Memórias do colonialismo português encenadas por Hotel Europa

“Há uma forma de nos lembrarmos das coisas. Há uma forma de nos lembrarmos das coisas coletivamente…”. Assim se inicia a trilogia sobre o final do império português em África, produzida pela Companhia Hotel Europa entre 2015 e 2017. Em Portugal não é um País Pequeno (2015), Passa-Porte e Libertação (2017) André Amálio explora documentação de arquivo, textual e audiovisual, em diálogo, por vezes contrastivo, com testemunhos que o autor recolheu de pessoas que viveram aquele período histórico. Cada peça explora um dos três grandes movimentos daquele período: a colonização e os discursos que a prolongaram anacronicamente através de uma guerra (em Portugal não é um País Pequeno), a reconfiguração de identidades de quem viajou para Portugal entre 1974 e 1976 vindo das ex-colónias (em Passa-Porte), e os processos de luta pela independência (em Libertação)Três performances de reflexão crítica sobre uma época densa da história de Portugal atirada para um passado erroneamente longínquo e desconhecido.

sem título | 2018 | Ana Vidigalsem título | 2018 | Ana Vidigal
Ora, André Amálio demonstra que existe muito conhecimento produzido sobre este período histórico. Desde logo, pela sua opção em escrever estas peças como teatro documental, recorrendo a obras de ensaio histórico, de ciência política, de filosofia, de relações internacionais, sobre o colonialismo e o seu fim – uma opção que reforça o registo mais político da performance, com momentos de alguma repetição e tom pedagógico, comprometendo o texto que por vezes não acompanha a eloquência cénica. Em segundo lugar, o autor afirma a proliferação de informação sobre o fim do colonialismo através de mecanismos cénicos e narrativos que constrói com criatividade. O cenário de Libertação, por exemplo, constitui-se de pilhas de livros numa secretária, no chão, ou, mais significativo ainda, pendurados do teto sem tocar o chão, criando um efeito visual de precariedade e inacessibilidade; um conhecimento que, apesar de existir e ser omnipresente, parece inacessível pela forma como está organizado e mantido em suspenso – uma suspensão literal na peça, metafórica na realidade, nunca pousando nas mentes da memória coletiva.
Fortemente política, em confronto aberto com a dimensão onírica da nacionalidade portuguesa, a trilogia nasce das perplexidades pessoais do autor e da vontade de contextualizar a história dos seus pais, que viveram em Moçambique colonial. A dimensão individual desta criação extravasa largamente o espaço íntimo e familiar para assumir o palco de um espaço público que o autor quer confrontar e com o qual quer refletir. Este processo de diálogo entre o espaço íntimo e o público, de cruzamento entre fontes privadas (pelas histórias familiares com que cresceu e pelas entrevistas pessoais que recolheu) e públicas (pelos materiais de arquivo, produções artísticas e ensaios que leu) filtrado pela subjetividade de quem nunca viveu nas colónias, mas cresceu ladeado por memórias e narrativas desse espaço-tempo, permite-nos afirmar que esta é uma produção de pós-memória na proposta de Marianne Hirsch. Artistas que elaboram pós-memória fazem um trabalho singular de contração do espaço e tempo num movimento em que, através da sua intermediação, o passado se torna visceralmente presente. Se a memória não é uma relação de verdade com o passado, e sim uma relação de vontade (‘desire’) com esse mesmo passado, como John Frow convincentemente argumenta, a pós-memória é-o de forma muito evidente. Os seus autores não tendo vivenciado o episódio traumático passado, estabelecem, contudo, uma relação com essa ausência – por vezes obsessiva, por vezes fortuita, mas sempre inescapável – que inscreve o trauma na sua identidade.
É na busca de melhor perceberem “de onde vêm” e “quem são”, que criadores e atores de Hotel Europa questionam mitos nacionais e identificam paradoxos coloniais numa dramaturgia que cruza empatia e ironia, nostalgia e crítica, revolta e compreensão, violência e dança, individual e coletivo. Em última instância, esta trilogia complexifica a identidade nacional portuguesa, reclamando a reinscrição do epílogo das Descobertas no imaginário nacional celebrado a 10 de junho. Este movimento surge em particular em Passa-Porte que coloca a identidade nacional em diálogo com um contexto europeu igualmente pós-colonial, onde a inacessibilidade a um “passaporte europeu” é denunciada pelas experiências de populações pós-coloniais não-brancas que, assim, evidenciam as marcas de colonialidade no presente.
Em Portugal não é um País Pequeno, André Amálio conclui: “Portugal já foi chamado um país sem memória. Um país que não discute o seu passado, deixa de uma certa forma de existir”. E, por isso, Hotel Europa exorta, de forma muito veemente, os seus públicos à reflexão. São três performances com momentos, porventura, duros de assistir se a plateia vier ao teatro imersa numa memória coletiva inerte, estagnada na narrativa eufórica criada e anunciada a partir de Portugal-descobridor. Seja ou não o caso de quem nos lê, aconselhamos vivamente, este mês, no FITEI no Porto, onde Hotel Europa estará nos dias 20 e 21 de junho. A não perder!

 

Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº 648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.


por Hélia Santos
Palcos | 16 Junho 2018 | André Amálio, colonialismo, Hotel Europa, teatro