Uma utopia chamada Mindelact
Terminou mais um Mindelact, festival internacional de teatro do Mindelo, a 16ª edição. Na memória fica uma avalanche de emoções e momentos únicos. Para sempre fica também a experiência humana e artística. O festival oferece uma variedade tonificante de espectáculos e registos, alguns menos conseguidos, mas sempre de grande entrega, outros sumptuosos acontecimentos de arte:
VOID, de Clara Andermatt, com Avelino Chantre e Sócrates Napoleão, veio carregado de simbolismo. A relação de Clara e Cabo Verde é já longa. Foi precisamente na cidade do Mindelo onde descobriu os talentos e hoje colaboradores de projecto. Por dez anos Clara e os artistas cabo-verdianos vêm fazendo novas miscigenações e reinventando a crioulidade. O espectáculo resulta do próprio crescimento e percurso dos artistas e da coreógrafa. A criação é colectiva, na dramaturgia, na composição da música e mesmo na procura do movimento. Esse é um espaço criativo de vital importância que Clara deixa aos artistas, daí que nasçam esses projectos de inegável novidade.
Os Amantes, do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português, Instituto Camões (CCP, IC), encenação de João Branco, um espectáculo ousado, adaptação da peça Quartet de Heiner Muller, em que a interpretação feminina de Sílvia Lima destaca-se pela entrega e até coragem.
A Descoberta das Américas, em que o actor brasileiro Júlio Adrião esteve por duas horas sozinho num palco, sem cenários, luz ou efeitos sonoros, contando uma história que prendeu a todos e marcou o Festival como uma das melhores performances individuais.
Les Chaises, da companhia francesa Le Théâtre du Tropic, com texto de Eugène Ionesco, destacou-se pela superioridade da sua encenação e interpretações.
Uma Solidão Demasiado Ruidosa, um fabuloso texto de Bohumil Hrabal e uma interpretação arrepiante, talvez a melhor de todo o Festival, do artista português António Simão. Um espectáculo intenso.
A Ilha Fantástica, texto de Germano Almeida, encenação e direcção artística de Sara Estrela, é a grande surpresa da edição deste ano do Festival. É a estreia da cabo-verdiana Sara Estrela, no Palco Principal, esbanjando talento e profissionalismo, num espectáculo repleto de sentido visual, ritmo, dança e música. Sara provocou uma enchente de público, arrancou sentidos aplausos e emocionou muita gente. Uma produção da Associação Mindelact, num projecto desenvolvido numa comunidade remota, da periférica ilha da Boavista, demonstrando que, com trabalho sério, a arte se faz nascer da areia. Além disso, Sara Estrela é uma promessa de renovação estética no teatro cabo-verdiano, ela que necessariamente vem com outros referenciais, faz teatro e dança, o que pode resultar numa deliciosa combinação. O festival já viveu 16 edições. É obra!
Em 1995, por vontade de alguns aficionados, realizava-se um encontro nacional de teatro. No ano seguinte de 1996 nascia a associação Mindelact. O ano de 1997 marcou o festival, ao se tornar internacional com a colaboração da Cena Lusófona, que disponibilizou toda a sua máquina de produção e know-how. Mas é o ano de 1998 que é destacado pelo seu desde então director artístico e mentor, João Branco, por se ter realizado inteiramente com recursos locais, uma aposta que permanece até hoje. O festival espanta pela sua qualidade versus os condicionalismos da sua realização. O sucesso do seu empreendimento é uma história de liderança, paixão, responsabilidade e civismo. A forma inteligente como foi construída a rede internacional de adeptos do festival, trazendo nomes tão sonantes como Miguel Seabra, fundador do Teatro Meridional, Marionetas do Porto, Mutumbela Gogo de Moçambique, Nelson Xavier de Brasil, Bernard Massuir da Bélgica, Elinga Teatro de Angola, Dos-a-Deux de Brasil-França, Marcelo Ndong da Guiné Equatorial, são nomes que ajudam a construir e a prestigiar essa utopia chamada Mindelact. À chegada, os participantes são recebidos no aeroporto de S.Vicente por uma singela comitiva, marcada pelo sorriso morno e jeito suave de Marisa, a responsável das recepções e encaminhamento dos participantes. Da comitiva faz sempre parte o Daniel, director de produção e pau para todo o tipo de sarilho possível e imaginário, um dos grandes garantes que o festival vai até ao fim com sucesso e que se repetirá ano após ano. Toda a equipa que torna possível o festival é tratada por tu, pelo nome, dispensando o apelido quanto mais títulos: Tchá, João, Bety, Zenaida, Sílvia, Elísio, Estevão, César, Anselmo, Neu, são nomes que se confundem com a origem do festival, mas se confundem também com o próprio teatro do Mindelo. Pessoas de grande humanidade e paixão pelo teatro, dos melhores cidadãos da terra.
