Danças afrobrasileiras, dança dos Orixás, Entrevista a Rita Carneiro

 

Por quê a dança e não outra arte? 

Sempre fui uma criança muito tímida e o único momento em que não tinha vergonha de absolutamente era quando eu estava dançando. Lembro-me de quando tinha o teatrinho na escola, queria ser sempre a narradora, porque a narradora não precisa estar à frente, só precisa de ler bem. 

O meu pai tinha o hábito de colocar música todos os domingos, chamava todo o mundo e, religiosamente, das quatro às dezoito horas, nós dançávamos. Cresci com a música dentro de mim e não tinha vergonha de dançar. 

Quando eu estava no ensino médio, ao invés de seguir educação física, escolhi dança e aí nunca mais parei. Sou licenciada e bacharel em dança pela Universidade Federal da Bahia. Tenho essa relação desde criança, mas também fiz letras na Universidade Federal da Bahia e sou professora de português e italiano. A língua, a literatura e a dança sempre caminharam dentro de mim. A dança é a minha forma de ver e pensar o mundo, sem fronteiras, sem barreiras em que todos somos realmente irmãos do mesmo território.

Como é que se envolveu com as danças afro-brasileiras?

Já fazia dança, fiz moderno, flamenco, sapateado americano e ballet clássico, que não me interessa muito porque acho que engessa muito o corpo. Você cria, você aperfeiçoa e vai querer aperfeiçoar o tempo inteiro para chegar à perfeição. Já andava na universidade quando vi uma “aula de dança brasileira” com a professora Edileuza Santos, grande referência para mim. Eu nunca tinha feito dança afro na minha vida, só tinha experimentado moderno, contemporâneo, clássico, ballet clássico. Fui para as aulas de dança afro-brasileira com a professora Edileuza, a minha super mestra, e fiquei impactada. Na aula, eu não errei absolutamente nada e não entendia porquê. Não estou falando da questão rítmica, isso nunca me faltou. “Por que não errava?” “Porque eu não me atrapalhava?”. Eu fiquei pensando nisso e, uma semana depois, perguntei à professora “Porquê professora? Não consigo entender porque é que nas suas aulas eu consigo fazer tudo, não erro nada, meu corpo faz tudo “. Você ainda não sabe, mas o seu corpo elegeu para ele a dança afro-brasileira. É por isso. Você tem identificação com isso.”, achei tão sábia essa resposta. Eu digo que foi com a professora Edileuza, com a dança africana, que me deu identidade. Eu vi qual é a minha identidade em dança, afro-brasileira. Ela me deu a identidade como artista da dança. A partir daí eu não parei de fazer dança afro e de estudar. Depois fui para dança do ventre  (também sou professora de dança do ventre), que é do norte de África. Muitos anos depois é que vi que não importa qual a região, a africanidade está em  mim. Tenho uma grande conexão com África, com a africanidade. Eu sei que eu sou afro-diaspórica e sei das outras etnias indígenas que estão em mim. 

Na nossa primeira conversa disse-me: “Sou baiana. Sou da cidade mais negra do mundo (fora do continente africano)”. Como é que “ser baiana” a influenciou, a seguir o caminho da dança por exemplo? 

Como sou de Salvador, a cidade mais negra do mundo fora do continente africano, desde muito cedo você começa a dançar em casa. O samba é passado em casa, os avós ensinam a sambar, não existe escola de samba para quem é brasileiro, com a família você aprende. Ser da Bahia, de um lugar como Salvador, é trazer esse amor pela dança na carga genética. É claro que existem baianos que não sabem dançar, ou que não gostam. Deve existir. 

Em Salvador comemoramos e fazemos muitas coisas na rua. Dançamos na rua, até porque tem festas populares que acontecem na rua e acho que isso influencia todo o movimento urbano e o movimento da cultura do lugar, influencia muito ter essa coisa da dança dentro de si. Em Salvador, uma pessoa que é de uma companhia de dança, que sabe ballet, contemporâneo ou qualquer outra dança, se não souber dançar afro, ele não é considerado completo. É muito forte para a gente, é como se a gente trouxesse essa faísca dentro da gente, que está adormecido e que em todo o mundo desperta um dia. A gente tem essa coisa da dança que vem da herança africana de alegria, de alacridade, como diria o professor Muniz Sodré. 

