O primeiro ano do resto das nossas vidas
“A máquina do tempo nos tritura?
Ao mesmo tempo cria imagens novas.
Renascemos em cada criatura
que nos traz do infinito as boas novas.”
Parece que o nosso humor torna-se peculiar, no final do ano. Fruto de um olhar retrospetivo, analítico, que desemboca ora numa melancolia doce, pelos sonhos falhados, ora numa sensação de júbilo pelas conquistas e amores vividos. Fazer o balanço de uma quase década não é tarefa fácil. Nem necessária. No entanto, dei por mim não a fazer listas, mas a contar pelos dedos os anos que estive em Portugal e no Brasil, a lembrar mortes fundamentais, e a desejar imaginar imagens de viagens feitas, e possíveis.
“Organizar-se verdadeiramente nunca foi outra coisa do que se amar” leio às tantas no livro do Comité Invisível, que me tem acompanhado desde que cheguei ao Rio. Uma reflexão sobre a possibilidade de escapar às armadilhas do capitalismo e de conviver com os fantasmas de um sistema que nos aprisiona. Depois de um ano trágico a nível social no Brasil, leio estes versos de Carlos Drummond de Andrade, e penso que há que cuidar do nosso amor, um pouco à semelhança do próprio ex-presidente Lula, que arrumou uma namorada a partir da clausura, e de cada grupo de mulheres que se junta para prestar solidariedade, oferecer companhia, comida, cuidados, a essas mães que perderam os seus filhos baleados às mãos da polícia militar.
Numa retrospetiva necessária do ano político, o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e ex-candidato à presidência pelo PSOL, Guilherme Boulos, aponta cinco pontos fundamentais para se compreender as expectativas e o engodo gerado pelo governo Bolsonaro. Em primeiro lugar este homem, considerado um arauto da moralidade, por muitos apelidado de “mito”, inicia o mandato envolvido num escândalo de corrupção protagonizado pelo seu ex-motorista e assessor do seu filho mais velho na Assembleia do Rio, Fabrício Queiroz. Este é acusado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, de movimentações financeiras suspeitas, que teriam favorecido o clã Bolsonaro. Por exemplo, Michelle Bolsonaro, a primeira dama, foi flagrada pelo COAF, com um depósito de 24 mil reais feito em sua conta por Queiroz. Esta não seria a única transferência feita para ela, a partir de recursos que não têm origem comprovada. Também o envolvimento de Bolsonaro na morte de Marielle Franco torna-se cada vez mais suspeito: vizinho de condomínio do policial acusado de assassinar a ex-vereadora do Rio, não só os filhos de ambos namoraram, como o presidente aparece em fotografias convivendo ao lado de Ronnie Lessa. Em outubro, sabe-se que “seu Jair” foi citado pelo porteiro do condomínio, como tendo autorizado a entrada do motorista que participou no assassinato de Marielle, no dia do crime. Podemos, portanto, constatar que, no mínimo, esta imagem de homem íntegro e incorruptível, se transformou.
Enquanto assistia, nos écrans das lanchonetes, às disputas internas do PSL, que levaram à saída de Bolsonaro do seu partido, lembro-me de pensar: “ah, como tem um carácter fragmentário, o ódio.”, e também em como é curioso que o gesto de fazer “arminha” com o indicador e o polegar, que se tornou um símbolo deste governo, seja o mesmo que celebra o “L” do “Lula Livre”.” No entanto, enquanto num o indicador aponta para o céu, no outro é o cano do revólver que pode matar o Outro.
O ponto seguinte que Boulos refere, é a guerra contra o Meio Ambiente: no ano em que o Brasil teve as piores queimadas de sempre na Amazónia, o que Bolsonaro fez? acusou ONGs e demitiu o presidente do instituto INPE, responsável por medir as queimadas. A fumaça foi tanta que chegou a São Paulo, escurecendo o céu em pleno meio-dia. Além da devastação da floresta, também o alimento foi envenenado em 2019: em poucos meses foram liberados 325 novos agrotóxicos, muitos deles banidos na Europa e em outros países do mundo, considerados de alto risco para a saúde. Já em setembro, aconteceu no Nordeste o maior vazamento de óleo da história do país, de origem desconhecida, e que afetou 980 localidades. Há dias, apareceram novas manchas em duas praias no litoral do Ceará.
Boulos fala ainda sobre a perda de direitos, a Reforma da Previdência, os cortes na educação, o avanço do autoritarismo… Se repito aqui a tentativa de lançar um olhar para os factos deste ano, é porque me parece de extrema importância os factos em si, sob o perigo de se perderem no emaranhado dos dias, da burocracia, e de todas as fakes news que nos impingem pelos olhos, pelos ouvidos, e pela boca. Acredito que os factos são uma espécie de poesia, que fazem transparecer o céu e sintetizam a nossa angústia. E no entanto podemos ainda perguntar, com a legitimidade da língua queimada, e com um riso banal: “Como viver no meio deles? Como acreditar no nosso amor, apesar dos factos?” Uma década de desvantagem e horror, um sinal comprometedor dos tempos, a nossa ruína enquanto espécie.
