A Associação dos Músicos de Moçambique (AMMO) como zona libertada

Saiba que toda a gente é especial, mas nem por isso não é nada de especial, porque até mesmo o mais especial, sozinho no mundo não é nada de especial.

Azagaia

Moçambique conquistou sua independência do colonialismo português em 1975, após uma longa guerra de libertação. O processo revolucionário encampado pela FRELIMO vivenciou enormes desafios em nome da nova nação. Sem dúvida, as sucessivas guerras ocorridas no pós-independência, que terminaram em 1992, foram um dos mais duros e tristes golpes por levar à morte cerca de um milhão de pessoas. Durante o processo revolucionário, as experiências de formação intelectual e de luta armada promoveram instituições que contribuíram com um sentido público de viés socialista, adotado oficialmente pela FRELIMO a partir de 1977, em que o Estado nacional moçambicano passou a exercer forte controle político. Vários setores da sociedade, tanto de caráter sociocultural como profissional, foram então submetidos aos parâmetros julgados adequados pelo poder vigente.

Associação dos Músicos de MoçambiqueAssociação dos Músicos de MoçambiqueOs músicos, por exemplo, tiveram que aceitar uma política restritiva com relação à cultura, que aprovava apenas músicas compreendidas como revolucionárias que idolatrassem o Estado monopartidário. Músicas estrangeiras e determinados estilos rítmicos de grupos étnicos foram considerados alienantes ou secundários. Afinal, uma das bandeiras dos anos 1970 e 1980 era a criação do “homem novo moçambicano” que iria surgir junto com a constituição da nova nação. Projeto comum às perspectivas socialistas no mundo, no caso moçambicano tinha como intuito extirpar o que se entendia por “resquício do colonialismo” em todas as áreas da sociedade. Isso incluía, como não podia deixar de ser, uma leitura que impunha aos músicos a atuação bastante restritiva e moralizante sobre suas ações e composições. O Estado revolucionário não considerava adequada qualquer tipo de música. Alguns músicos foram enviados para os “campos de reeducação”, outros perderam o trabalho e muitos foram embora do país em busca de novas oportunidades. Uma releitura do passado a partir dessas experiências produziu a ideia de que talvez existisse maior liberdade musical no período colonial do que no pós-independência. Um estilo musical típico e popular de Moçambique, como a Marrabenta, foi nesses anos marginalizado, sendo antes muito tocado no país. A Marrabenta, surgida nos subúrbios da capital moçambicana durante o período colonial, é o resultado de culturas locais em convivência com outras formas de vida e de musica, como as transmitidas nas ondas do rádio que vinham da África do Sul. Cantava-se sobre o cotidiano de trabalhadores e trabalhadoras, homens e mulheres, suas roupas, bebedeiras, namoros e amores. Terminou por ser associada pelo Estado, naquela época, a sensualidade, decadência e incapacidade de formar o “homem novo”, de valores morais elevados.

A Associação dos Músicos de Moçambique (AMMO) foi fundada, em 1986, nos moldes do Estado monopartidário num contexto que sinalizava o início de maior abertura cultural. A rádio logo deixaria de ser controlada unicamente pelo Estado, permitindo a difusão de diversos estilos musicais, como a Marrabenta, o Jazz, o Reggae, o Rap, etc. Mas ainda assim os efeitos de políticas autoritárias restringiram parte da criatividade artística e comprometeu a liberdade política da associação. O primeiro Secretário Geral – Aveny Awendila foi nomeado por ser um antigo combatente da FRELIMO. Após a sua morte, assume Hortêncio Langa, que era à época secretário-adjunto. Langa permaneceu por vinte anos à frente da associação. É retratado, hoje em dia, como um indivíduo que colocava os interesses do Estado como prioridade e nunca os dos músicos. Uma associação se caracteriza por uma prática em que trabalhadores se reúnem de forma voluntária, autônoma e democrática com o intuito de deliberarem sobre os seus interesses reforçando laços de solidariedade que são vitais para a vida em comunidade. A adoção de um regime democrático e marcadamente neoliberal economicamente, a partir de 1992, não parece ter afetado de imediato a estrutura organizacional constituída. Apenas em 2008 ocorreram as primeiras eleições e surgiu um novo estatuto capaz de enfatizar o papel apartidário da instituição e a necessidade de defesa dos diretos dos músicos como trabalhadores.

A partir daí a Associação dos Músicos de Moçambique angariou mais recursos advindos dos fundos de países nórdicos para comprar a casa sede, alguns móveis e instrumentos musicais. Desde então, a sede tem espaço para gravações, aulas, shows de diversos estilos musicais, livres de qualquer censura explícita, tornando uma referência cultural importante em Maputo. O Estado deixou de ter um representante para controlar a associação, e músicos mais críticos, em termos sociais, como o rapper Azagaia, são bem vindos, mesmo quando sofrem restrições por parte do Estado e do mercado. Há um diálogo com a Escola Superior de Música da Universidade Eduardo Mondlane, apesar de muitos músicos não terem formação superior. Com cerca de 4000 associados, existe um esforço para que os próprios membros compreendam o sentido do associativismo como uma experiência coletiva ativa de troca e luta pelos direitos dos músicos como trabalhadores dignos, não precarizados. Num Moçambique cada vez mais aberto para o capital internacional neoliberal, entendedor da cultura como entretenimento e empreendedorismo, o direito dos músicos de se reconhecerem como trabalhadores, se fortalecerem a partir de um coletivo e se expressarem da forma como consideram adequados é um caminho de resistência política e transformação social. Afinal, a música moçambicana é o grande património cultural do país e tem a capacidade de abalar governos e mercados ao tocar os corações dos homens. Viva a luta da Associação dos Músicos de Moçambique!

Para Baba Harris, músico moçambicano

por Priscila Dorella e Matheus Pereira
Palcos | 28 Janeiro 2020 | moçambique, monopartidarismo, músicos moçambicanos