“Façam uso de mim para valorizar o nosso património que é do mundo”
De como alguns músicos oriundos de países ‘lusófonos’ em Lisboa vêem a lusofonia .
Abordando a música como um ponto de conexão social numa cidade pós-colonial onde empreendedores culturais utilizam o termo político de lusofonia, busco compreender como alguns músicos migrantes oriundos de países ‘lusófonos’ em Lisboa interagem neste processo, aos níveis de comunidade, associações voluntárias e instituições governamentais. De maneira geral, a minha pesquisa mostra uma falta de reconhecimento pela contribuição de músicos migrantes de língua portuguesa à cultura expressiva de Lisboa. Surpreendentemente, muitos se não todos os entrevistados, vêem alguma futura relevância no conceito de lusofonia. Eles apelam para instituições supranacionais -como a CPLP- e para os governos nacionais, pedindo apoio estructural para promover e divulgar toda a cultura expressiva de países de língua portuguesa, e indicando que as músicas migratórias destes países devem ser consideradas como parte integral da história cultural e do patrimônio de Portugal.
Introdução e enquadramento
Em 25 de Fevereiro de 2011, a TAP (Transportadora Aérea Portuguesa - a companhia aérea nacional) – que oferece mais de 70 voos semanais para várias cidades brasileiras, bem como dezenas de outros para as capitais de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique – colocou o vídeo clipe ‘De Braços Abertos’ no seu canal youtube. O clipe reúne músicos bem-sucedidos de três países ‘lusófonos’: a portuguesa Mariza, o angolano Paulo Flores e a brasileira Roberta Sá, que em conjunto personificam uma música que se assume como “um ‘hino’ para a união das culturas lusófonas”.1
Segundo a TAP, ‘De Braços Abertos’ “ilustra a proximidade e complementaridade entre esses três povos, que compartilham língua, cultura e história” (ibid.). O vídeo clipe, que actualmente ainda se mantém em exibição durante os vôos da TAP, sugere uma mistura reveladora de mercantilização e política cultural, além de evidenciar o facto de em 2011, cerca de 15 anos após o conceito de lusofonia ter começado a adquirir maior visibilidade, a sua essência permanecer ainda relevante.
A crise económica que atingiu Portugal e a Europa em 2008 é um momento histórico que põe em causa tanto as fronteiras geográficas do país como as filiações simbólicas face a interesses comerciais. Isto fica claro na visualização do vídeo clipe ‘What the Finns need to know about Portugal’ [‘O que os finlandeses precisam de saber sobre Portugal], postado no youtube em Maio de 2011, e no qual alguns elementos do discurso de lusofonia parecem surgir reformulados ou, pelo menos, repensados.2
Para este artigo, gostaria de juntar as ideias subjacentes nestes dois exemplos. Num contexto em que o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a União Europeia (UE) reforçam o seu impacto por meio do controle financeiro, torna-se relevante averiguar o que esta crise económica significa para a percepção do termo lusofonia.
Qual é a identidade de Portugal nesta nova Europa? O que acontece com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) – tanto as suas ideias como aquilo que representa – quando os orçamentos estão a ser cortados por ordenação do FMI?
Seguindo a ideia de governamentalidade, tal como foi articulada por Foucault (1977-1984) e aplicada à prática etnomusicológica por Guilbault (1997), proponho abordar a lusofonia como um exemplo de governação cultural que promove uma comunidade transnacional. O conceito pode ser visto como uma gestão da identidade do espaço lusófono. De que modo o conceito de lusofonia afecta o discurso em três níveis distintos (institucional, associativo e individual – cf. mais abaixo), e o que isto nos indica sobre o espaço cultural lusófono?
Utilizando um quadro teórico que articula as maneiras através das quais as relações de poder enformam a produção cultural, pretendo analisar como conceitos mediam práticas sociais, performance e identidades culturais, e como a construção discursiva dos campos musicais e culturais é usada para ter ou exercer poder.
A minha perspectiva é baseada em perspectivas de etnomusicólogos e de outros cientistas sociais (Arenas 2011, Guilbault 2007, Lopes 2008, Stokes 2007, Turino 2003) que, num contexto global de diáspora e transnacionalismo, entendem que certos grupos podem estar envolvidos em termos de sistemas culturais que se articulam linguisticamente, em vez de geograficamente. Esta premissa encaixa-se en perspectivas teóricas da etnomusicologia, que visam abordar a música popular como um lugar privilegiado para a exploração da identidade e cultura nacional (Arenas, 2011:46). Tal como está reflectido na publicação recente, Música e Migrações (ACIDI, 2010:11), a análise etnomusicológica também revela estratégias de inclusão, adaptação, integração e aceitação socialmente justificada por parte de movimentos populacionais.
O presente artigo incidirá sobre (alguns) músicos migrantes ‘lusófonos’ em Lisboa. Qual é a sua história cultural recente nesta cidade? E como é que eles valorizam o conceito de lusofonia?
De modo a contextualizar o assunto central deste texto, irei primeiro estabelecer uma definição e crítica do conceito de lusofonia, indicando posteriormente as abordagens teóricas usadas e a metodologia empregue. Em seguida, oferecerei um breve relato sócio-cultural dos músicos migrantes de língua portuguesa em Lisboa, desde a década de 1960 até ao presente.
Todas as traduções do inglês para o português são minhas. Entretanto, o texto foi revisado por Pedro Roxo, Vanessa Carmina Bueno e dois revisores anónimos.
Definição e crítica
Lusofonia é um conceito relativamente recente, que tem sido cada vez mais difundido desde a década de 1990. Baseia-se numa definição linguística, mas também designa um espaço político, económico e cultural. Se bem que as suas raízes históricas podem ser encontradas no colonialismo português, o significado contemporâneo do conceito advém também das negociações em torno do Acordo Ortográfico, adquirindo um novo significado com a migração crescente a partir do ex-colônias portuguesas, principalmente de África para Lisboa, desde 1974. A criação da CPLP (1996), a realização de eventos internacionais tais como a Expo ‘98, a actividade da indústria transnacional da música, bem como o advento da Internet (tanto informação como redes sociais), foram factores que contribuíram também para ampliar a percepção de lusofonia muito além de um âmbito estritamente linguístico.
