O fenómeno “Masta Tito” na música rap da Guiné-Bissau: o MC régulo ?

Enquanto manifesto cultural e político mobilizador, o rap guineense está a transformar a identidade sociocultural dos jovens, muito em particular nos centros urbanos, numa perspetiva de agentes mais dinâmicos dos processos reivindicativos e de protesto, em particular os rappers. Pela criatividade discursiva (lírico e musical) com efeitos narrativos e impactos reflexivos da representação (Martins, 2005; Pardue, em prelo) estes projetam um “eu/nós” transportando as suas experiências e as suas convicções, convertendo-se numa fórmula acessível de prática intensiva das identidades e estabelecendo assim, lógicas de autodefinição e automanutenção que garantam a subsistência ideológico-identitária sobre a relação que os indivíduos e grupos sociais estabelecem com os territórios (Martins, 2008, 35).

Indo à procura de um quadro teórico orientador dos protagonismos com altos níveis de visibilidade dos rappers guineense na última década, parte-se de três pressupostos: a) que as relações de negociação dos significados dos processos interativos e das relações sociais entre os sujeitos da situação social desencadeiam um processo inevitável da visualidade (Martins e Barros, no prelo); b) que o rap constituiu-se num instrumento político de uma juventude excluída (Andrade, 1996), c) que o rap transformou-se num manifesto que penetra no quotidiano para descrever com poesia aquilo que é aparentemente desprovido dela (Jovino, 1999).

É deste modo que o rapper guineense Masta Tito1 integra a sua intervenção musical, concorrendo para aumentar a autoestima do protesto:

cartaz do rapper Masta Tito junto estátua de Cabral, fundador da nacionalidade guineense. cartaz do rapper Masta Tito junto estátua de Cabral, fundador da nacionalidade guineense. Si bu fala dur, nha pubis tene dur / si bu fala dur, guiniensis tene dur / dur di pulisias koruptus / di militaris ki so fuguia / di pulítikus muntrusis [Se falares em dor, o meu povo tem dor / Se disseres dor, os guineenses sentem dor / Dor dos polícias corruptos / Dos militares que só sabem disparar / Dos políticos mentirosos] (Masta Tito, Dur di un Povo, registo sonoro, Bissau, 2011).

A coragem do rapper em abordar de forma crítica, desde o primeiro momento, o bloqueio de um dos programas mais importantes da estabilização da Guiné-Bissau, a reforma de defesa e segurança, com palavras de ordem:

No misti reforma na forsas armadas / ba reforma i ka pirsis konfuson [Queremos a reforma das forças armadas / Para ir para a reforma não é preciso confusão] (Masta Tito, Governantins Katchuris, registo sonoro, Bissau, 2007)

Este, explora ainda as lutas políticas para controlo dos recursos do Estado numa perspetiva patrimonial, através de caricaturas corriqueiras que as representações de um simples cidadão comum consegue reconhecer e através dela manifestar-se. Vide por exemplo as passagens no tema “hora tchiga” no qual explora as divergências entre o partido do governo (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde - PAIGC) e o principal partido da oposição (Partido da Renovação Social - PRS):

Mandatu di Guiné-Bissau i tipo skola di nhu Baron / levantou sintou, sintou levantou/ si i ka PRS i PAIGC si ka PAIGC i PRS / ora ku PAIGC na manda/ PRS na sabotea/ o PAIGC na sabótia se kabesa / ora ku PRS na manda/ PAIGC na sabótia/ na pidi so Deus pel amor, pel amor di Deus / libranu di politikus muntrusis [O mandato da Guiné-Bissau é tipo escola de Senhor Barrão / Levantou sentou, sentou levantou / Se não é o PRS é o PAIGC, se não é o PAIGC é o PRS / Quando for o PAIGC a governar / o PRS saboteia / ou o PAIGC saboteia-se a si próprio / quando for o PRS a governar / PAIGC saboteia / Só peço a Deus por amor por amor de Deus / Livra-nos dos políticos mentirosos] (Masta Tito feat Vladimir, Ora Tchiga, registo sonoro, Bissau, 2011)

