Ser apenas negra, feminista radical e gaga
O livro “Por quem os sinos dobram” de Ernest Hemingway abre com uma citação de John Donne, um clérigo anglicano do século XVIII: “…[N]unca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti” - “And therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee”. É uma mensagem simples para quem tem consciência de que, como Hemingway escreve no mesmo romance, “quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade”, mas difícil de entender para quem brande a pertença acidental a uma comunidade que produziu e protagonizou uma história fascinante, como é o caso de Portugal, como licença para a soberba.
São muitos assim. Lido com eles quase todos os dias na Alemanha e na Suíça, gente que por ser portadora de nacionalidade original alemã ou suíça acha que tem ascendente moral (ou intelectual) sobre mim por eu ser oriundo dum continente que também produziu Robert Mugabe ou Idi Amin. A falácia consiste na convicção segundo a qual eu, como indivíduo, seria portador das características nocivas que fazem da África o lugar inóspito e atrasado que ela é na sua imaginação. E é claro que não sou perfeito, nem intelectual, muito menos eticamente, mas a ideia de que tudo quanto eu falo – ou poderia contribuir numa discussão cosmopolita – seria limitado pelos males do meu continente que ostensivamente trago às costas é simplesmente imbecil. Tive na minha infância, na cidade de Xai-Xai, um amigo e colega de escola português a quem ajudava a fazer os trabalhos de casa (incluíndo trabalhos de gramática portuguesa). Aprendi no convívio com ele a separar o privilégio do potencial. Deixei de me envergonhar por o levar comigo à minha casa para ele ver a esteira onde eu dormia quando me apercebi que o dom intelectual que ele não tinha, e eu tinha, era também mero acaso.
Pensei nisto enquanto lia o texto que compartilho e que me foi enviado por Mecildes Évora. O que acontece em Portugal interessa-me obviamente e por várias razões. Não há como desfazer o laço histórico que nos une. Gosto do pastel de Belém e quero saber em que ambiente político e intelectual ele continua a ser confeccionado. Não tenho como voluntariamente perder interesse pelo que lá acontece ao nível académico, mas também político, sobretudo porque a forma como as questões políticas vêem sendo discutidas nos últimos tempos está directamente relacionada com o que me parecem ser os principais desafios epistemológicos das ciências sociais.
Encerro dentro de duas semanas um ciclo de palestras sobre o pós-colonialismo – que iniciou em Dezembro na Universidade do Cabo no Congresso da “History of the Humanities”, prosseguiu numa escola de verão do programa de pesquisa ANTHUSIA (Anthropology of Human Security in Africa) no Gana, continuou na Universidade de Leipzig (Alemanha) num ciclo de palestras sobre teorias pós-coloniais em colaboração com uma escola de verão sobre o estudo de linguística africana e teve a penúltima sessão na semana passada nos Países Baixos num seminário doutoral e pós-doutoral sobre Lei, Direitos e Governação organizado no âmbito da comemoração de 60 anos de independência de vários países africanos iniciadas pela associação holandesa de estudos africanos. O ciclo vai encerrar com uma intervenção na Universidade do Cabo Ocidental num simpósio sobre “Ciência pós-colonial”. Vai ser um livro e já tem título: “Radical Silence”.
Embora não me considere membro da escola pós-colonial, há um certo sentido em que esta perspectiva constitui mesmo uma lufada de ar fresco nas ciências sociais e nas humanidades. Ao promover a ideia central segundo a qual o mundo poderia ter sido diferente – uma perspectiva epistemológica que a filosofia hoje em dia está a redescobrir com a ideia de “mundos possíveis” – o pós-colonialismo desafia-nos a não darmos o vocabulário conceitual das ciências sociais por adquirido. O seu sustento normativo é esquizofrénico na medida em que, por um lado, anuncia um quadro ético que sustenta uma narrativa cosmopolita ao mesmo tempo que, por outro lado, o mesmo quadro ético se presta à defesa do indefensável como foi o comércio de escravos, os excessos da colonização, a pilhagem e a indiferença descarada perante o sofrimento do outro. Na palestra em Leipzig, cidade conhecida por ter acolhido o grande Leibnitz, o mesmo que se rigozijava de vivermos no melhor de todos os mundos possíveis (com aquela miopia eurocêntrica habitual que ignora aqueles para quem esse mundo foi padrasto) – e ridicularizado por Voltaire em “Candide” por causa do terramoto em Lisboa – proclamei Kant como um percursor do pós-colonialismo para o gáudio do auditório. Mas acredito nisso, apesar de tudo. A sua razão prática, que se traduz no imperativo categórico de agir de acordo com as normas éticas que nós próprios emulamos, está no centro da preocupação do pós-colonialismo com o fosso entre ideias e práticas. É esse fosso que torna uma boa parte do vocabulário conceitual das ciências sociais cínico.