E no entanto, quando estive em março na foz do Rio Doce, a filmar o trabalho da minha amiga Patrícia junto das comunidades, conheci sorrisos ternos e amáveis, falas generosas, que me ensinaram que mesmo no fim do mundo onde o peixe incha e a raiz da mandioca apodrece, a água encontra caminhos subterrâneos para fluir… e dá-se a regeneração. Muito lentamente, tão lentamente que em uma década não se chega a ouvir. A 25 de janeiro de 2019, o rompimento da barragem de rejeitos de minério em Brumadinho, controlada pela Vale S.A, verteu uma lama que causou 259 mortos em Minas Gerais, três anos depois do incidente com a barragem do Fundão em Mariana, que causou a destruição do Rio Doce. Dona Elza, dona de uma casinha de farinha onde faz beijú para a comunidade de Degredo, no Espírito Santo, corta a mandioca a curtos e incisivos golpes de facalhão, enquanto nos conta que, apesar da tristeza da água, não troca esse lugar onde aprendeu a acalmar o coração com as rezadeiras, e onde se vê dançar o jongo no final da noite, girando no centro da roda ao som dos tambores, no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio.
Depois de matar uma galinha, que comemos no molho pardo ao jantar, ela conta-nos entre golos de cachaça que é conhecida como a “Rainha das trans”, pois costuma organizar anualmente um evento na cidade mais próxima, o “TransLinhares”, para celebrar a comunidade LGBT e a diversidade… pois “não é só o rio, é o ser humano que parece que tá doente. É preciso respeitar”. Nada se compara à esperança de quem insiste em viver, contra todas as evidências, o amor.
A verdade é que não sei onde cabem as fatualidades tristes de 2019, nem como enunciá-las, ou sequer mencioná-las neste texto. Mas sei que não quero esquecê-las. Até porque, do nada, descubro a palavra “amor” escrita numa casinha em Areal - outra das comunidades que visitámos - no meu álbum da viagem ao Espírito Santo, e é como se esse esquecimento fosse literalmente impossível. Como documentarista, tenho o privilégio de poder voltar às minhas imagens, e agradecer o olhar que estas pessoas me lançaram, uma e outra vez. Ao longo dos filmes, dos depoimentos e das paisagens, estes sorrisos e estas histórias me acompanham como uma prova de fé.
Desejos para 2020
“E a um pouco de sexo ou muita poesia
ainda não fico indiferente”
Oiço a Valsa Quase Anti Depressiva da banda portuguesa Quinteto Tati, e quando o JP Simões canta que “chovem amigos na festa da praça no meio-dia”, sorrio com saudades dos meus. No passar dos anos, na congeminação das fantasias e dos planos furados, das bebedeiras e dos filhos que nascem, a amizade é afinal o que nos ampara, o sentimento profundo que sempre nos guiou.
Olho para o verde da floresta que coroa de finas raízes esta cidade, enquanto dou um gole na garrafinha de água de coco que trouxe do ambulante da esquina. Me sinto grata, neste final de década. Muito grata. Por ter amigos bons, por ter saúde, e viver ao pé do mar. Ao mesmo tempo sinto que é tudo tão precário, que é quase um insulto festejar: enquanto Bolsonaro comemora no twitter “o melhor saldo de empregos dos últimos 5 anos”, nas ruas a realidade do trabalho informal (trabalhadores sem carteira assinada, por conta própria, ou subocupados) condena diariamente à incerteza quase 40 milhões de brasileiros. A propósito, ainda o Comité Invisível: “A economia não é apenas aquilo de que devemos sair para deixarmos de ser mortos de fome. É aquilo de que é preciso sair para viver, simplesmente, para estar presente no mundo. Cada coisa, cada ser, cada lugar, é incomensurável enquanto aí está. É possível mensurar algo o quanto se queira, em todos os seus aspetos, e em todas as suas dimensões, mas a sua existência sensível escapará eternamente a toda a mensuração. Cada ser é irredutivelmente singular, mesmo que apenas para estar aqui e agora. O real é, em última estância, incalculável, indomável. […] A Economia, esse é seu princípio, nos faz correr como ratos, a fim de que jamais estejamos aí e descubramos o que nos era escondido por sua usurpação: a presença.”
Assim, o meu desejo para o ano que começa, é simplesmente que cada um consiga estar presente.
Hoje comprei um sabonete e um espelhinho de Yemanjá, orixá omnipresente no Rio de Janeiro, com a mesma felicidade depositada há dias em Copacabana nas flores que se confundem com a espuma do mar. Espalhei umas gotinhas de Água do Céu pelos cantos da casa, e em seguida tomei um banho de ervas de Xangô, o orixá regente do ano, evocando a sua proteção e justiça. Não sou religiosa, mas às vezes acho que é assim que nos podemos transportar, abraçando um sentimento comum, para tentar enxergar melhor esse Outro que Bolsonaro quer matar. 2020 é um número mágico, de qualquer maneira. Ainda estamos vivos.