A dança é algo tão característico tanto da cultura africana quanto da cultura brasileira. De que forma pensa que a dança, mais especificamente, as afro-brasileiras, refletem a herança africana no Brasil?

Temos muitas danças africanas no Brasil, que foram modificadas e ressignificadas. Na época da colonização, a Igreja Católica fez muitas proibições. O Lundu, uma dança provavelmente de origem africana, foi proibido porque se mexia muito o quadril e, para o europeu, isso era visto como pecado. O samba e a capoeira também eram proibidos no Brasil, era considerado vadiagem, e a polícia prendia. Nos navios negreiros, quando os escravizados eram levados para o Brasil, não era só uma etnia, iam pessoas de Angola e  da Guiné, uma diversidade em termos de ritmo. Invés de brigar, uniram-se para criar outra coisa no Brasil. Considero isso uma estratégia maravilhosa de manutenção da cultura. O samba vem da palavra “semba” que é de Angola. Além de ser de dança, também me interesso pela origem da gente. Acho que enquanto o Brasil não dialogar com muito cuidado e carinho com a África, a gente vai continuar no mesmo lugar, porque temos uma grande herança africana. Devemos dizer não a esse preconceito que existe de que os escravizados eram menores porque só passavam por sofrimento. Foram os africanos que levaram para o Brasil e para tantos outros lugares, como trabalhar com ferro, por exemplo. Com a dança não foi diferente, foi uma recriação. O samba não é considerado africano, é brasildeiro, nasceu no Brasil mas foi criado pelos africanos, junto com outras etnias e com certeza junto de brasileiros já lá nascidos. Onde os africanos foram eles deixaram a sua herança. A própria língua do Brasil é diferente exatamente pela influência africana. Os africanos, já tinham a sua língua, mas foram obrigados a falar o português e falavam como entendiam, para não serem castigados. O português do Brasil nunca poderia ser igual ao português de Portugal, até porque tinham também os indígenas que falavam línguas próprias como o Tupi e o Nheengatu. 

Estas danças são uma mescla entre as culturas africana e brasileira, quais diria que são os aspectos mais marcantes de cada cultura nas danças? 

A África dança no contratempo e o Brasil dança muito mais tempo, mas nós temos muito em comum, como o uso do quadril, a rítmica e a percussão. O Brasil tem uma percussão muito forte, isso está na dança e também no nosso corpo. O uso do quadril é muito afro-brasileira, não temos vergonha de mexer o quadril, de rebolar. A dança africana é toda à volta da cintura e no Brasil usamos a parte de cima do corpo, por exemplo no maracatu e em tantas outras danças. 

Certamente que dentro do estilo danças afro-brasileiras, existe uma grande diversidade de danças, desde o samba de roda à capoeira. Poderia dar alguns exemplos, especificando quais os simbolismos de cada uma? 

Vou falar primeiro do maracatu que existe na Bahia, mas é de Pernambuco. Ele é uma manifestação afro-brasileira que nasceu do carnaval, que era quando os escravizados podiam sair à rua e organizavam desfiles. Reis e rainhas foram escravizados e levados para o Brasil e nesse cortejo sabiam quem era o rei e quem era a rainha. No maracatu se dança muito com os braços que mostraram impotência. Eu não posso falar do sul do Brasil, aí eu não sei. O sul do Brasil, foi a parte para onde foram os alemães, os poloneses, os austríacos, os italianos e eles se orgulham tanto disso. E a gente ri, a gente ri. Faço questão de dizer “Eu nunca escravizei ninguém. Nunca derramamos sangue de ninguém”. É incrível como você se orgulha de ter sangue europeu, que fez tanto mal à humanidade, mas você não tem orgulho de dizer que você é de um povo que trouxe alegria. Você não tem orgulho de dizer que é de um povo que trouxe tecnologia,como cuidar, trabalhar com ferro. Então, hoje no Brasil existe uma corrente muito forte de educadores que fazem questão de desmistificar, a palavra é essa, desmistificar para as crianças afrodescendentes, para as crianças negras “Você não é descendente de escravos”. 