E cínica tem sido a forma como em Portugal algumas pessoas reagem à sua própria condição pós-colonial. Sim, Portugal é uma sociedade pós-colonial no sentido em que não tem como escapar à sua própria História. Não há refúgio possível da História senão o estrebuchar da soberba. Os debates sobre racismo, património cultural e colonialismo são a História a cobrar dos portugueses portadores de moral e da capacidade de auto-interpelação, mas só desses, o trabalho necessário de reconciliação com os valores que eles consideram estar na base do que faz de Portugal uma comunidade. Pode haver excessos na exigência de reconhecimento, mas quem tornou a raça relevante, o privilégio num problema político e o dever de memória embaraçoso não é quem se articula nesses termos neste momento. É quem fechou os olhos enquanto pode seguro na convicção de que a sua condição, historicamente acidental, vindicaria uma superioridade moral inata.
Curiosamente, ser “apenas negra, feminista radical e gaga” é uma descrição fantástica do que a História está a cobrar ao país. Ela cobra o reconhecimento do desafio que a presença de afro-descendentes representa para a própria ordem política, sujeitos que nunca foram devidamente contemplados como fazendo parte da comunidade política – portanto, portadores de direitos – mas sim como alvos de acções residuais. Ela cobra a correcção de séculos de subalternização da mulher, subalternização essa que se manifesta no desafio que ainda é para a sociedade – não só a sociedade portuguesa – reorganizar-se para integrar a mulher em seu pleno direito. Finalmente, a História cobra a maneira como a organização da sociedade em moldes que fazem da deficiência física um obstáculo à participação plena constitui um atentado à dignidade humana. Para mim é um mistério total que uma pessoa portadora de moral veja na proclamação destas marcas identitárias uma afronta ou ameaça à democracia, ou mesmo oportunismo. Revela, de novo, aquele fosso pós-colonial entre ideias e a prática, um fosso que leva o articulista a esperar que uma deputada afro-descendente tenha que ser perfeita em tudo para ter legitimidade para se fazer ouvir. Não é que me surpreenda com essa expectativa. Todos os dias quando acordo de manhã tenho consciência de que tenho ser muito melhor do que a média para continuar a merecer reconhecimento, é a nossa sina.
Gente lúcida e intelectualmente profunda distingue-se pela sua capacidade de não reduzir manifestações políticas de qualquer natureza que forem em afrontas pessoais – “eu não sou racista”, “o meu país não fez mal a ninguém”, etc. – mas sim de as encarar como um ceptro lançado não a si como pessoa, mas ao que a faz se identificar eticamente com a comunidade moral que Portugal é. É sintomático que o autor do texto1, numa passagem bastante reveladora, admite (magnanimamente!) que Joacine Katar Moreira “é tão portuguesa” como ele próprio, como se ser português (ou já agora guineense) na era pós-colonial fosse uma questão de jus sanguinis ou jus soli. Só que não é, para dizer a coisa à brasileira!
A História que Portugal fez e com ela participou de forma espectacular na construcção do mundo em que vivemos afasta-nos cada vez mais dessas categorias simplistas rumo à realização da concepção cosmopolita de pertença imbutida na narrativa normativa que justificou a expansão europeia. Ser português, ou seja qual for a nacionalidade hoje em dia, é mais do que ser portador de bilhete de identidade dum país. É estar comprometido com certos valores fundamentais. E estar comprometido com esses valores não significa apenas a sua proclamação. Significa estar disposto a constantemente interpelar a maneira como eles se traduzem em práticas institucionais de reconciliação de acções com ideias. O facto de um africano naturalizado poder recorrer aos direitos garantidos pela constituição portuguesa para interpelar aspectos da sua integridade moral (o espólio colonial), e não fazer o mesmo em África, não revela a cobardia e hipocrisia desse naturalizado, mas sim o que há de bom nos valores que a constituição portuguesa protege e promove. Só uma mente tacanha é que pode ver nisso uma contradição que devia votar esse naturalizado ao silêncio. Se eu fosse português diria “ainda bem que sou portador duma nacionalidade onde posso trazer esse tipo de assuntos à discussão sem receios pela minha integridade física”.
É engraçado constatar isto, mas cada vez mais fico com a sensação de que um dos desafios que a condição pós-colonial coloca a pessoas como eu é de sermos melhores europeus do que os próprios europeus, pois estes, por deixarem que sejam seus porta-vozes pessoas sem noção do importante legado intelectual e moral que a sua nacionalidade implica, abdicam dum projecto normativo que, apesar de tudo, tinha (e ainda tem) tudo para dar certo.
É por isso que discordo numa coisa fundamental. Gente que escreve assim não é “racista”. Nem tudo o que é imbecil é racista, mesmo que tudo que é racista possa ser imbecil. Os sinos não dobram por aquele que abraçou a condição pós-colonial portuguesa. Eles dobram por um projecto iluminista traído por aqueles que se satisfazem facilmente com o prazer imediato do jogo de palavras e perdem de vista o grande desafio intelectual que é responder ao imperativo categórico kantiano de conciliar a prática com valores. Repito, isso não é racismo. Tudo menos isso.
- 1. Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 01/02/2020