Desde então, o conceito de lusofonia tem cada vez mais enformado as relações internacionais de Portugal (sobretudo a partir da sua capital, Lisboa). Muitas instituições governamentais e municipais, associações voluntárias, académicos, empresários culturais, músicos e jornalistas, evocam o conceito explicitamente nos seus objectivos. A CPLP, tem-se constituído como um actor fundamental na institucionalização da lusofonia, mantendo a sua sede em Lisboa. Além disso, instituições governamentais, económicas, académicas, jurídicas e desportivas que envolvem outros países ou regiões de língua portuguesa, tomam Lisboa como ponto de referência e muitas vezes usam o conceito de lusofonia. Esta tendência é também comum a algumas associações voluntárias, como é o caso da Associação Sons da Lusofonia (1996), e do projecto ‘Lusofonias: Culturas em Comunidade’ (2008)3, da Associação Etnia. Finalmente, Lisboa constitui um palco privilegiado para encontros entre músicos portugueses, músicos migrantes residentes e músicos de outros países de língua portuguesa em digressão, como torna claro o documentário Lusofonia, a (R)evolução (2006).4
O conceito de lusofonia combina dois elementos linguísticos que compõem a palavra: luso / fonia /. ‘Luso’ deriva de ‘Lusitano’, o habitante da ‘Lusitânia’, a designação da província romana, incluindo o território Português ao sul do rio Douro e parte da Espanha (Extremadura e uma parte da província de Salamanca); ‘fonia’ denota uma população que fala uma língua específica. No entanto, o uso do conceito de lusofonia implica um significado mais amplo, mais diversificado do que o conceito linguístico correspondente, incluindo igualmente a política, a economia e a cultura (cf. Cristóvão, 2005:652; Ciancio, 2009:3).
A CPLP reúne mais de 223 milhões de falantes de língua portuguesa em oito países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Uma característica única da CPLP é que os seus estados membros estão ligados por uma língua comum e compartilham elementos culturais, o que cria pontes entre estes países que são separados por grandes distâncias geográficas. Em 2005, numa reunião em Luanda, a CPLP escolheu o dia 5 de Maio para comemorar anualmente o Dia da Cultura Lusófona. Desde 2008, a Semana Cultural da CPLP tem sido realizado em Lisboa em torno desta data.
A língua portuguesa pode então ser considerada o elemento fulcral que fomenta o conceito de lusofonia. Serve como uma metáfora de unificação. Neste sentido, lusofonia pode ser comparado com francofonia. A Organisation internationale de la Francophonie (IOF), criada em 1970, incorpora 70 estados membros e governos, que representam uma população de mais de 870 milhões de pessoas, incluindo 200 milhões de falantes nativos de francês. Aspectos culturais associados à francofonia são comemorados anualmente no dia 20 de Março, durante a Journée Internationale de la Francophonie (desde 1998). A IOF tem também estabelecido um diálogo permanente com as principais zonas linguísticas internacionais (inglês, português, espanhol, e de língua árabe).
A designação linguística ‘lusófono’ deve então ser relativizada, tendo em conta o facto de que o português, embora seja a língua ‘oficial’, co-existe com outros idiomas em espaços nacionais e regionais que são bilingues ou multilingues (cf. Arenas, 2005:np; Rito & Martins, 2004). Em suma, alianças transnacionais com base na língua têm validades diferentes nestas áreas. Alternativamente, o uso do português está a expandir-se nos PALOP através da rádio nacional e internacional, da televisão via satélite, da comunicação escrita, e por meio do sistema de ensino, “como um veículo de mobilidade social” (ibid.). O Brasil continua a ser o principal promotor da língua portuguesa, com 200 milhões de falantes, tendo inaugurado em Março de 2006 o Museu da Língua Portuguesa, na cidade de São Paulo. Além disso, alguns preconceitos referentes a sotaques que são diferentes do português europeu persistem, colocando o Brasil e os PALOP numa posição ambígua.
Mesmo assim, a língua portuguesa claramente passou a ser um veículo privilegiado de comunicação supranacional em vez de nacional: “usar a palavra ‘luso’, em vez de ‘português’, já é uma forma de ultrapassar o nacionalismo e entrar no domínio do mítico e do simbólico” (Cristóvão, 2005:652). A escolha da palavra ‘luso’, no entanto, pode facilmente ser alvo de críticas quando perspectivada através da lente democrática e transnacional de Arenas (2011), que argumenta que Portugal, mesmo apesar de fornecer a matriz linguística original da lusofonia, deve abandonar pretensões de ser o centro e em vez disso reconhecer e promover uma multipolaridade. Neste sentido, Martins (2006:2337) concebe a lusofonia como um novo modelo geopolítico reticular: “que já é, porque começou num passado distante, e tornou-se património” (ibid.). Defenderei também que este pode ser o procedimento adequado para as culturas da lusofonia.
Lusofonia então parece ser uma classificação prática que está subordinada a diversas funções para produzir efeitos sociais desejados. A sua força, em parte, decorre do facto de que a figura de lusofonia não é muito diferente da realidade social das distintas comunidades nacionais onde esta identidade simbólica é processada (cf. Martins, 2006). Parece também verdade que a lusofonia implica uma linha de defesa, ligada a várias actividades do sector económico, “cuja primeira característica é a ‘firmeza da vontade nacional portuguesa’” (Dias, 2009:6-7).
