Se fossemos ainda mais angolanos...
Hoje em dia, dada a diversidade da nossa sociedade (angolana), não se pode falar por ninguém. Se cada um falasse por si, já não estaria nada mau.
É o que vou fazer aqui, nestas breves linhas. Sinto que foi isso que o Nástio quis fazer com este brilhante “Se eu fosse angolano”. Ele que anda, há já algum tempo, a dizer coisas interessantes em vários formatos. Em várias performances – nas quais se inclui, claro, a música.
Aliás, a palavra “performance” é para aqui bem chamada. O que será este álbum? Música? Teatro cantarolado? A exposição de diversas teses cantadas? O martelar de algumas dúvidas?
Neste trabalho, o Nástio utiliza-se da ironia fina (embora áspera…) para falar do que nos incomoda. Do que nos faz pensar. Do que andamos a indagar aos outros e a nós mesmos. Às gerações que nos antecederam e às que hão-de chegar.
Devo dizer, abertamente, que gosto muito da voz. É um dos seus instrumentos de trabalho e por mais que se esconda na máscara performática, o Nástio tem voz. E tem consciência do lugar da sua voz. Isto, a mim, parece-me importantíssimo. A voz enquanto entidade que fala, denuncia, questiona. E a voz que canta. Adoro este álbum sendo que também espero que ele venha “simplesmente a cantar”. Há-de acontecer. Espero.
A aspereza do discurso, ao contrário da pesada maciez da voz, vai num sentido explicitamente pontiagudo. A provocação, mesmo rimada, não pode passar passar despercebida: “droga que se fuma” / “é a vida que é só uma”; “canuco quer fazer massa” / “mamã quer fazer massa” / “homem da massa quer massa…”. É a Angola, é a nossa Luanda. A bússola deixou de se orientar pelo Norte, o que nos resta é a cor do dinheiro, a (des)moral do dinheiro. Mais até: é ele que rege as nossas aspirações (isto também se torna claro ao ouvir o último álbum de McK); afinal, o “camarada cumbú” é o nosso derradeiro muata.
Mas a performance de Nástio, corrosiva, vai além:
“Quando a fome de quem come é
Saciada pela sede de quem tudo tem e tudo pede
Não tem como não ter boca com cheiro de pé que fede
Nem sobras são deixadas para quem espera
Surdo, mudo e cego sem ego
Nem migalhas de pão nem lascas de ouro
Nem disciplina de Cristão nem fé de Mouro
Esta é a dieta do Angolano
Pátria potencialmente patética
Filosofia essencialmente dietética (…)”
O óbvio, o quotidiano, às vezes tem que ser dito ou lembrado. Tenho orgulho, portanto, do facto de alguns jovens não estarem embriagados entre prédios novos e dólares fáceis. Este jovens ouvem, nestas canções, a confirmação do que já se sabe: “Estamos oficialmente, estatalmente, individualmente de dieta para a alma.”
Este álbum requer um ouvinte inteligente, preparado para a dose de ironia que o Nástio andou a cozinhar. Requer um ouvinte que saiba e queira ligar os pontos omissos entre as inúmeras pontes de sarcasmo e provocação. Adeus musiquinha fácil. Adeus “estilo muito bem definido”. Entre teatro musical, performance sociológica e simples vontade de “dizer umas coisas”, este álbum passa pela actualidade da nação angolana, questiona-a, provoca-a, convida-a para dançar mas não dança com quem anda a brincar com a vida da maioria.
Para mim, que pouco ou nada entendo de ritmos musicais, fica-me o agrado da diversidade proposta. Há um fundo de modernidade rítmica que se adequa à voz de quem canta. Há uma dolência que aparece, aqui e ali, porque, repito, a voz do Nástio assim o permite e potencia. É, assim, um espaço de cantar e de falar. Mesmo em temas mais difíceis – como em “existo” –, é preciso ler o que está além do óbvio:
“Não estou bêbado, nem tão pouco com a vida frustrado
É amor puro e cru! Amor de louco
Violei minha sobrinha
Violentei a menina da vizinha
Minha filha, sorte que não a apanhei sozinha
Me matem só
Me arranquem só vida.”
Neste tema, a voz contrasta com o que se diz. É esse registo contraditório entre doçura e austeridade que muito me agrada. A mesma doçura (vocal) que se encontra em “arco íris”. Eu não sei, neste caso, quem lhe apareceu primeiro, se a letra, se a música, se as ideias, mas parece-me que o resultado é uma interessante reflexão sobre as coisas locais que tanto tocam nas coisas universais. É esse o modo, novo, recente, de sermos angolanos?
A música fica no ouvido. A melodia agrada. O conteúdo desperta outros caminhos. E se fizesse parte do nosso modo de sermos angolanos, o facto de nos preocuparmos mais com os outros? O facto de querermos, mesmo através da música, repensar o comportamento, a modernidade e a identidade?
Ouço novamente o álbum. Todo. E é como se o Nástio me perguntasse: e se fossemos ainda mais angolanos? Se ouvíssemos mais a voz da sabedoria dos poucos que ainda a têm. Se nos autorizássemos a ter uma voz mais plural, e portanto a aceitar melhor a voz dos outros. Se nos sentássemos mais vezes a falar de outras coisas que não o carro, os dólares, as discotecas, as amantes, os whisky’s. Seriamos menos angolanos? Seremos menos angolanos?
Felizmente, olhando para outros artistas angolanos, senegalenses, moçambicanos, ganenses, marfinenses, sul africanos, tanzanianos, sei que o Nástio não está só. Crescemos ao questionarmo-nos. A arte é também incómodo e cotovelada.
Deixem passar os mais novos. Deixem passar o Nástio. Parece-me que ele tem e ainda terá uma ou outra coisa a dizer. Felizmente.
ps: como se trata de um álbum duplo, experimentem ouvir (e curtir) o lado B, “S.E.F.A. - fast food”. Igualmente irreverente. Igualmente (muito) bom!
ver site do artista
ÁLBUM MP3 SE EU FOSSE ANGOLANO:
DOWNLOAD:
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VÍDEOS
http://nastiomosquito.com/SEFA/TECNOLOGIA.zip - Tecnologia do Ancião
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