E depois, denuncia o conflito entre o falecido Presidente da República, Malam Bacai Sanhá (MAMBAS) e o então Primeiro-Ministro, Carlos Gomes Jr., ambos pertencentes ao mesmo partido, e na altura do lançamento da música, ambos estavam no exercício, re-utilizando o slogan da campanha que levou a eleição do presidente:

No na lestu di diskisi nunde ku no da tapada i nunde ku no kai / (…) Mambas falanuba kuma ora tchiga / gosi propi ku ora tchiga pa presidenti ku purmeru ministru kume na mesmu kabasa / (…) ora tchiga pa militaris para kume e farta e ba randja malkriadesa [Esquecemos depressa onde tropeçámos e onde é que caímos / (…) Mambas dizia-nos que chegou a hora / Agora é que chegou mesmo a hora de o presidente e o primeiro-ministro comerem no mesmo prato / (…) Chegou a hora de os militares comerem até se fartar e de cometerem desmandos] (Masta Tito, Ora Tchiga, registo sonoro, Bissau, 2011) 

Na verdade, não foi apenas o estilo musical do rapper que contribuiu para a sua popularidade, mas sobretudo pelas perseguições que foi alvo por parte dos militares que controlam o poder político, chegando a ter concertos sucessivamente suspensos horas antes do seu início:

É músika na bai dedikadu pa tudu tropas maus… / Ke ku na medi jeneral? / tropas ka dudu pa matanu anós tudu / (…) es tropas ku sobritudu i falsu [Esta música é dedicada a todos os militares maus… / De quê tem medo o general? / Os militares não são doidos para matar-nos a todos / (…) estes militares que são sobretudo falsos] (Masta Tito, Ke Ku Na Medi, registo sonoro, Bissau, 2007)

Aproveitando dessas situações, Masta Tito foi aumentando o seu repertório com mensagens de coragem e de produção de autoestima, como se nota no tema “fosa”:

Si n medi, na muri / si n ka medi na muri / mindjor n ka medi, n muri i n diskansa / Masta Tito i régulu / régulu ka nunka medi / ami ki dunu di tchon / ami ku tene tera/ ami ku ta manda na pulítikus, pulísias ku militaris… tudu djintis / kin ku iara nha dedu dentru di si kuku di udju / pa n kontal bardadi [Se tiver medo, morro / Se não tiver medo, morro / Melhor não ter medo, morrer e descansar / Masta Tito é régulo / Régulo nunca tem medo / Eu é que sou dono do chão / Eu é que tenho a terra / Eu é que mando nos políticos, nos polícias e nos militares… em toda a gente / A quem se comportar mal, enfio-lhe o dedo nos olhos / Para lhe dizer a verdade] (Masta Tito feat NB, Fosa, registo sonoro, Bissau, 2010).

Público em fila para acesso ao concerto do Masta Tito no espaço Lenox, Bissau, Setembro de 2012. Público em fila para acesso ao concerto do Masta Tito no espaço Lenox, Bissau, Setembro de 2012.

Um outro elemento importante nas narrativas do Masta Tito é a sua aproximação e procura de cumplicidades junto ao público, como faz notar aqui nos temas “fidju botadu” e “n`ka na medi”:

Ami i rasa kaseke/N’ ka ta medi iagu kinti/E na buskan pa pudi panhan/I pa kalantan/Ami n’ disidi muri/Ma pa tudu mininus ten futuru! [Eu sou como o peixe seco/Não tenho medo da água quente/Andam à minha procura para me apanhar/E me fazer calar/Eu decidi morrer/Mas para que todas as crianças tenham futuro!] (Masta Tito, Fidju Botadu, registo sonoro, Bissau, 2007)

No ka na medi (…) / no karmusa no kansa / gosi i pa kada kin mara si kalsa / anós tudu i guiniensi / (…) bo gosta ó bo ka gosta n ka na para kanta pa nha povu [Nós não temos medo / Cansámo-nos de nos pavonear / Agora que cada um amarre as calças / Somos todos guineenses / (…) Gostarem ou não gostarem, não vou parar de cantar para o meu povo] (Masta Tito, Nka Na Medi, registo sonoro, Bissau, 2012)

Numa entrevista realizada à Rádio Voz da América2, o rapper e intervencionista diz sentir-se “realizado, porquanto muitos consideram-no o porta-voz da maioria da população guineense” e afirma ainda que a sua popularidade advém do fato de expressar a verdade “só digo a verdade”.