De acordo com esta constatação, podemos definir lusofonia como um contexto conceptual de discursos negociados. Concordo com Dias (ibid.) que o considera não apenas uma descrição duma comunidade de língua e história colonial compartilhada, mas também uma evocação de Portugal como uma nação histórica junta do imaginário que envolve as suas relações globais. A universalidade do conceito de lusofonia é questionável, uma vez que é compartilhado colectiva mas variadamente por indivíduos e grupos de elite nas esferas políticas, culturais, artísticas e académicas nos países envolvidos (sobretudo nas suas capitais) (cf. Lopes, 2008: sp). O facto da categoria de lusofonia ser empregue duma forma descontextualizada, e numa pluralidade de situações, torna-a “simbolicamente perigosa, como uma geradora dum sentimento nacional multicultural imperialista em comum” (Dias, 2009:7).
Uma crítica da lusofonia, portanto, é imprescindível, e deve ser entendida como “um primeiro passo para a renovação da representação cultural e identitária portuguesa” (ibid., cf. Madureira, 2006 e Fernandes Dias, 2006). Como aponta Dias em relação a algumas exposições de arte curatoriais que incluem artistas do mundo ‘lusófono’, é exactamente a relação entre um contra-discurso e uma crítica da ideia de nação e história, que deve enformar uma crítica da lusofonia. Podemos igualmente pensar em eventos musicais e culturais em Lisboa, como Lisboa Mistura, Festival ImigrARTE e África Festival que, conscientemente ou não, alcançam uma perspectiva crítica, desenvolvendo alternativas ou oposições à ideia oficial de lusofonia, tal como a autonomia cultural brasileira no exterior ou a ‘Africanidade’.
Abordagens teóricas e metodologia
A compreensão do processo de categorização cultural e musical é essencial para a interpretação do conceito de lusofonia e os seus usos. A categorização, como processo social, enforma a experiência musical. Categorias sociais são “etiquetas aplicadas à cultura expressiva socialmente construídas através do discurso” (Sparling, 2008:409). Estas etiquetas são constantemente (re)definidas e manipuladas em contextos particulares para fins específicos (cf. Guest-Scott, 2008:454).
Tento entender estas dinâmicas sociais e transformações culturais, utilizando a etnografia da performance musical como ferramenta metodológica. A música proporciona um meio através do qual o espaço social pode ser transformado. A performance cultural é uma forma de comportamento profundamente discursiva, utilizada por vários tipos de agentes culturais para compreender, criticar e até mesmo mudar o mundo em que vivem. As biografias de migrantes pós-coloniais são ferramentas importantes na construção duma etnografia urbana, constituindo assim uma alternativa para o conceito de cultura global ao estudar os processos transnacionais, culturais e musicais (cf. Turino, 2003:52). O foco de análise em vivências pessoais é especialmente importante para lidar com ideias, produtos, práticas e processos que estão geograficamente difusos (ibid.). Por meio de entrevistas etnográficas e observação participante, podem ser mapeados tanto discursos sócio-culturais de maior dimensão como agências individuais. Estas histórias de vida também são úteis para elaborar políticas culturais através da música.
A cidade de Lisboa constitui o ponto de convergência pós-colonial para a minha etnografia. Historicamente falando, a importância da cidade no pensamento sobre o estado-nação, cosmopolitismo e migração é inegável. Como enfatiza Bohlman (2004:xxiii), “não é por acidente histórico que os historiadores começam as discussões da história da Europa com a ‘cidade-estado’ e terminam com o ‘estado-nação’”. De fato: a capital consolida a nação; fornece as condições geográficas que possibilitam uma mistura cultural extensa; e apoia as instituições fulcrais para o Estado, mesmo requerendo a constante recolha de migrantes. Neste sentido, colonialismo e expansão imperial foram exportados a partir de Lisboa, mas foram depois novamente importados na forma de migrantes pós-coloniais e alianças transnacionais, tais como a CPLP. Como argumenta Stokes (2007:13), a situação pós-colonial constitui um importante domínio de tradução musical, circulando sons das ‘periferias coloniais’ através da metrópole colonial, estruturada por ‘campos (neo-)coloniais de poder’ (ibid.), passando de periferias para centros e de lá para outras periferias.
Isto conduz-me à noção de governamentalidade, o conceito usado como ramo de análise principal para o meu projecto. A ideia original de Foucault foi aplicada à prática musical por Guilbault no seu livro Governing Sound (1997). No mesmo sentido, proponho abordar lusofonia como a gestão (neo-liberal) da identidade no espaço transcultural lusófono5. Na minha opinião, esta gestão de conduta não se refere exclusivamente à política cultural institucional a nível macro, mas também implica agenciamentos individuais a nível micro, bem os espaços entre ambos os níveis.
De modo geral, governamentalidade pode ser entendida como o modo através do qual os governos tentam produzir indivíduos/cidadãos que se mantenham sob a alçada da sua acção política, e as práticas organizadas através das quais os sujeitos são governados. Uma explicação mais complexa e específica do conceito é “o conjunto formado pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e tácticas que permitem exercer esta forma de poder muito específica se bem que complexa, que tem a economia política como a sua principal forma de conhecimento” (Lemke, 2000:sp). Quero aplicar o conceito de governamentalidade à lusofonia, a fim de analisar e criticar políticas culturais contemporâneas neo-liberais, exemplificadas nas práticas que a lusofonia parece englobar. O conceito de governamentalidade pode, assim, ajudar a identificar o carácter estratégico de governação. Na sua aplicação à prática musical (Guilbault, 2007), agências individuais e coletivas são questionadas no âmbito das ‘mitologias’ (ibid.) do estado-nação.
Um último elemento teórico relevante a considerar, é a questão do afecto, ou seja, de que modo as decisões económicas influenciam afinidades afectivas que são vivenciadas através da cultura. Especificamente para a análise da performance musical, sigo a abordagem semiótica de Grossberg (1992), que distingue três níveis: práticas culturais, relações de significado, e afecto. Afecto implica aspectos de ‘pertença’: indivíduos costumam dar prioridade às práticas nas quais têm investido mais. Empresários culturais e fabricantes de ideias [idea-makers] (cf. Even-Zohar, 2004) têm um importante papel orientador nesta construção de pertença.
