Ruy Duarte de Carvalho: sob o signo da contradição
No confronto com dilemas e conflitos postos pela contemporaneidade que habita, Ruy Duarte procurou inscrever-se no centro da mediação, não para eliminar arestas, mas para destacar a contradição como uma chave na leitura do mundo e na organização da narrativa, aqui tomada num sentido que ultrapassa os textos por ele encarados como mais nitidamente literários. Consciente do trânsito que se institui como linha de força de seu percurso, ele acabou por cunhar uma modalidade para o tipo de trabalho que com mais força cultivou em seus últimos tempos: a “meia-ficção erudito-poético-viajeira”, segundo suas próprias palavras nas notas biográficas publicadas no site da editora Cotovia. Os vários textos daí tributários compõem uma espécie de coro narrativo, um conjunto de vozes que exprime uma visão de mundo plasmada em diversos gêneros textuais.
Diante do amplo quadro de sua atuação em tantos campos do pensamento e da linguagem, um recorte se impõe. Como ele, começo pela poesia. Desde o primeiro poema, publicado nos anos de 1970, ainda antes da independência de Angola, contrariando a tônica dos discursos e projetos dominantes, na obra de Ruy Duarte de Carvalho o Sul se ergue como foco prioritário. Não por acaso, o poema intitula-se “Sul”, uma metonímia que se vai desdobrando na cadeia de significados que sua obra aciona. Desde essa estreia, as imagens apontam para uma concepção de poesia pouco afinada com a retórica mais cultuada naqueles anos tomados pela altissonância das falas com que se procurava alimentar a utopia nacionalista. Pautada pela contração, sua linguagem cultivava os tons da exiguidade, o que se explica e se completa quando ligamos o Sul ao deserto, associação quase incontornável para Ruy Duarte. O deserto é a paisagem que escolhe, ou pela qual foi escolhido, desde os anos da adolescência passada na então província de Moçâmedes. No catálogo do Ciclo, realizado pelo Centro Cultural de Belém, em 2008, é ele quem nos conta:
“Lembro-me de ter nascido, ou então de ter mudado inteiramente tanto de alma como de pele, pelo menos uma meia dúzia de vezes ao longo da vida e nenhuma delas foi lá onde terei, pela primeira vez, dado conta da luz do mundo. De que havia uma matriz geográfica que essa é que me dizia de facto muito intimamente respeito pela via quem sabe de uma qualquer memória genética, dei conta aos doze anos – lembro-me sempre de cada vez que ainda por lá passo e se calhar é para isso que ando sempre a ver se passo por lá – a comer pão e com um ataque de soluços no meio do deserto de Moçâmedes, por alturas do Pico do Azevedo.”
[…]
“Depois, a partir de 92, fui arranjando maneira de ir passar cinco meses, todos os anos, misturado com os pastores do Namibe de quem, desde menino, andava a querer saber como conseguiam organizar a sua sobrevivência e a sua existência, tão diferenciada de tudo quanto os pressionava à volta. Foi para dar notícia disso sem ter de escrever naquele tom da escrita académica – de teses e artigos fui achando que já tinha tido a minha dose – que adoptei então essa maneira de escrever que depois me pôs na pista de uma meia-ficção-erudito-poético-viajeira em que venho insistindo.”
O Namibe (ou Moçâmedes, como insiste o autor) seria a representação por excelência do espaço que localiza como quem alude a um encontro fatal. Fatal e determinante – pode-se ler nos seus poemas, nos quais se inscreve uma lógica que tangencia a objetividade das referências. Fechada a derramamentos ou facilidades verbais, a poesia, quase mineral, persegue a condensação e rejeita excessos, num jogo de estratégias que leva Luís Quintais a sintetizar:
“Sim, escolher o deserto é escolher o exacto espaço que cabe a um homem. Por mais que se eleja uma tradição, o melhor é alijar-se da tradição, trair em nome próprio. Escolher o deserto é escolher a hermenêutica da escassez, de outro modo ainda, é exigir a rasura.” (2008)
A obsessão pelo espaço é central e salta dos títulos de seus livros: Chão de oferta, Ondula, savana branca, Hábito da terra, Actas da Maianga, As paisagens propícias… Nessa referencialidade constante não se deve, todavia, identificar traços de imobilidade ou apostas na determinação de limites que muitas vezes frequentam certas posturas regionalistas. Ou mesmo nacionalistas. A fidelidade nos moldes de um apego patrioteiro não faz parte das lealdades de seu projeto intelectual, cidadão ou literário.