Com efeito, esta condição e auto-representação antes inquestionável, foi posta em causa no seio da comunidade rap guineense, em particular junto dos pares, na medida que o Masta Tito esteve implicado nas atividades da campanha eleitoral às eleições presidenciais de 2012, produzindo uma música apelando ao voto a este e participando nos comícios.

Anos i di Nhamadjo / (…) viva Nhamadjo / omi balenti / anós tudu no kontenti manera ku sta presenti / omi di paz / omi capaz/ Nhamadjo i AS / omi santu / (…) Nhamadjo ka susus / omi limpu pus / suma si pensamentu / pa Guiné mela tchut / (…) povo kudji paz / Nhamadjo  bin ku paz / Nhamadjo i capaz/ povu misti paz /povu di Guiné no vota na Nhamadjo [Nós somos do Nhamadjo / (…) Viva Nhamadjo / Homem valente / Todos estamos contentes de ele estar presente / Homem de paz / Homem capaz / Nhamadjo é um ás / Homem santo / (…) Nhamadjo não é sujo / É limpo demais / Como o seu pensamento / Para que a Guiné seja só mel / (…) O povo escolheu a paz / Nhamadjo trouxe a paz / Nhamadjo é capaz / O povo quer paz / Povo da Guiné, votemos no Nhamadjo] (Masta Tito, Serifo Nheme Adjo, registo sonoro, Bissau, 2012)

Para muitos rappers, esta ação pôs em causa a condição de “régulo”, na medida que contraria os princípios e valores deste movimento. Por outro lado, se dantes o rapper corria risco devido ao comportamento de militares que chegaram ao ponto de prender e torturar alguns rappers, Masta Tito passou a ter proteção dos militares, em particular do Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, algumas vezes, alvo das críticas do rapper, chegando este a ser convidado pela hierarquia militar a efetuar um espetáculo para elementos das forças armadas.

Estes fatos embora problemáticos, concorrem paradoxalmente para a popularização da personagem do rapper Masta Tito, fato confirmado, com a sua última música intitulada “no kansa golpe”, em consequência do último golpe de Estado verificado no país:

Tudu ora son golpe/ pulítikus kusinha mas golpe / son golpe / militaris fasi mas golpe (No Kansa Golpe, 2012) [A toda a hora, só golpes (de Estado) / os políticos cozinharam mais um golpe / só golpes / os militares deram outra vez um golpe] (Masta Tito feat Ludy, No Kansa Golpe, registo sonoro, Bissau, 2012)

Neste registo, Masta Tito criticou diretamente políticos e militares com responsabilidades governativas, os principais candidatos às últimas eleições presidenciais (atendendo ao facto que o golpe de Estado ocorre quando se preparava para ir à segunda volta das eleições presidenciais) e parece quebrar o vínculo que o ligou ao então candidato presidencial e agora nomeado Presidente de República de Transição, afirmando:

Kulpasinhu kulpa garandi tudu i kulpa / golpesinhu ku golpe garandi tudu i golpe / kondena tudu i kondena / (…) Serifo Nhamadjo i presidenti pabia PRS fasi golpe [Culpa pequena, culpa grande, é tudo culpa / golpe pequeno e golpe grande, é tudo golpe / condenar é tudo condenar / (…) Serifo Nhamadjo é presidente porque o PRS deu um golpe] (Masta Tito feat Ludy, No Kansa Golpe, registo sonoro, Bissau, 2012)

Masta Tito em ação no espaço Lenox, Bissau, Setembro de 2012.Masta Tito em ação no espaço Lenox, Bissau, Setembro de 2012.

Na verdade, segundo vários autores (Cardoso & Augel, 1993; Koudawo & Mendy, 1996; Barros, 2004; Teixeira, 2008) as eleições se tornaram, para a liderança política e militar, apenas mais uma estratégia de posicionamento dos interesses em detrimento dos interesses vitais das populações. É deste modo que os concertos dos rappers, antes e depois das eleições, em particular do Masta Tito caracterizam-se como algo que Azevedo & Silva (1999) designam um espaço capaz de expressar e compartilhar sentimentos, comportamentos e valores culturais, possibilitando que tradições sejam evocadas e transformadas em novas linguagens.

