Zululuzu: é isto, é aquilo. Mas não é isso!
Mariana Pinho escreveu um artigo sobre o nosso espetáculo, ZULULUZU, a que deu o nome de “Zululuzu: é isto, é aquilo? Ai não pode ser”. Não temos por hábito reagir ao que se escreve sobre o que fazemos, mas discutindo-se no espetáculo as questões e políticas de identidade, onde se dialoga com normas e convenções, e notando nós nesta leitura de Mariana Pinho a gramática de uma ontologia dominadora que estrutura a opressão contínua dos diversos esquemas sociais, decidimos redigir este texto.
Perturbou-nos na leitura, dado o “portal” em que é publicado o texto, o facto de a autora se apoiar em saberes naturalizados e de submeter intencionalidades, figuras de linguagem e estratégias comunicativas do espetáculo a uma demanda ideológica que assenta numa estrutura de conhecimento que pretende identificar e capturar e regular a identidade do que vê. É que ao anunciar o início do espetáculo com um “apagam-se as luzes”, depois na introdução ter revelado que teria lido jornal impresso para a ocasião, o Zululuzu Fo’Sho, ao equiparar ZULULUZU a uma “paródia” (uma estratégia especifica do humor que tem como operação um desvio recreativo de uma outra obra) e ao identificar o “formato revista à portuguesa” (a “revista à portuguesa” não é um formato mas um género teatral onde se conjugam um conjunto de operações encontradas noutras estruturas comunicativas parateatrais, i.e. quebra de quarta parede, interpelação direta ao público, momentos musicais, revistação histórica, narrativa fragmentada, etc.) Mariana Pinho revela um problema de identificação do objecto artístico, porque o enquadra numa manifestação estética feita à luz de um programa ideológico cultural que tende a ver os objetos artísticos como metáforas operativas segundo critérios academizados.
Mas detenhamo-nos em três pontos exemplares que revelam três equívocos da mesma ordem.
1. Mariana Pinho queixa-se, segundo julgamos ter percebido de um parágrafo com uma redação nem sempre clara, do facto de o espetáculo se transformar “num exercício demasiado literal de ‘tornar visível a norma’, quase um exercício activista que pretende dar a ver.” Umas linhas abaixo diz aquilo que julgamos ser precisamente o contrário, ou seja, confirma a intenção do espetáculo de baralhar a identidade da alteridade, confundir os binómios e procurar complexidade, movimento que a autora associa a um outro momento do espetáculo sendo incapaz de o fazer dialogar com o momento anterior que descreveu. O que estranhámos foi a incapacidade de Mariana juntar as peças, sobretudo tratando-se este de um movimento que replica uma estratégia argumentativa que é o motor do espetáculo e de um olhar (leia-se Judith Butler, para referir a voz mais sonante) sobre o mundo das identidades.
À medida que avançamos contudo no seu texto, compreendemos melhor de onde poderá vir esta falta de vontade. É explícito, eco de algum queer-fascismo, o não reconhecimento da norma a favor da incrementação simbólica das coculturas enquanto processos identitários.
Quando o espetáculo reclama uma identidade que não seja coincidente com a estratégia social normativa, também reconhece que essa estratégia existe enquanto programa de assimetrias contextuais, sociais e históricas porque não o reconhecer é entrar numa abstração social em que as assimetrias passam a ser ilusões. Mais ainda, o Eu, numa democracia-por-vir, não deve ficar subjugado a uma expectativa social imposta por uma alteridade normativa quando procura fluir entre identificações sociais de diversas ontologias ou quando passa à margem de grande parte delas. O critério de identificação não é só um. Um sujeito tem o direito de poder não ser simétrico com uma moral higienizada por uma sociedade que se quer regulada por estratégias de convivência opticamente corretas. Tanto o preto como o índio podem ou não reconhecer o europeu branco privilegiado, o Grande Outro. Mas o privilegiado, que não reconhece o seu papel, demite-se, via biopolítica afectuosa, do seu posicionamento na hierarquia social (normalmente por comparação com situações em que se coloca no papel de vítima). Assim, o que Mariana Pinho vê com beligerância, como um “exercício activista que pretende dar a ver” ou “tornar visível a norma” é justamente aquilo que a norma nunca consegue fazer: ver-se ao espelho no seu próprio dispositivo por excelência.
O facto de encontrar “humor” e “absurdo” na convivência de figuras como Godard, Gandhi, golfinhos e internet, é bem revelador da gramática branca normativa de imaginário coletivo europeu que rege o olhar da autora sobre o espetáculo e assim, mais uma vez, da necessidade do espelho que, segundo Mariana, é desnecessário.