Voltando à questão…

A capoeira é uma manifestação cultural e física que surgiu a partir de uma iniciativa de defesa dos escravizados no Brasil. Na verdade, o significado da palavra capoeira é mato-ralo, era num mato baixinho que se treinava a capoeira, que é uma mistura de dança e lua. Enquanto um grupo treinava a defesa, que era a capoeira, outro ficava olhando se vinha alguém, porque se viesse alguém que não fosse da comunidade, se dava um sinal, um aviso. A capoeira é uma mistura de luta e dança, exatamente porque se podia disfarçar como dança. A história do samba começa com a vinda dos africanos para o Brasil, com uma senhora chamada Tia Ciata, que era uma negra que fazia reuniões onde aconteciam batuques, na sua casa na Bahia. Esse batuque virou samba, que vem de semba. A Tia Ciata foi para o Rio de Janeiro e levou isso com ela e o samba foi se difundindo e é conhecido em todo o Brasil. 

Rita CarneiroRita Carneiro

A congada é conhecida como uma dança com um traço religioso, já que recria a coroação de um rei ou rainha do Congo? Qual a conexão existente entre as danças afro-brasileiras e a religião? 

As danças afro-brasileiras estão muito conectadas à religião. São danças de inspiração afro-religiosa, como a Dança dos Orixás, que são as divindades do Candomblé. Cada orixá está ligado a um elemento da natureza, como por exemplo a Iansã, que é a deusa das tempestades, dos raios e trovões. Ela é uma deusa muito forte, que lida com o fogo e é a única que lida com a morte, não tem medo da morte. No caso do Afoxé, ele é considerado candomblé de rua porque era o momento em que as pessoas do candomblé levavam o que acontecia no terreiro (lugar onde aconteciam as cerimônias) para a rua. 

No caso do Jongo, as letras desse estilo de dança não eram compreendidas pelos senhores, o que dava uma certa liberdade aos escravizados para que pudessem cantar sobre os seus sofrimentos. Diria que as danças afro-brasileiras nascem também do sofrimento dos escravos e da sua busca por momentos de alegria na sua vida através da dança? 

Tenho a certeza de que era uma música de dispersão e de busca de alegria por parte dos escravizados. Imagina trabalhar 14 horas numa plantação de cana como os escravizados com um sol escaldante. Trabalhar com música é uma tradição dos africanos no Brasil e com certeza o expressar o que se sentia com o corpo por meio da dança e da música era uma forma de espantar a Deus. Mesmo as letras das músicas mostram isso “Vou dizer a meu Senhor que a manteiga derramou. A manteiga não é minha, a manteiga é Ioiô”. Acho isso maravilhoso no povo africano, que ressignifica e traz a dor na letra, no que está falando, mas o corpo diz outra coisa e mostra a força desse povo, com toda a dor e com toda a descriminação. Falam de algo que lhes toca muito mas ainda assim com muita alegria. É impressionante. Tem uma música chamada “Todo o mundo erra” e ela fala de suicídio. Todo o mundo canta com alegria, a música é tão bonita que você sucumbe ao porquê de ter sido escrita. 

No caso dos escravizados que trabalhavam 14 horas cantando, creio que a vontade de viver e de superar era maior porque senão nós não estaríamos aqui. Imagine que tinham sido tomados por essa tristeza, sucumbido e morrido, nós não estaríamos aqui para contar a história. É lindo, é um povo muito forte. 

De que modo considera que estas danças favorecem a preservação e promoção da cultura afro-brasileira? 

