"Estou lá" (crónica) – Festival da Lusofonia
“Estou Lá”, foi uma grande festa musical dentro dos XVIII Colóquios da Lusofonia organizados pela AILC (Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia) a Academia Galega da Língua Portuguesa (AGLP), a Pró- AGLP e a Associaçom Galega da Língua (AGAL) e fez parte da programação da FITO (Festival Internacional de Teatro de Ourense). Contou com o apoio e o patrocínio da Concelharia de Cultura do Concelho de Ourense.
A Galiza acolheu pela primeira vez estes colóquios que já passaram pelo Brasil, Macau, China e agora visitaram a terra berço da língua galego-portuguesa. O nosso mais sincero agradecimento a todas as pessoas que o tornaram possível. Grão a grão a galinha enche o papo. Obrigado por achegardes o vosso, de todo coração.
Estivemos lá para estreitar laços e tender pontes… e que melhor lugar para isso que Ourense, essa cidade-ilha que nos deu acovilho e arrolo: desde a Ponte Maior, também conhecida como Ponte Romana, ou Ponte Velha, que tem a sua origem no século I, até a Ponte do Milénio, a quinta e última. Há alguns anos Camilo Nogueira expressava um sentimento que muitos compartilhamos: “Oxalá algum dia haver tantas pontes sobre o Minho, como em Paris sobre o Senna”. O pai Minho, o rio que abraça e namora Galiza e Portugal. Canté que assim seja.
O Tema elegido para estas jornadas foi “Galiza e Açores: duas insularidades culturais”. A mim faz-me pensar na Islândia, que forma parte da cordilheira submarina que se estende, precisamente, para o Sul e Sudoeste até as ilhas dos Açores, fazendo parte do mesmo sistema montanhoso. Islândia, uma ilha na que os banqueiros são arrastados e enviados à cadeia e os ex-presidentes julgados por má gestão… Ai! que inveja, verdade?! e, musicalmente, numa mulher poderosa, a pequena viquingue Björk, como diriam os Ataque Escampe. Porque… o tamanho, certamente, não importa neste caso, mais bem ao contrário. Penso na Galiza tantos séculos isolada, mais que possui uma forte personalidade linguística, cultural e musical, comparável a outros lugares, talvez pequenos no mapa, mas imensos nos nossos corações, como Cuba, Jamaica, Irlanda ou Cabo verde.
A Guiné-Bissau, o lugar do que procede uma das artistas convidadas, Eneida Marta, é um país da costa ocidental de África que além do território continental, integra cerca de oitenta ilhas que constituem o Arquipélago dos Bijagós, onde topamos algumas das melhores praias do continente. Praia é a capital de Cabo Verde, que no passado pôde chegar a formar um só país junto à Guiné, como sonhou Amílcar Cabral. Não me digam que não dá vontade de ir viver num país cuja capital tem por nome praia!
O passado sábado 6 de outubro nadámos nas águas do auditório municipal de Ourense com 9 cantoras, cantores e músicos e com as 24 espécies de baleias e golfinhos que visitam os Açores e infelizmente, cada vez menos, a nossa querida Galiza. Com o espírito de Natália de Oliveira Correia poeta açoriana, lutadora contra a Ditadura de Salazar que destacou na defesa da cultura, dos direitos humanos e das mulheres. Autora da letra do Hino dos Açores, inventou o matricismo, identificador da mulher como arquétipo da liberdade erótica e passional e fonte matricial da humanidade. Dizia: “Sou até um ser profundamente afetivo. Coloco o amor na sua totalidade - o Amor que compreende Eros, Ágape (ou amor sublime), Líbido e Fília (amizade). Este amor é a própria essência da cultura portuguesa”, e eu engadiria “e da galega, da brasileira, da africana, da palestiniana…”
Viajamos à Ilha Brasil, que misteriosamente aparece, desaparece e muda de lugar, como uma mancha vermelha em milhares de mapas desde o século XIV até meados do XIX. O antigo paraíso dos celtas, sempre cara o sol poente. Desde o oeste da Irlanda, a sua posição originária, migrou para os Açores, onde a atual ilha Terceira aparece por vezes com esta designação e onde, muito antes de 1500, data da descoberta “oficial” das Terras de Santa Cruz, o atual Brasil, já a península fronteira à cidade de Angra, um antigo vulcão extinto, ostentava o nome de Monte Brasil. Este vocábulo é o nome popular dado em gaélico irlandês ao sulfuro de mercúrio, mineral de cor vermelha brilhante utilizado desde a antiguidade como base para colorantes e usado em pintura corporal.
A lenda da ilha Brasil estava em boca dos marinhos atlânticos da Idade Media (escoceses, irlandeses, bretões, galegos, portugueses…) e é possível que a aplicassem ao paraíso que toparam, cheio, por outra banda, duma madeira chamada pau-brasil que, pela sua coloração avermelhada parecia estar incandescente ou “em brasa”, ou que sem dúvida contribuiu à união de ambos nomes num, como acontece com o enigmático texto do basco Lope Garcia, que sobre 1475, situa na ilha do Brasil, ao mesmíssimo rei Artur, identificando-a com Avalon, ilha lendária da lenda arturiana, famosa por suas belas maçãs, lugar onde a espada do Rei Arthur Excalibur foi forjada e posteriormente para onde Arthur é levado para se recuperar das feridas após a Batalha de Camlann.