A arte do receber, a experiência humana vivida durante o festival, em que todos almoçam e jantam juntos, numa espécie de grande ceia, e a vontade de fazer o teatro na sua mais pura expressão artística, cria e mantêm o que já se denomina “espírito do Mindelact”. Os que cá vêm de visita são convidados a despirem os seus automatismos, a partilhar as suas experiências e estabelecer amizades sinceras. Da próxima já serão recebidos com abraços e beijinhos, como parte da família. Essa fraternidade é um dos segredos do festival.
O festival, tal como é configurado, só podia ser feito na cidade do Mindelo
É nisto que insiste João Branco de cada vez que falamos no assunto. Afirmação curiosa, mas que se pode entender ligando os pontos. A cidade do Mindelo é uma cidade que nasceu cidade, nunca foi campo, nasceu já cosmopolita, por influência do porto e da marcante presença dos ingleses. O cinema e o Carnaval moldaram definitivamente o seu povo. Para além da música, a boémia, a vida nocturna, também o teatro sempre fez parte da vida da cidade. Mindelo é receptiva a novas propostas e isso explicará a rápida expansão do Mindelact, o que ditou a abertura de vários palcos para responder à demanda.
No “Palco Principal” desfilam grandes nomes nacionais e internacionais. O “Festival Off” é palco de experimentação e espaço de oportunidades de emergentes grupos ou artistas. O “Teatrolândia” é teatro infantil de qualidade, feito com sentido pedagógico e cívico. O “Teatro de Rua” torna o festival obviamente popular e garante que o festival irá se inscrever como uma tradição bem enraizada na cidade. O “Teatro da Periferia” aborda temas sociais difíceis como a droga e a violência, e ainda promove a integração de bairros e localidades marginalizados. Pela primeira vez, neste ano de 2010, o festival estendeu-se à cidade da Praia, quiçá apontando para uma nova viragem do festival.
O crescimento do Festival não dispensa as dúvidas e inquietações, a começar pela própria cidade. Mindelo enfrenta uma degradação económica e social visível. Não se constroem novas unidades hoteleiras, as que existem não actualizam as suas instalações, restaurantes se fecham, serviços perdem qualidade, a cidade perde a sua dinâmica de entretenimento e, o pior, problemas de violência nas ruas já afectam directamente os participantes do festival.
A situação socioeconómica e uma demissão da parte do Estado de políticas públicas para a Cultura, também não favorecem a criação de salas de espectáculos, um teatro municipal, salas de produção multimédia, circuitos de aluguer de equipamentos de som e luz, para além da inexistência de uma formação mais avançada nas inúmeras tarefas necessárias ao espectáculo.
O festival dá muito à cidade, directa e indirectamente e podia receber mais em troca. Podia haver mais participação do Ensino, mais colaboração artística com músicos e artistas visuais, mas participação das autoridades culturais públicas, mas parcerias com instituições culturais privadas. O festival, pelo seu amplo interesse artístico e social, merecia mais atenção, até de áreas não aparentemente ligadas, como os serviços sociais e mesmo algum serviço de saúde. Pude conhecer dois casos exemplares de intervenção teatral: na cadeia central de S.Vicente e num centro psiquiátrico. A realização do Festival parece assim mais resultado de uma tenacidade dos seus promotores e do voluntariado, do que de uma organização sustentável. Faz falta uma produção mais empresarial, de modo a diminuir o cansaço e os riscos que, a cada ano, o Festival incorre. Faz falta uma Comunicação mais forte e organizada, até pelo retorno que os patrocinadores esperam. Faz falta também uma descomplexada participação de qualquer entidade individual, colectiva, pública ou privada, neste que já é um ganho de extrema importância para a Cultura deste país.
Juntamente com outros eventos da ilha, como as festas da passagem do ano, o Carnaval, o Festival de música da Baía das Gatas, a ilha até poderia escolher a Cultura como vector efectivo de Desenvolvimento, mas ao nível de políticas faltam projectos concretos e resultados mensuráveis, mas sobretudo falta um discurso sério e profissional. Apesar das contrariedades, o Festival continua com um vigor electrizante! Quem vem não esquece. Aliás, a força com que acontece parece ser um grito de revolta aos constrangimentos impostos à ilha e à Cultura. Um manifesto.