O momento África - notas de uma formação com Nadia Beugré

Entre os dias 23 e 31 de março de 2024 aconteceu, no espaço La Graner em Barcelona, um dos encontro de Africa Moment - plataforma de diversificação cultural das artes performativas fundada em 2016 pelo artista camaronês Ángel Fulla. São encontros organizados desde 2017 focados nas artes performativas e vivas, com uma perspectiva não eurocêntrica e de gênero, e contam com artistas que estão revolucionando a presença africana e afro-diaspórica no território europeu, mais especificamente no caso de Espanha. 

Nesta edição de 2024 a convidada foi a artista Nadia Beugré que ministrou a formação profissional internacional de criação, pensamento e corpo.  

A mulher que vê

Nadia Beugré, nascida na cidade de Abidjan na Costa do Marfim, tem origem de uma família de artistas muçulmanos. É uma das primeiras mulheres a integrar uma companhia contemporânea de dança exclusivamente de mulheres no continente Africano, a Cia Tchetché, liderada por Béatrice Kombé. Suas obras estão sempre conectadas com a vida e a experiência potente do sentido e conexão da alma, e extrapolam o campo da dança, conectando artes visuais, música, filosofia, espiritualidade entre tantos outros campos. No percurso profissional atravessou barreiras e quebrou tabus, deixando sempre sua marca onde passava. Trabalhou com nomes influentes da dança, música e arte contemporânea nos continentes africano, americano e europeu. 

Os corpos que se encontram

O grupo foi formado por 20 pessoas de diversas origens e trajetórias pessoais e profissionais, que conviveram nesta semana intensa de trabalho, duro e sensível, a partir de provocações de Nadia. Eram convites concretos e com dimensões muito profundas do que chamamos de criação artística. Durante os dias de formação artista teve a assistência da bailarina Aida Colmenero Diaz, que trabalha no comissariado artístico de Africa Moment e Cynthia Leonnie na produção, e também se juntaram ao corpo do grupo: Alice, Aurora, George, Dally, Nikita, Nicol, Marie, Graciela, Marieta, Maritza, Thalia, Milo, Nilda, Juliette, Iria, Alex, Carlota, Sciscu e Alba. Mergulhamos no mundo que Nadia tecia junto de nós, de modo artesanal, respeitando sempre a matéria de criação que surgia do presente e dos encontros que se davam nos momentos a partir de muita escuta.

Nadia reforçava muitas vezes que os seus convites eram ecos de outras vozes que falavam através dela. Fazendo assim pensarmos sobre esse corpo que temos como algo muito além do que somente nossa matéria física, mas também um canal entre espaços/tempos relacionada com heranças ancestrais, energias de diferentes densidades, que somos, nos rodeiam e nos atravessam. 

Uma das provocações de Nadia era sobre as nomeações e as palavras que usamos, fazendo-nos pensar sobre nossas responsabilidades enquanto sujeitos no mundo, no dia a dia, e sujeitos no tatami - nome que Nadia dá para o espaço cênico /palco. Aí trazia a escuta como ferramenta potente para ampliar o nosso modo de perceber o mundo - principalmente em contextos em que a cultura, o social e tantas outras barreiras, tais como a própria língua podem criar pontos cegos e tensões. Mas diria Nadia que existem muito mais formas de comunicar algo, e a partir do corpo, do gesto e da ação direta e intencional de forma conectada com nossa alma e desejo, podemos facilitar essa ampliação da escuta e conectarmos seja entre pessoas, matérias, espaços, energias.

Conexão Brasil - Portugal - Costa do Marfim - Montpellier - Barcelona - Londres - Bruxelas - Itália - Namibia - Nigeria - Kenya - Rwanda - Murcia - Bogotá - Durango - París - Escócia - Catalunha - Andaluzia - Conexão

Atravessar portões de embarque, atravessar ruas com nomes e monumentos construídos diante de processos de colonização, atravessar os próprios limites, atravessar dois, três, cinco, dezenove corpos num estreito, atravessar pensamentos que nos matam, atravessar a dúvida e decidir, atravessar em grupo, atravessar só, atravessar com, em, no, na, sobre, la, o, a…

Seguir um grid, encontrar o pulso, a conexão do corpo maior que o um eu, do espaço, e nos corpos captarmos essa pontuação que é como a batida de nossos corações.  Encher as mãos de farinha, e amassar juntos uma massa até que formamos e construímos algo juntos e, nessa ação concreta laboral e meditativa, nos conectamos. Algo surge, muito além do que imaginamos, desejamos, sonhamos. Algo se vai.

Nadia: O que vocês querem dizer? Pensem no que querem dizer, quando se colocam diante deste microfone.

(anotações pessoais de um bloco de notas)

  • Com a força de uma locomotiva atravessou o espaço - VRUMMM
  • …é que a tradução é mesmo deixar as palavras caírem e serem cuspidas da tua boca.
  • À língua fica gigante.
  • Ouviu?Ouviu? Booom - mais uma bomba explode agora no mundo.
  • AOcidentalmente falando - alou, alou, sud sud sudAmericaaa!
  • …é que  força não tem só uma única direção
  • Pessoas marchando, pessoas andando, pessoas correndo, pessoas surtando, pessoas, pa!
  • …e como uma força da natureza desapareceu…
  • Como podemos nos dar as mãos, se das mãos escorrem sangue…
  • Tirado do fundo, do fundo da terra, pedaço de ouro, pedaço de sangue, silício, nitrato. Tu passa na cara, tu passa no corpo, em toda a cidade e te deixa na merda.

Enquanto a massa crescia, descansamos e no invisível (nas passagens) tudo ainda acontecia.

Se eu considerar que não somente no tatami estamos em criação, formação, se eu considerar que passagens, ou enquanto caminho na rua indo ou voltando…tudo ainda acontece…

(OU)Vi uma mulher cantaado em voz alta no banco da praça ao lado de uma senhora idosa. 

(OU)Vi um homem tremer seu corpo todo numa expressão de raiva.

(OU)Vi um movimento de corrida entre jovens, e meu corpo, estremeceu em reação reactiva pelo sistema nervoso simpático.

(OU)Vi jovens andando de skate na praça, todos os dias

(OU)Vi um sinal abrir e fechar justamente quando terminava de inalar e puxava o ar com dificuldade.

(OU)Vi uma guitarra no caixote de lixo e peguei-a.

Agora sim Quando (ou)vi Salif Keita dancei e quando (OU)vi Nadia Beugré me apaixonei.

Nadia Beugré é rock’n’roll para Caraiiiii!!!!!

Nota: Percepções pós-trabalhadas de Dally Schwarz à partir do Programa de Formação com Nadia Beugre no Africa Moment 2024 na La Graner. 

 

por Dally Schwarz
Palcos | 3 Abril 2024 | Africa Moment, Costa do Marfim, dança, movimento, Nadia Beugré