O magnético Xoán Curiel, recém chegado da sua turnê pela California, outro lugar com nome mítico, foi o encarregado de começar, após a minha apresentação. Ensinou-nos a conectar-nos na brisa, a descobrir na língua o sabor do beijo e a voar de um jeito diferente no azul. Aliás “atlantizou” o uquelele no tema intitulado Babel. O uquelele tem sua origem no século XIX tendo como ancestrais o braguinha ou machete e o rajão, instrumentos levados pelos madeirenses, nomeadamente João Fernandes, quando estes emigraram para o Havai para trabalhar no cultivo da cana-de-açúcar naquelas ilhas. Uquelele, no idioma havaiano quer dizer “pulga saltitante”.
Com Xoán assistimos à consolidação de um grande criador, de um músico que parece estar a chegar a um estado de forma dificilmente melhorável e que sabe contagiar a alegria de viver sem medos, de transmitir o talento e a solidariedade. Rimos a cachão lembrando a sua experiência no Brasil ao ver a reação do público quando cantava o refrão do seu tema Rapás, rapás!: “que faz com um grelo, metido no pelo…”. Além da sua simpatia e das suas canções, foi omnipresente durante toda a velada e os seus duetos foram marcantes, quer com Najla Shami, quer com João Afonso. Sua foi também a direção musical e artística deste espetáculo.
Najla Shami levou-nos com a sua vibrante voz desde as ruas de Compostela às selvagens montanhas de Lugo e daí à fértil Palestina. Sentimos o calor do seu pessoal e inconfundível estilo que navega entre a MPB, a nova música galega e os sons de raiz, das suas raízes. Coração estaladiço soou mais africano que nunca graças à sua capacidade para enfeitiçar com a palavra e a melodia, e à magnífica banda e percussão mestiça de alento baiano que seguiram as suas pegadas. Surpreendeu-nos com o Alalá das Pedras, acompanhada unicamente pelo baixo de Norton Daiello, deixando-nos quase sem respiração. Ficamos à espera da sua evolução que parece ainda não ter limites.
Eneida Marta, mulher de doce mel que, dito seja de passagem, tem cantado também em árabe, atreve-se com todo o tipo de ritmos desde os tradicionais da sua terra de nascença, a Guiné-Bissau, de Cabo Verde ou de Angola, passando polo jazz, o flamenco e até o gospel! Nesta noite, além do seu espetacular vestido amarelo, que não deixou ninguém indiferente, realizou uma interpretação magistral do apaixonante tema És um Fidju. Os seus duetos com Najla Shami (A Velha Chica) e Luanda Cozetti (Mindjeris di panu pretu) foram a confirmação da qualidade e variedade das vozes femininas lusófonas. Estas três mulheres iluminaram a noite orensã e fizeram-nos sentir que a nossa língua e as nossas almas ressoavam noutras latitudes, inesperadamente próximas.
Tomamos um café bem carregado de talento e boa onda junto a Luanda Cozetti e Norton Daiello. Com o aroma da sua sofisticada proposta e o açucar da sua natural comunicação com o público…Cople Coffee demonstraram com temas próprios como Sambinha cliché ou com versões como a mítica Dindi (junto a banda e coreada por todo o público assistente) que o seu nome na música atual não é por acaso. Luandamos com saudade e orgulho, com uma proposta que refresca e vigora a nossa imaginação e a nossa sensibilidade. Luanda e Norton souberam durante todo o concerto embalar ao público e ao resto dos participantes.
João Afonso, trouxe-nos cartas cheias de compromisso e de esperança, de boas canções e de abraços sinceros porque sabia que lá, nessa noite não ia encontrar “fronteiras a dividir corações”. Quis fugir com o cientista, mas felizmente ficou connosco e deleitou-nos junto a Xoán Curiel com a aconchegante Carteiro em bicicleta. A memória do seu tio, o Zeca, e da música tradicional galega, apareceu ao interpretar junto a Luanda Cozetti o Cantar galego, que foi cantarolado até polos técnicos de som e iluminação. A voz de João tem o sabor do bom vinho, da conversa com @s amig@s mais achegados.
A banda esteve composta pelos magníficos Paulo Silva, Serginho Sales e Pablo Vidal, garantia de profissionalismo, entrega, generosidade e momentos inesquecíveis. Teclados, baixo, contrabaixo, bateria, sementes, acordeão… encheram de magia a cidade das Burgas. A Bahia, Minas Gerais e a Galiza fazendo tremer de emoção a todo um auditório. Às vezes o pessoal exclamava “mas, a sério que a banda são só três?!!”. Quanto desfrutámos junto a eles, minha gente!
Esta maravilha não teria virado realidade sem o excelente trabalho, o carinho e a ilusão de Noemi Pinheira e Irene Veiga, sem a produção sempre atenta e inspirada de Inês Portela e sem o bom fazer de Eski no som (nem um só acople!), dos técnicos do auditório municipal e do pessoal do Concelho.
A insubstituível Uxía não pôde acompanhar-nos desta vez, já que estava a espalhar a nossa cultura e a nossa música na Tunísia junto ao brasilego Sérgio Tannus, mas sua foi a energia que nos impulsionou e o ánimo que nos uniu nesta aventura. Seremos muitos, seremos alguém… com amigos assim um outro mundo sim que é possível.
Gozemos pois da lusofonia, também conhecida por galeguia, à que os galegos pertencemos por direito próprio. Em palavras de Jimmy Hendrix: “Quando o poder do amor superar o amor do poder, o mundo conhecerá a paz”… ou em palavras da nossa Rosalia de Castro “É feliz o que sonhando, morre. Desgraçado o que morra sem sonhar”. Continuaremos a sonhar, a amar e a fazer realidade os nossos sonhos…
Damas e cavalheiros, rapazes e raparigas, pequenos e grandes, avós e crianças, meigas e lobisomens… com todos vocês… Estou lá!