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NOTA DO AUTOR: A presente narrativa é um dos capítulos do artigo de: BARROS, M. (em prelo), “Participação política juvenil através da música rap: dinâmicas de mobilização e protesto em contextos de “suspensão” democrática na Guiné-Bissau”, in MARCON, F. & BORDONARO, L. (Orgs), Juventudes, Expressividades e Poder em Perspectivas Cruzadas, Revista Tomo, Universidade Federal de Sergipe. Agradeço a Teresa Montenegro pelas revisões e tradução das letaras para de Kriol para o português; ao Cícero Gomes (Rádio Jovem), Jaime Katar (Geração Nova da Tiniguena)  e Arsala Indi (Rádio Jovem) pela partilha das informações e esclarecimentos.

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Referências

ANDRADE, E. N. (1996), Movimento negro juvenil: um estudo de caso sobre jovens rappers de São Bernardo do Campo. Dissertação de Mestrado em Educação. Universidade de São Paulo, Brasil;

Azevedo, A. M. G., & Silva, S. S. J. (1999), “Os sons que vêm das ruas”, In Andrade, E. N. (Ed.), Rap e educação: rap é educação, São Paulo, Summus, p. 65-82;

BARROS, M. e LIMA, R. (em prelo), “Rap Kriol(u): O pan-africanismo de Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné-Bissau e em Cabo-Verde”, in Realis - Revista de Estudos AntiUtilitaristas e PosColoniais;

BARROS, M. (2004), A Sociedade Civil guineense face ao desenvolvimento e a consolidação da democracia: compromisso ou beco sem saída?, Lisboa, Fórum DC;

CARDOSO, C. & AUGEL, J. (eds.) (1993), Guiné-Bissau 20 anos de independência: desenvolvimento e democracia. Balanços e perspectivas, Bissau, INEP;

JOVINO, I. S. (1999), “Rapensando PCN´s”, In ANDRADE, E. N. (Ed.), Rap e educação: rap é educação, São Paulo, Summus, p. 161-168;

KOUDAWO, F. & MENDY, P. (eds.) (1996), Pluralismo Politico na Guiné-Bissau – uma transição em curso, Bissau, INEP;

MARTINS, R. & BARROS, M. (em prelo), “Da in/visibilidade da representação e sentido de pertencimento nos coletivos periféricos de jovens em São Paulo e Lisboa”, In Urbe, Revista Brasileira de Gestão Urbana;

MARTINS, José de Souza. (2008),  A fotografia e a vida cotidiana: ocultações e revelações, In PAIS, J. M., CARVALHO, C. e GUSMÃO, N. M. (Orgs.), O Visual e o Quotidiano, Lisboa, ICS, pp. 33-58;

MARTINS, R. (2005), Hip-Hop: O estilo que ninguém segura, São Paulo, Esetec;

PARDUE, D. (em prelo), “Chronotope Identification in Kriolu Rap”, In MARTINS, R. e CANEVACCI, M. (Orgs.), “Who we are” – “Where we are”: identities, urban culture and languages of belongings in the Lusophone hip-hop, Oxford: Sean Kingston Publishing;

TEIXIERA, R. (2008), A Construção Democrática na Guiné-Bissau: Limites e Possibilidades, Conferência sobre Pluralismo Político e Democracia na Guiné-Bissau, Bissau 17-18 Outubro, CODESRIA.

  • 1. Chama-se Tito Marcelino Morgado. Tem 28 anos, pai de uma filha e depois da passagem pelo movimento associativo juvenil, começou a cantar em 2002, com a música “Vampiro”, na altura muito criticada por reportar palavras que muitos disseram serem “ultrajantes”. Das suas mensagens retiram-se palavras duras e ostensivas ao poder político e militar, sobretudo. Atualmente trabalha para uma Organização Não Governamental Internacional no domínio da educação e saúde no Sul da Guiné.
  • 2. Ver em: http://www.voaportugues.com/portuguese/news/04_01_2011_guinerapper_voane...

por Miguel de Barros
Palcos | 24 Setembro 2012 | Guiné-Bissau, Masta Tito, rap