a subalterna não pode falar, ela não se refere ao acto de falar em si; não implica que não podemos articular a fala ou que não podemos falar em nosso próprio nome. Spivak refere‑se pelo contrário à dificuldade de falar no interior do regime repressivo do colonialismo e do racismo. Alguns anos mais tarde, formulámos uma pergunta semelhante no contexto alemão: «Spricht die Subalterne Deutsch?» (Steyerl e Gutierrez Rodriguez, 2003).
A posição de Spivak quanto à subalterna silenciosa é, contudo, problemática se for tida como afirmação absoluta das relações coloniais, porque sustenta a ideia de que o sujeito negro não está apto a pôr em causa e a contrariar os discursos coloniais. Esta posição, argumenta Benita Parry (citada em Loomba, 1998), pondera a surdez para a voz nativa onde essa voz pode ser ouvida, e atribui poder absoluto ao discurso branco dominante. Como explica Patricia Hill Collins (2000), primeiro a ideia de uma subalterna que não pode falar depara‑se com a ideologia colonial que os grupos subordinados se identificam incondicionalmente com os poderosos, grupos esses que não têm nenhuma interpretação válida independente da sua própria opressão – logo, não podem falar. Em segundo lugar, a ideia de uma subalterna silenciosa também pode levar à afirmação colonial de que os grupos subordinados são menos humanos do que os seus soberanos, portanto menos capazes de falar em seu próprio nome. Estas duas reivindicações vêem a colonizada como sendo incapaz de falar e os nossos discursos como insatisfatórios e inadequados e, neste sentido, sem som. Também vão ao encontro da frequente alusão de que aos grupos oprimidos falta motivação para o activismo politico devido a uma consciência errónea da sua própria subordinação. No entanto, a subalterna – a colonizada – não foi nem vítima passiva nem cúmplice voluntária da dominação.
É desnecessário escolher entre uma posição em que se pode falar e outra em que não se pode. Mas Spivak adverte os críticos pós-coloniais para o perigo de romantizar os sujeitos resistentes. Ela toma a sério a vontade de as/os intelectuais pós-coloniais enfatizarem a opressão e darem a perspectiva dos oprimidos. Mas o seu argumento é contestar essa presunção fácil de que podemos recuperar o ponto de vista da subalterna. Pode ler‑se a própria ausência (do centro) da voz da colonizada como emblema da dificuldade de recuperar a voz do sujeito colonial, e confirmação de que não há espaço onde a colonizada possa falar.
O conhecimento e o mito do universal
Todos os semestres, logo no primeiro dia de aulas do meu seminário, faço uma série de perguntas às/aos minhas/meus alunas/os, para lhes dar uma ideia da relação entre conhecimento e poder racial. Começamos por contar o número de pessoas na sala. Depois faço-lhes perguntas muito simples: o que foi a Conferência de Berlim de 1884/1885? Que países africanos foram colonizados pela Alemanha? Quantos anos durou a colonização alemã no continente africano? Termino com perguntas mais específicas: quem foi a rainha Nzinga e que papel desempenhou no combate à colonização europeia? Quem escreveu Pele Negra, Mascaras Brancas? Quem foi May Ayim?
Não surpreende que a maioria das/os alunas/os brancas/os sentadas/os na sala não consigam responder, ao passo que as/os alunas/os negras/os respondem à grande parte delas. De repente, quem por regra é invisível torna‑se visível, e quem é sempre visto torna‑se invisível. Quem por regra é silencioso começa a falar, enquanto quem sempre fala fica em silêncio. Em silêncio não porque não pode articular a voz ou a língua, mas porque não tem esse conhecimento. Quem sabe o quê? Quem não sabe? E porque sabe?
Este exercício permite‑nos visualizar e compreender como conceitos de conhecimento, saber e ciência estão intrinsecamente ligados ao poder e à autoridade racial. Que conhecimento é reconhecido como tal? E que conhecimento não o é? Que conhecimento tem sido integrado nas agendas académicas? E que conhecimento não tem sido? De quem é esse conhecimento? Quem se reconhece ter esse conhecimento? E quem não se reconhece? Quem pode ensinar esse conhecimento? E quem não pode? Quem está no centro? E quem fica fora, nas margens?