A noção de ‘fortalecimento afectivo’ é verificável em vários níveis na minha abordagem discursiva da lusofonia. Neste sentido, Monteiro (2008), discutindo o tráfego cultural simbólico entre Portugal e o Brasil, afirma que esta circulação é “sempre mediada pela história das relações políticas, económicas, culturais e - acima de tudo - afectivas, que têm configurado as maneiras por meio das quais ambos os países têm construído as suas narrativas de identidade” (ibid., itálico meu). Estas preferências culturais estão inscritas numa construção contextual de sentido e de valor que é socialmente codificada por fluxos de capital simbólico, trazidos por meio de discursos e de práticas específicas. Porém, parece questionável se isto também se aplica a outros países que participam na esfera de interesse da língua portuguesa.
A prática de músicos migrantes dos países da CPLP em Lisboa
Desde a década de 1960, tem-se verificado uma tendência cada vez mais evidente de colaboração entre músicos portugueses e de músicos oriundos dos PALOP. Esta propensão tem-se manifestado especialmente no domínio da música popular portuguesa (Castelo-Branco e Cidra, 2010:875-8), da canção de intervenção (Côrte-Real, 2010:220-8) e entre intérpretes e compositores com ligações biográficas aos PALOP, tais como José Afonso (Angola e Moçambique), Fausto (Angola) e, mais tarde, João Afonso (Moçambique) (cf. Cidra, 2010:196-7 e 773-4).
Na década de 1960, Lisboa serviu, por um lado, como ponto de convergência para a articulação de sentimentos anti-coloniais por parte de migrantes, sejam eles intelectuais, músicos, estudantes, atletas ou activistas. Por outro, o contexto alienígena também estimulou práticas de performance original a fim de representar novas identidades migratórias. Os contextos de performance e estética musical destes migrantes metropolitanos entraram assim em oposição ao discurso político português e às práticas que promoveram a ideia de ‘Portugalidade’ para melhor exercer o controle do império colonial. Esta fricção em grande parte continuou após a revolução portuguesa (1974) e as respectivas independências dos PALOP (1975), causando fluxos de migração em massa para Portugal, envolvendo tanto os ‘retornados’ como os africanos nativos.
Fluxos migratórios entre países com uma língua ou história em comum, tal como as ex-colônias e a metrópole portuguesa correspondente, tendem a ser frequentes no mundo (Cristóvão, 2005:705). Além dos cabo-verdianos, numericamente predominantes devido à sua tradição migratória histórica relacionada com as secas nas ilhas, os cidadãos de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique também migraram para Portugal na sequência de contextos políticos instáveis e de guerra civil nos seus países de origem. A partir da década de 1980, com consequente aumento nas décadas de 1990 e 2000, a imigração brasileira – significativa dada a dimensão do país de origem – estimulou ainda mais uma perspectiva ‘lusófona’ em Portugal.
A partir da década de 1960, o conceito alargado de lusofonia enformou de um modo crescente vários projectos de música em Lisboa. Os cabo-verdianos – a comunidade migrante com maior visibilidade histórica – funcionaram de certa forma como protagonistas dos PALOP em Lisboa. Tal constatação emana do papel pioneiro dos seus músicos migrantes residentes, como Dany Silva, Tito Paris, Bana e Celina Pereira. Locais de música popular e dança ao vivo, como B. Leza, Lontra, Bana e Ritz, foram decisivos para fomentar contactos regulares entre os migrantes africanos de língua portuguesa em Lisboa. Como aponta Cidra (2010:789), B. Leza utilizou inclusivamente o conceito de lusofonia na estruturação da sua programação, apresentando colaborações entre músicos portugueses e músicos migrantes de Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, perante um público misto de europeus e africanos. Os músicos cabo-verdianos que, em diferentes fases desde a década de 1970 até a década de 1990 formaram o núcleo de B. Leza, foram fundamentais no desenvolvimento de músicos migrantes dos PALOP em Portugal. No entanto, como a maior parte dos músicos migrantes não tinha acesso a estúdios de gravação ou a editoras portuguesas, estes processos ocorreram em larga medida sem um quadro de apoio institucional ou comercial. Assim, a actividade musical de músicos migrantes dos PALOP em Portugal, restringiu-se às performances ao vivo promovidas através de redes sociais, em discotecas com música gravada, salões de dança e restaurantes.
Talvez por isso, alguns músicos migrantes dos PALOP tenham comercializado o seu trabalho noutras capitais europeias, como Paris, Amesterdão e Berlim. Actualmente, a maioria destes músicos continua a não publicar as suas músicas recorrendo à indústria fonográfica portuguesa. Por exemplo, Lura, Cesária Évora e Bonga gravam discos com a Lusáfrica (Paris); Waldemar Bastos, Sara Tavares, Mariza e Tito Paris com a World Connection (Amesterdão), Mayra Andrade com a Sony Music France (Paris), e Celina Pereira com Piranha Music (Berlim). Paradoxalmente, este ramo discográfico transnacional estimulou o reconhecimento e a visibilidade dos músicos migrantes dos PALOP em Portugal, ligando assim Lisboa com outros centros migratórios de grupos da diáspora oriundos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, tanto na Europa e EUA, como nos países de origem (cf. Cidra, 2010:789).