2. O segundo ponto cuja leitura nos pareceu mais uma vez viciada por esta incapacidade de olhar para o próprio reflexo, trata-se da descrição de um momento do espetáculo em que assumidamente citamos um texto de Binyavanga Wainaina (“How to Write About Africa”). Mariana Pinho queixa-se da redundância das imagens “africanas” que na altura se mostram. As imagens que parecem ilustrar o texto são na verdade todas elas europeias ou norte-americanas (excepto uma ou outra obra de artistas plásticos como um poema visual de um escritor de poesia concreta brasileiro). A escolha criteriosa, impressa em tecidos (esta informação é muito relevante), tal com a cascata impressa numa cortina de metal, presente num outro momento do espetáculo, são anamorfoses que dependem do ponto de observação e que por isso chamam a atenção para o sujeito observador, formador de mundo, seletivo, parcial e tantas vezes restritivo (“racista”) sem disso se aperceber. Por isso as descrições destes momentos do espetáculo dizem muito sobre quem os vê.
O pôr de sol, que Mariana viu como sendo “africano”, era nos Estados Unidos da América. A “criança subnutrida” era uma fotografia da Madonna com o seu filho. E quanto a “safaris”, a imagem consistia na garrafa de uma bebida alcoólica conhecida. O texto de Binyavanga Wainaina foi utilizado ipsis verbis (com cortes apenas), e o que concluímos desta observação é que a sua operatividade ainda se mantém, até no contexto de um “portal multidisciplinar de reflexão, crítica e documentação das culturas africanas contemporâneas em língua portuguesa”.
A estratégia do espectáculo, que consiste na promessa de ilustração de um texto com uma falsidade que aparenta o real, vem confirmar a necessidade, ainda presente, de descolonizar em curto-circuito dispositivos comunicativos coloniais. Afinal, a “sobranceria” atribuída aos criadores do espectáculo (e lá vem de novo o imperativo anti-democrático “não tens o direito de falhar já que te estamos a dar espaço para falares”) nada mais era do que o preconceito subjacente a um saber. Desde o principio que a autora sabe – o que é o teatro e o que são as imagens de África.
3. O problema identificado no ponto 2 irá inquinar uma apreciação final feita por Mariana Pinho que continua a supor uma arrogância do espetáculo que caracteriza como estando a propor uma “espécie de relação pedagógica entre actor-espectador, que pretende suprimir a ignorância do segundo através de uma constante explicação do que este está a observar.” Esta característica retiraria “força” (sic) ao “potencial político de Zululuzu.”
A autora associa citação a didatismo porque nunca lhe ocorreu que o espetáculo nada tem para ensinar (isso é para outro tipo de manifestações culturais). O espetáculo limita-se a ativar discursos sobre dispositivos e sobre determinados tipos de “saber” e não se rege por uma ideia de teatro que precisa de dialogar com um espectador interpassivo que procura no objeto aquilo que já conhece, que já sabe o que é.
Debord, algures no Panegírico, responde a acusações semelhantes afirmando que a maneira mais inclusiva de diálogo é a partilha de fontes para que ninguém fique sem acesso aos discursos. Confundir citação com explicação, com moral, com didatismo ou arrogância é não conseguir ultrapassar mecanismos de imposição social associados a uma determinada performatividade individual, é não conseguir sobreviver à espectativa da originalidade na arte, da impossibilidade de convivência de saberes alternados e oriundos de diversos contextos bem como o não reconhecimento de assimetrias sociais de quem tem acesso a um espetáculo.
Partilhar, conviver e disponibilizar saberes e ferramentas cognitivas díspares (sejam originais ou não) não é coincidente com pensamentos unívocos, lineares e morais, nem tão pouco com pressupostos sobre quem é o publico determinante, mas um processo queerista inerente à própria actividade ecologicamente social de um coletivo.
“A força” de que a autora estaria à procura, e a que nos referirmos no espectáculo como palavras que embalam “e não dizem nada”, é ela sim a mesma que conferiu ao cânone enquanto confirmação tautológica de um determinado tipo de fazer, a valorização simbólica extrema de uma ideia de “cultura”. Tudo é citação, mas umas vezes cita-se conscientemente chamando o que não tem espaço de expressão nos locais e dispositivos privilegiados de modo a inscrever o disruptivo, a criar atrito e abrir espaço para o dissidente, para o sem-espaço, o não-pensado etc.; outras vezes a citação é inconsciente e recorre à normatividade como forma de conferir e confirmar o seu próprio estatuto e assim excluindo tudo o resto.
Concluindo. Estes três momentos em que a autora entra em choque com o espetáculo partem de premissas equivocadas sobre o que ela própria está a ser, sobre o que está a ver e sobre o que está a saber, que revelam uma tentativa inconsciente de colocar de parte questões de identidade e de identificação social determinantes na assimetria diária.
E isso não é ZULULUZU.