Estas perguntas são importantes para questionar a razão por que o centro, que aqui designo centro académico, não é um lugar neutro. É um espaço branco onde se tem negado às pessoas negras o privilégio de falar. É historicamente um espaço onde não temos tido voz e onde as/os académicas/os brancas/os levaram a cabo discursos teóricos que nos construíram formalmente como a/o «Outra/o» inferior, situando as/os africanas/os em absoluta subordinação ao sujeito branco. Aqui nos têm descrito, classificado, desumanizado, primitivizado, brutalizado e matado. Este não é um espaço neutro. Dentro destas salas, fizeram de nós objectos «de discursos estéticos e culturais predominantemente brancos» (Hall, 1992: 252), mas raramente fomos os sujeitos. A condição de objecto que habitualmente ocupamos, este lugar de «alteridade», não indica, como se costuma acreditar, falta de resistência ou interesse, mas falta de acesso à representação por parte das pessoas negras. Não é que não tenhamos falado, mas antes que as nossas vozes – por intermédio de um sistema de racismo – têm sido sistematicamente desqualificadas como conhecimento inválido; ou então têm sido representadas por pessoas brancas que, ironicamente, se tornam «peritas» em nós mesmas. Seja como for, fomos aprisionadas a uma ordem colonial violenta. Nesse sentido, a academia não é um espaço neutro nem mero espaço de conhecimento e sabedoria, de ciência e saber, é também espaço de v‑i‑o‑l‑ê‑n‑c‑i‑a.
Por exemplo, como académica, dizem‑me habitualmente que o meu trabalho sobre o racismo quotidiano tem muito interesse, mas não é realmente científico, uma observação que ilustra a ordem colonial em que residem as/os académicas/os negras/os: «Você tem uma perspectiva muito subjectiva», «muito pessoal», «muito emocional», «muito específica»; «isto são factos objectivos?». Este tipo de comentários opera como máscara, que nos silencia as vozes mal falamos. Permitem que o sujeito branco volte a posicionar os nossos discursos nas margens, como conhecimento desviante, enquanto os seus discursos se mantêm no centro, como norma. O que dizem é científico, o que nós dizemos não o é:
universal/específico;
objectivo/subjectivo;
neutro/pessoal;
racional/emocional;
imparcial/parcial;
elas/eles têm factos, nós temos opiniões;
elas/eles têm o conhecimento, nós temos experiências.
Não são simples categorizações semânticas; têm uma dimensão de poder que mantém posições hierárquicas e defende a supremacia branca. Não estamos aqui perante uma «coexistência pacífica de palavras», como sublinha Jacques Derrida (1981: 41), mas uma violenta hierarquia que define quem pode falar.
O conhecimento e o mito da objectividade
Há muito tempo que falamos e produzimos conhecimento independente, mas, quando os grupos têm poder desigual, têm também acesso desigual aos recursos necessários para implementar as suas próprias vozes (Collins, 2000). Por não controlarmos essas estruturas, torna‑se extremamente difícil, quando não mesmo impossível, articular a nossa própria perspectiva fora do grupo. Em resultado disso, o trabalho de escritoras/es e académicas/os negras/os permanece muitas vezes fora do corpo académico e das suas agendas, como demonstrou a sequência de perguntas no início da aula. Não se encontra lá por acaso; é posto nas margens por regimes dominantes que regulam o que é o «verdadeiro» saber. Considerando‑se que o conhecimento é colonizado, defende Irmingard Staeuble, e que o colonialismo «não só significava impor a autoridade ocidental nas terras indígenas, nos modos indígenas de produção e no direito e governo indígenas, mas impor essa mesma autoridade em todas as dimensões dos saberes, línguas e culturas indígenas», descolonizar a ordem eurocêntrica do conhecimento é uma tarefa não só enorme mas urgente (2007: 90).