Curiosamente, a perspectiva dos músicos migrantes brasileiros em Lisboa foi marcadamente diferente dos seus colegas dos PALOP. Historicamente, as relações entre Portugal e Brasil foram largamente bi-direccionais, tanto em termos de migração como de expansão da rádio, gravações e shows (ibid.:178, 773-4, 782-3). Assim, a divulgação contínua de músicas brasileiras em Portugal, contrastando com a visibilidade menor de música portuguesa no Brasil, pode originar da discrepância contextual entre a indústria fonográfica dos dois países. Isto resultou numa dominação contínua de sons brasileiros, ideologicamente associados ao conceito de lusofonia, tanto em Portugal como no estrangeiro.
Ao mesmo tempo que a música dos PALOP se constituiu transnacionalmente como parte do circuito da world music, o conceito emergente de lusofonia gradualmente absorveu significados políticos e institucionais (cf. ibid.:179). Sob esta crescente internacionalização, as instituições políticas e dinamizadores culturais em Lisboa começaram a interessar-se em promover a interação entre músicos portugueses e os seus colegas lusófonos. Inicialmente, tais colaborações incluíram sobretudo músicos migrantes dos PALOP a tocar em Portugal nas áreas de jazz e música popular portuguesa (ibid.). Isto ficou exemplificado em Sons da Fala (1994) - um festival na Galiza que, na sua primeira edição, apresentou nove cantores lusófonos6 (e nove músicos acompanhantes), nascidos nos PALOP ou em Portugal, com várias colaborações no palco – além da Orquestra Sons da Lusofonia (1995), fundada e dirigida pelo saxofonista de jazz Carlos Martins em Lisboa. Estes actores associativos intensificaram o diálogo entre os músicos portugueses e migrantes dos PALOP, com visibilidade numa série de ocasiões oficiais. No entanto, é importante ressalvar que os músicos brasileiros figuraram pouco em qualquer um destes projectos.
A Expo ‘98 incitaria ainda mais o interesse nos músicos migrantes provenientes dos PALOP a viver em Lisboa. O tema geral da Expo ‘98, ‘Os Oceanos, um Património para o Futuro’, teve como objectivo reconectar de maneira discursiva as teias transculturais que resultaram de 500 anos de intercâmbio intercultural entre Portugal e as regiões com as quais se aproximou na África, na Ásia e nas Américas. Como aponta Cidra (2010: 179), esta “alusão discursiva” à expansão marítima de Portugal, bem como às marcas culturais que globalmente imprimiu, resultou numa programação de acordo com o “novo conceito político” de lusofonia marcada pelo aspecto singular da internacionalização da cultura portuguesa (Santos, 1999:132-3). Com efeito, todos os países pertencentes ao espaço lusófono estavam presentes, incluindo a CPLP, com uma programação própria. Isso é exemplificado a partir do número total de 170 sessões na Expo ‘98, que foram da responsabilidade de países e regiões de língua portuguesa, bem como dos países membros da CPLP (Brasil, 60; Angola, 23; Moçambique, 21; Timor Leste, 19; Cabo Verde, 18; Macau, 10; São Tomé e Príncipe, 9; Guiné-Bissau, 5; a organização CPLP enquanto tal, 5).
O Brasil foi o país de língua portuguesa que foi mais representado musicalmente na Expo ‘98. Porém, a participação musical brasileira em projectos evocando ou pronunciando a noção de lusofonia, envolveu mais os músicos brasileiros em digressão internacional do que os próprios músicos migrantes residentes na Lisboa.
Além de oferecer concertos de músicos brasileiros com maior popularidade em Portugal (ainda que não-residentes em Portugal), o evento também contou com colaborações que incluíram músicos de outras nações de língua portuguesa (desta vez envolvendo músicos das comunidades locais). O projecto especial ‘Sem Legendas’ desafiou quatro músicos de renome internacional para criarem colaborações sem precedentes, utilizando o conceito de lusofonia como referência. Incluiu Caetano Veloso (com Paulinho Vieira e Pedro Abrunhosa); Sadao Watanabe (com Toquinho, Ala dos Namorados e Makamba N’Goma), Cesária Évora (com Marisa Monte, Dulce Pontes e Finka Pé), e David Byrne (com Balanescu Quartet, Tom Zé e Waldemar Bastos). Outros músicos dos PALOP (Lura, Bonga, Filipe Mukenga, Netos do N’Gumbé, General D, Simenter), Portugal (António Chainho, Mísia, Madredeus, Né Ladeiras) e Brasil (Maria Bethânia, Chico César) também actuaram em conjunto (Santos, 1999:92-4; Cidra, 2010: 178).
A Expo ‘98 foi, portanto, um evento internacional importante em reunir músicos de diferentes partes do mundo lusófono. Colaborações inéditas entre músicos portugueses e de outros países de língua portuguesa foram programadas, reunindo as comunidades da diáspora lusófona em Lisboa com artistas oriundos dos países de origem das referidas comunidades. Estas colaborações musicais não só enfatizaram a ideia de lusofonia para um público internacional, como também ligaram o conceito explicitamente à cidade de Lisboa (Santos, 1999:92-4, 112-3; Cidra, 2010:789).
Depois da Expo ‘98, vários festivais centrados no conceito de lusofonia foram organizados especialmente em Lisboa, mas também em capitais de distrito, em outros capitais (estaduais) de língua portuguesa (especialmente no Brasil), e em regiões específicas (Galiza, Macau). Estes eventos foram organizados por instituições governamentais, associações voluntárias e empresários culturais, promovendo explicitamente a ideia de lusofonia. Além disso, a influência destes festivais na opinião pública tem sido considerável, dadas as suas audiências e regularidades, criando assim um público familiarizado com músicas que são promovidas como ‘lusófonas’. Como exemplos mais recentes desta tendência, podemos apontar os festivais ‘Nossa Língua, Nossa Música’7 em 2010, em Brasília, organizado pelo Centro Cultural Banco do Brasil; a ‘Semana Cultural da CPLP’8 (3ª edição 2010)9, em Lisboa; as edições anuais de Cantos na Maré - Festival Internacional de Lusofonia10 (desde 2003), na Galiza; bem como a Festival da Lusofonia, em Macau11 (24ª edição 2010).