Essas danças duram até hoje, mesmo com toda a persistente perseguição, então há muita preservação, sem dúvida. A gente sempre acha uma estratégia de manter a cultura viva. Uma das estratégias para o Candomblé ter sobrevivido a associação a cada orixá, que seria cada deus da religião afro, um santo da igreja católica, assim faziam o culto deles. Em cima da mesa colocavam os santos católicos e a toalha cobria os deuses do orixá porque se alguém que não pertencesse ao candomblé aparecesse, baixavam a toalha e parecia que estavam a fazer o culto aos santos que lhes foram impostos (também derivou na umbanda). Essa foi uma estratégia de inteligência e de sagacidade para a manutenção da cultura e para a manutenção da religião. 

Quais são os principais estilos de danças afro-brasileiras que ensina? 

Depende do público. Tem vários estilos de dança afro, eu faço a depender do público. Se o público quiser uma coisa em geral, ou algo da sua cidade, a gente faz. É construindo a onda. Claro que você tem o esqueleto da aula, com o objetivo principal da aula, como se vai desenvolver a aula e como vou concluir. Isso não é imutável, porque numa aula, eu falo como professora, o que a gente aprende na parte didática é que você planeja a aula, mas você sabe que tudo pode mudar.  

Mais importante do que o conteúdo, pode ser o que aconteceu naquele momento aos seus alunos. Hoje eu tenho que dar aula sobre sujeito, por exemplo, e aí chega alguém nessa aula que tomou um susto muito grande agora. Para mim, é muito mais importante a gente acolher aquela pessoa para ela acalmar e não ficar com trauma do que falar do que é sujeito, daquele que pratica a ação. Ou, melhor ainda, você conseguir fazer esse diálogo com o que aconteceu. Aqui nas aulas de dança a gente faz uns bate-papos de vez em quando, porque aqui a gente tem outro objetivo, que extrapola a coisa da dança. O que a gente pensa como a aula aqui é como essa dança atingiu você e no que ela pode contribuir para a sua melhora. A  gente está aqui muito mais para se conectar um com o outro, quebrar as barreiras das durezas que a gente tem lá fora, porque para nós que somos imigrantes tem muitas barreiras que nos tornam internamente tristes, então o objetivo maior daqui não é você ser um bailarino. O objetivo maior é fazer com que você se conecte com a sua história, com o que você traz de história.

O que é mais gratificante para si, enquanto professora de danças afro-brasileiras? 

É essa conexão entre as pessoas, essa criação de vínculos, de amizade fora daqui. O que me deixa feliz como professora é exatamente isso. O meu objetivo é fazer com que as pessoas se conectem, se encontrem, se reencontrem, que a sua história se cruze com a minha e a gente aumente aquilo que trazemos que é diferenciado de quem nasceu em outro lugar, em outro continente. A gente acha tão bom espalhar pelo mundo essa alegria… não é só alegria, é muito mais do que isso, não é? Esse cuidado que a gente tem com o outro. Gosto de verdade desse cuidar das pessoas com a dança ou com a própria língua portuguesa. Eu também sei que não sou uma professora tradicional dando aula de língua portuguesa, mas é um cuidado. Eu, no Brasil, dava aula para jovens e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Para mim, primeiro é preciso conquistar a confiança dessa pessoa, pelo afetivo, para depois chegar no cognitivo. Depois, ela sabe que pode confiar, porque não é discriminada e é olhada como igual. Primeiro ganhar a confiança, porque quando se confia numa pessoa, a gente se deixa levar porque sabe que a pessoa não te vai enganar. Esse público vulnerável está acostumado a “não” o tempo inteiro. Quando ela ouve um sim, claro que ela duvida, mas o tempo vai mostrar a ela se é um “sim” de verdade ou não. Então, se ela vir que é um sim verdadeiro, ela vai se dedicar a aprender. Eu posso te dizer isso com muita propriedade. E aqui na sala é assim também.

“A herança africana salvou o Brasil da melancolia europeia”, Rita Carneiro.

por Nélida Brito
Palcos | 8 Abril 2024 | danças afro-brasileiras, Rita Carneiro