Além disso, as estruturas de validação do conhecimento, que definem o que é saber «verdadeiro» e «válido», são controladas por académicas/os brancas/os, que determinam as suas perspectivas como exigências universais. Enquanto se negar às pessoas negras e de cor posições de autoridade e de comando na academia, prevalece esta ideia intacta quanto ao que constitui ciência e saber, continuando a ser «propriedade» exclusiva e inquestionável da branquitude. Logo, o que encontramos na academia não é uma verdade científica objectiva, mas sim resultado de relações desiguais de poder de «raça».
Tem‑se sempre rejeitado todo o saber que não se expresse na ordem eurocêntrica de conhecimento, com a justificação de que não constitui ciência credível. A ciência não é, neste sentido, simples estudo apolítico da verdade, reproduz antes as relações raciais de poder que definem o que vale como verdadeiro e em quem acreditar. Os temas, os paradigmas e as metodologias do academicismo tradicional – aquilo a que se chama epistemologia – reflectem não um espaço pluralista de teorização, mas os interesses políticos específicos da sociedade branca (Collins, 2000; Nkweto Simmonds, 1997). A epistemologia, palavra derivada do grego episteme («conhecimento») e logos («ciência»), é a ciência da aquisição do conhecimento. Determina as questões que merecem ser postas em causa (temas), como analisar e explicar um fenómeno (paradigmas) e como fazer investigação para produzir conhecimento (métodos), e neste sentido define não só o que é o verdadeiro saber, mas também em quem acreditar e em quem confiar. Ora, quem define as questões que merecem ser suscitadas? Quem as formula? Quem as explica? E a quem se dirigem as respostas?
Por causa do racismo, as pessoas negras experimentam uma realidade diferente das pessoas brancas; questionamos, interpretamos e avaliamos essa realidade de maneira diferente. Os temas, os paradigmas e as metodologias utilizados para explicar essa realidade podem diferir dos temas, dos paradigmas e das metodologias do que é dominante. É essa «diferença», no entanto, que é distorcida em relação ao que conta como conhecimento válido. Aqui, tenho inevitavelmente de perguntar: como posso eu, enquanto mulher negra, produzir conhecimento num palco que constrói sistematicamente os discursos das/os académicas/ os negras/os como sendo menos válidos?
referências bibliográficas
Collins, Patricia Hill (2000), Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment, Nova Iorque, Routledge.
Derrida, Jacques (1981), Positions, Chicago, University of Chicago Press.
Hall, Stuart (1992), «New Ethnicities», em “Race”, Culture and Difference, ed. James Donald e Ali Rattansi, Londres, Sage, pp. 252‑259.
Loomba, Ania (1998), Colonialism/Postcolonialism, Londres, Routledge.
Nkweto Simmonds, Felly (1997), «My Body, Myself: How Does a Black Woman Do Sociology?», em Black British Feminism: A Reader, ed. Heidi Safia Mirza, Londres, Routledge.
Spivak, Gayatri Chakravarty (1995), «Can The Subaltern Speak?», em The Post‑Colonial
Studies Reader, ed. Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin, Londres, Routledge, pp. 24‑28.
Staeuble, Irmingard (2007), «Entangled in the Eurocentric Order of Knowledge – Why Psychology Is Difficult to Decolonize», em Citizen City: Between Constructing Agent and Deconstructed Agency, ed. Vasi van Deventer, Martin Terre Blanche, Eduard Fourie e Puleng Segalo, Concord (Canada), Captus University Publications.
Steyerl, Hito e Rodriguez, Encarnacion Gutierrez (2003) (eds.), Spricht die Subalterne deutsch? Migration und postkoloniale kritik, Munster, Unrast.
O excerto aqui apresentado integra a tradução de memórias da plantação: episódios de racismo quotidiano, de Grada Kilomba, edições Orfeu Negro (pp. 47-54).
tradução de nuno quintas | 280 pp | 17€
disponível para encomendas a partir de 17 de maio na loja online | www.orfeunegro.org
A obra de Grada Kilomba integra uma série sobre estudos de género e pós-coloniais iniciada pelas edições Orfeu Negro em 2016, da qual fazem parte os títulos não serei eu mulher? as mulheres negras e o feminismo, de bell hooks (2018) e pode a subalterna falar?, de Gayatri Spivak, a publicar em Outubro deste ano.