Estudo de caso e resultado
A minha análise do documentário Lusofonia, a (r)evolução (Red Bull Music Academy - Portugal, 2006) - desenvolvida durante a etnografia para minha tese de mestrado (2009-10) - apontou que o mesmo incorpora a ideia de lusofonia de maneira ideológica. Lusofonia, a (r)evolução constrói uma narrativa que sugere que os sons ‘lusófonos’ podem ter evoluído, mas ainda têm uma pertença em conjunto. O documentário promove híbridos musicais e multiculturalismo a fim de revalorizar uma noção histórica de lusofonia. Na tentativa de aumentar a visibilidade dos músicos e as oportunidades profissionais em Portugal, Lusofonia, a (r)evolução, mostra maioritariamente músicos estabelecidos no contexto da indústria fonográfica. Enquanto isso, as dinâmicas musicais e as transformações sociais dos contextos migratórios de base são em grande parte omitidas.
A minha investigação de mestrado colocava a hipótese de que uma representação do conceito de lusofonia em Lisboa poderia ser enriquecida com a inclusão de músicos migrantes residentes em países de língua portuguesa, os quais actuam no circuito de bares, restaurantes e associações. Para verificar a minha hipótese, realizei uma etnografia extensa na Área Metropolitana de Lisboa. O meu campo de pesquisa incluiu performances colectivas anunciadas através dos média (p.ex.: festivais modestos ou performances com venda de bilhetes); performances individuais em restaurantes e bares, e performances resultantes da iniciativa de associações voluntárias ou instituições oficiais, sendo a maioria realizadas em espaços públicos. Também levei a cabo entrevistas etnográficas e observação participante com uma selecção de músicos migrantes de países de língua portuguesa, propondo questões sobre lusofonia, língua e música, bem como o contexto performativo das músicas (‘lusófonas’) em Lisboa. Comecei cada entrevista com perguntas abertas, apenas discutindo conceitos (como lusofonia) ou categorias (tais como músicas lusófonas), numa fase avançada da entrevista e sempre que estas denominações não foram empregues pelo entrevistado carregadas de um sentido pessoal.
Tendo em vista a dimensão transnacional de lusofonia que implica diferentes países de língua portuguesa (que funciona como ponto de partida de muitos músicos migrantes em Lisboa), um primeiro critério de seleção dos entrevistados foi a nacionalidade. Em segundo lugar, agrupei certos músicos – todos cantores-compositores que em grande parte actuam fora do circuito comercial, tal como emanou dos seus discursos. Em terceiro lugar, todos os entrevistados são migrantes de primeira geração, mantendo fortes conexões (físicas e/ou emocionais) com os seus países de origem.
Os contactos surgiram naturalmente, seja por meio de pesquisas realizadas no âmbito do INET-MD12, ou através de referências cruzadas pelos músicos já entrevistados. Os principais músicos entrevistados foram: Aldo Milá (Angola), Guto Pires (Guiné-Bissau), Jefferson Negreiros (Brasil), Tonecas (São Tomé e Príncipe), José Amaral (Timor Leste), Zézé Barbosa (Cabo Verde) e Costa Neto (Moçambique).13
A experiência individual de cada um destes sete cantores-compositores está relacionada directamente com a minha problemática. Com base nas suas histórias e perspectivas de vida, fui capaz de tratar temas específicos relacionados com as principais perguntas da minha pesquisa. A minha etnografia alimentou directamente uma compreensão crítica e relacional do conceito de lusofonia para músicos de países de língua portuguesa, migrantes ou residentes, em diferentes níveis dentro do espaço de Lisboa. Em particular, explorei as maneiras pelas quais os músicos de diferentes países de língua portuguesa conceptualizam a noção de lusofonia, e como este conceito poderia afectar o seu trabalho, as possibilidades de representá-lo através da performance, os seus relacionamentos com outros músicos, com instituições e com associações portuguesas.
A partir da referida pesquisa etnográfica, tornou-se claro que cada um dos músicos entrevistados procura apresentar a música que conhece do seu próprio país, e que não se identifica com a noção de ‘músico lusófono’. Lusofonia é um termo político que actualmente parece ter pouca relevância prática para os músicos baseados em Lisboa, nomeadamente para a sua prática performativa. O termo (ainda) não afecta a sua relação com outros músicos, com instituições portuguesas ou supranacionais, e com os seus próprios processos criativos. Músicos que se enquadram nestes processos não utilizam activamente o termo lusofonia. Além disso, consideram a denominação ‘músicas lusófonas’ como problemática, uma vez que para eles isto envolve questões de dominação cultural e linguística.
Especificamente para os músicos dos PALOP, a ligação linguística problematiza uma definição rígida do o que é ‘música lusófona’, uma denominação que nem todos utilizam de maneira émica. Aldo Milá ressalta que as línguas e dialectos africanos constituem “o suporte cultural local, isto quer dizer, em que a língua é praticamente um instrumento da memória cultural específico desses povos” (Entrevista, 27/11 e 4/12/2009). “O facto do português ser uma língua de unidade nacional ao nível do pensamento público não significa que temos que omitir toda a expressividade estética-cultural nas línguas dos respectivos povos ou vários grupos étnicos desses povos,” argumenta (ibid.) Esta suposição aliás está na raiz da sua crítica ao termo ‘música lusófona’: “O que é música lusófona? É a música dos países africanos de língua portuguesa, mais as suas línguas locais; ou é só a música dos países de língua oficial portuguesa simplesmente em português? O que eu tenho verificado, é quando se trata de ‘mais as línguas locais’, este lado está em dificuldade” (ibid.).
Quando questionado sobre a utilidade da língua portuguesa, a maioria dos entrevistados aponta para uma ambiguidade identitária: é tanto o idioma do antigo opressor, como é a língua da revolução, da independência e da unidade nacional. Costa Neto afirma que “primeiro, assumir a língua portuguesa como a minha também. [Ela] faz parte da nossa cultura, são mais de 500 anos com a língua portuguesa em Moçambique. Mas não posso dizer que só falo português” (Entrevista, 10/12/2009). Português também é o ponto de conexão económico, político, social e cultural entre os PALOP. Guto Pires considera que “se nós africanos deixássemos de cantar em português, já não existiria música lusófona.[…] Poderia ter crescido mais. Mas não cresceu tanto como devia.” (Entrevista, 18/12/2009).
Aldo Milá a este respeito acusa os media portugueses, tais como o canal de rádio/televisão português, RDP/RTP África, na promoção duma forma derivada da ‘música lusófona’. Ele argumenta que esta foi criada por um protótipo estruturado por alguns “especialistas” de rádio local, um acto que ele considera “um abuso de confiança da cultura africana.” (Entrevista, 27/11 e 4/12/2009). Nestas emissões, “quase 80% da música é electrónica, como aquela bateria electrónica [bate um ritmo na mesa], cantada em português. O africano precisa de ser integrado no seu próprio país, com os seus próprios instrumentos, com a sua própria cultura. Eu não me revejo nesta [RDP/RTP] África.” (ibid.).
Portugal, pelo menos no que diz respeito às percepções históricas, parece valorizar de forma diferente a sua relação com o Brasil do que com os PALOP, como também é percebido pelos entrevistados.
Os músicos entrevistados, oriundos dos PALOP, em grande parte encaram o seu trabalho como uma salvaguarda urgente e como uma (re)valorização da ‘música africana’. Costa Neto indica que “é mais urgente defender a parte tradicional da música, música africana neste caso, do que aquilo que muita gente já está a fazer. Estou a dizer: ‘olha, façam uso de mim para valorizar o património que é do mundo’, não é?” (Entrevista, 10/12/2009). Guto Pires neste sentido aponta para um preconceito relativamente às músicas africanas em Portugal: “Portugal exige automaticamente que a música seja daquela corrente de branqueamento musical. Tem que passar por fado[.] Um africano tem que branquear a música para poder passar por aqui.” (Entrevista, 18/12/2009). Pires está convencido de que isso não acontece na mesma medida nos países vizinhos.
O tratamento conferido aos músicos brasileiros em Portugal parece ser muito diferente da alegada dominação musical de músicas dos PALOP acima assinalada. No imaginário popular, é suposto que os músicos brasileiros tenham um relacionamento mais íntimo com a música portuguesa, como indicado por Jefferson Negreiros: “Fado, bossa nova: então isso é pura lusofonia. Porque a pessoa que tá aqui vai ouvir fado e vai perceber o ritmo da bossa nova. E a pessoa brasileira que vai ouvir fado vai conseguir aceitar porque tem bossa nova lá.” (Entrevista, 10/11/2009 e 2010/04/02). Todavia, devido à popularidade de determinados estilos e artistas de música brasileira, um certo número de músicos brasileiros migrantes em Lisboa têm problemas na divulgação das suas próprias composições.
De modo geral, a minha pesquisa mostra que Lisboa exibe uma interação diária cada vez maior entre músicos e músicas de língua portuguesa. Os músicos dos países de língua portuguesa tocam juntos em ensaios informais; como convidados especiais nas performances uns dos outros; em projectos especiais inspirados pelo conceito de lusofonia; ou em festivais cujos empresários culturais utilizam o conceito de lusofonia para promover músicas de países de língua portuguesa. Por outro lado, fica claro que os músicos oriundos de países de língua portuguesa consideram-se agentes culturais que utilizam a música para promover os seus valores culturais e as suas línguas indígenas, usando a cidade de Lisboa como espaço comunicativo. Como refere Costa Neto, “artistas, particularmente os músicos que eu conheço melhor, muitas vezes esquecem-se daquilo que é a sua função principal: antes de serem músicos, são agentes culturais.” (Entrevista, 10/12/2009).
Sem excepção, todos os entrevistados consideraram a cidade de Lisboa como um ponto de encontro contemporâneo para populações migrantes de países de língua portuguesa e os seus músicos: “Lisboa é à partida onde se encontram todos os músicos lusófonos. Lisboa é o centro, não do todo, mas um ponto onde se pode conseguir em pouco tempo juntar todos os músicos de países de língua portuguesa.” (Entrevista com José Amaral, 5/1/2010).
Contudo, de modo geral, o modesto reconhecimento institucional pela contribuição de músicos migrantes de língua portuguesa para com a cultura expressiva da cidade de Lisboa, traduz-se numa falta de locais para actuar ou divulgar as composições próprias. Porém, surpreendentemente, a maioria dos entrevistados sugere que o termo pode ser útil em no sentido de unir forças e na crescente visibilidade dos elementos que junta. “Falta aqui uma coisa: estamos tão ricos e não estamos hoje sendo apreciados. Pode ouvir-se muita música, bons músicos, mas eu vejo que, pelo lado cultural, a CPLP ainda precisa de muita coisa. Enquanto eu estiver por aqui, vou lutar para isso.” (Entrevista com José Amaral, 5/1/2010).
Na mesma linha de pensamento, muitos, se não mesmo todos os entrevistados, especialmente os músicos migrantes provenientes dos PALOP, encontram alguma relevância futura no conceito lusofonia. Eles apelam para instituições supranacionais como a CPLP e para os governos nacionais, tanto dos países de origem e de acolhimento, pedindo apoio estrutural para poder promover e divulgar toda a cultura expressiva de países de língua portuguesa, e indicando que as músicas migratórias destes países devem ser consideradas como parte integral da história cultural e do património de Portugal.
Além do mais, alguns entrevistados destacam ainda a importância de implementar uma noção de lusofonia na educação cultural e cívica, tanto em Portugal como nos outros países envolvidos. Portugal perde bastante se não acariciar os seus laços históricos, argumenta Costa Neto. “Repare, quem perde com isso? Acima de tudo, é o português, que sabe cada vez menos da sua própria história. A história dos países que falam português é uma parte da história de Portugal. Acho que Lisboa tem a responsabilidade de apresentar um pouco de tudo aquilo que também já faz parte da sua própria história.” (Entrevista, 10/12/2009). Ao meu ver, uma tal enunciação claramente favoresce o reconhecimento duma ligação histórica em vez dum rótulo ou discurso em torno de lusofonia. Implica que Portugal deveria patrocinar as expressões culturais transnacionais dos países em que teve uma presença histórica, e que os migrantes dos referidos países em Portugal ambicionam muito contribuir para a identidade contemporânea portuguesa. Para Portugal, esta ‘troca’ implica então a incorporaração de cantores-compositores oriundos de países ‘lusófonos’, num discurso nacional de educação cultural e cívica, e não necessariamente num discurso político de lusofonia.
Neste sentido, parece possível Portugal reconhecer a sua herança ‘lusófona’ numa posição privilegiada. Isto pressupõe uma incorporação e promoção (local e transnacional) dos músicos migrantes oriundos de países de língua portuguesa, sendo Lisboa um centro histórico e contemporâneo de coordenação, e efectuando assim um poder afectivo (pertença) para as populações correspondentes. Porém, uma tal coordenação não deveria apenas ser limitada geograficamente à Lisboa ou à Portugal, mas sim basear-se funcionalmente noutros orgãos de natureza transnacional, tais como a CPLP.
Espero que os resultados da minha pesquisa possam levar a uma melhor compreensão de como o conceito de lusofonia, e a cultura expressiva que lhe está associada, podem contribuir para a integração de migrantes num contexto multicultural. A análise da “mediação criativa da música na identidade cultural, existência migrante e experiência intercultural em Portugal e no mundo revela que a mobilidade promove o desafio de noções de cidadania e tradição nacional, significativas para o trabalho científico e político em benefício social.” (ACIDI, 2010:11.).
Referência original
Vanspauwen, Bart Paul. 2012. “A importância de implementar uma noção de lusofonia na educação cultural e cívica em Portugal, argumentado por alguns músicos oriundos de países ‘lusófonos’ em Lisboa”, in Moisés de Lemos Martins, Rosa Cabecinhas, Lurdes Macedo (eds.), Anuário Internacional de Comunicação Lusófona 2011 - Lusofonia e Cultura-Mundo. Coimbra: CECS/Grácio Editor. Pp. 67-83.
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- 1. http://www.youtube.com/watch?v=S1vfiu9qJj0
- 2. http://www.youtube.com/watch?v=P9Sp91OocJc
- 3. http://lusofonias2008.blogspot.com
- 4. http://www.youtube.com/watch?v=3hFJkc8NkmQ
- 5. Faço aqui referência à cadeira ‘Cultura expressiva no espaço transcultural lusófono’ do prof. dr. Frederick J. Moehn, oferecida na Universidade Nova de Lisboa no ano académico de 2010-11, da qual fiz parte.
- 6. Estes cantores eram Sérgio Godinho, Vitorino e Janita Salomé (Portugal), Tito Paris (Cabo Verde), Filipe Mukenga (Angola), André Cabaço (Moçambique), Guto Pires (Guiné-Bissau), Juka (São Tomé e Príncipe) e Madeira Júnior (Brasil).
- 7. O projecto incluiu colaborações entre Maria Dapaz (Brasil) e Joana Amendoeira (Portugal); Maria Dapaz e Nancy Vieira (Cabo Verde); Consuelo de Paula (Brasil) e José Amaral (Timor Leste); Consuelo de Paula e Rosa Madeira (Ilha da Madeira); Índio Cachoeira, Ricardo Vignini (Brasil) e Tonecas (São Tomé e Príncipe); Índio Cachoeira, Ricardo Vignini e Cheny Wa Gune (Moçambique); Fabiana Cozza (Brasil) e Eneida Marta (Guiné-Bissau); e Fabiana Cozza e Yami (Angola). http://www.overmundo.com.br/agenda/nossa-lingua-nossa-musica
- 8. Bonga, Rafeiros, Kilandukilu, Rafeiros (Angola); CIA Art Brasil, Raspa de Tacho (Brasil); Nicole, Nós Terra (Cabo Verde); Allatantou Dance Co, Guto Pires (Guiné-Bissau); Malimba Tradicional de Moçambique, Ancha Cutchuaio (Moçambique); Afrolatin Connection, Joana Melo, Voicemail (Portugal), Kua Tela, Tonecas, Felipe, Juka e Gapa (São Tomé e Príncipe), Bei Gua, Quarteto Musical Timorense (Timor Leste), e Irmãos Verdades. www.apel.pt/gest_cnt_upload/editor/File/PressReleaseSCCPLP.docx ; http://www.cplp.org/id-2215.aspx ; http://noticias.sapo.pt/especial/semanacplp
- 9. http://www.macaudailytimes.com.mo/macau/15942-Lusofonia-Festival-goes-la...
- 10. https://www.facebook.com/cantosnamare
- 11. http://www.iacm.gov.mo/e/activity/detail/b5f91ef3-0add-4920-be7a-dc2d00d...
- 12. Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança (INET-MD), na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) http://www.fcsh.unl.pt/inet
- 13. Observei performances destes músicos em restaurantes e bares lisboetas: Aldo Milá no Irish Pub O’Gilins, Jefferson Negreiros com Dona Canô no Onda Jazz e com Banda Toque de Classe no Cuba Libre, José Amaral na Associação Solidariedade Imigrante (SOLIM), Tonecas no restaurante Sabor ao Brasil, Costa Neto no café da FNAC Colombo, e Zézé Barbosa na Associação Caboverdiana Casa Mãe.