Apostando na diferença, o autor ratifica a traição em nome próprio, de que fala Quintais, e desenha sua opção. Logo veremos, não se trata apenas de deixar Luanda, a cidade feita matriz de sentidos pelos prosadores angolanos dos anos de 1960 e 1970, nem, obviamente, de regressar ao “mato” da literatura colonial; nem ainda de procurar o interior ou a floresta mitificada. Sua bússola indica o deserto, mas não é somente para fazer do deserto a paisagem principal. Para ele, que tem no espaço a dimensão fulcral, escolher outra direção pressupõe, ao mesmo tempo, fazer da mobilidade muito mais que um tema ou um assunto. Por isso, a noção de circularidade se inscreve na estrutura textual e atinge em cheio o trabalho com a linguagem. A noção de deriva, expressão tão cara ao escritor, se impõe, obrigando-nos, a nós leitores, também a aceitá-la como condição e como método de decifração das complexas redes de seu próprio projeto artístico, perfeitamente enquadrado na modernidade de que é testemunho.
Colocando em causa um desenho nacional incapaz de assumir de modo arrojado a pluralidade de que o país é feito, Ruy Duarte insiste num debate orientado pela inclusão do que foi posto à margem, decisão da qual decorre um projeto intelectual com base na incorporação de outras geografias. Não lhe bastava afastar-se de Luanda e/ou buscar o Sul de seu país; é imperioso verificar semelhanças, diferenças e contiguidades na visita a outros espaços, percurso que realizará em Desmedida, quando a expansão atinge o outro lado do Atlântico e a memória faz recuos até um tempo anterior aos anos da independência. O texto que resulta de uma série de viagens pelo Brasil, sem dúvida, assinala uma experiência extremada, mas desde muito antes já poderíamos falar na diferença de seu projeto narrativo. Ela se insinua nos contos de Como se o mundo não tivesse leste, de 1977, e se aprofunda em Vou lá visitar pastores, de 1999.
Entre essas narrativas, que guardam entre si fundas diferenças, há pontos de aproximação, como a presença de um discurso mesclado, elaborado sobre a atenuação das fronteiras entre os gêneros que o escritor pode cultivar. Segundo Miguel Vale de Almeida (2008), seria “banal e repetitivo dizer que a obra de Ruy Duarte se caracteriza pela pluralidade: cineasta, antropólogo, desenhador, ficcionista, poeta, ensaísta. Explorador. Sê-lo-ia também referir de novo a pluralidade – mas sobretudo a mistura – de géneros”.
Todavia é o próprio antropólogo que repensa a sua quase afirmação e completa:
“Mas seria mesmo? As estratégias literárias de Ruy são justamente as que mais se adequam ao desafio contemporâneo, em que já não se trata de renegar a autoria, mas de expô-la assumindo-a ou assumi-la expondo-a e, no processo, multiplicá-la nas vozes, nas personas, nos géneros, na invenção de novos patamares de diálogo entre os textos produzidos e as condições da sua produção. Em suma: ora hibridizando, ora deslocando. O resultado é que por vezes o texto poético é mais antropológico que o etnográfico, este mais político que o político, este mais ficcional que o ficcional…” (2008)
Em sua errância entre várias linguagens é, sem dúvida, o trânsito que emerge como um vetor dos textos que deixam o leitor sem amparo na tipologia convencional das modalidades literárias. A hesitação é uma sensação que não se desfaz, pois a complexidade estrutural de cada texto a reforça, ao mesmo tempo em que nos vai conduzindo a algumas convicções. A primeira delas é a singularidade de uma escrita que foge aos facilitarismos a gosto do mercado. Não vamos encontrar nem a repetição de fórmulas poéticas conhecidas nem o esforço de inovações que, ao atingir um determinado grau de voracidade, pode se voltar contra a própria obra e afastar o leitor.
A segunda convicção prende-se ao fato de que essa mesclagem de modalidades narrativas não parece apenas um compromisso programático no domínio do literário, mas reflete uma concepção de leitura do mundo elaborada a partir de olhares que se movem para exprimir de múltiplas maneiras o que é captado. Podemos dizer, por exemplo, que explorando as potencialidades do romance, o autor angolano oferece-nos uma narrativa que do contágio entre ensaio e ficção faz surgir um “terceiro gênero”, para citar a expressão utilizada por Roland Barthes a propósito de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.
Se faz sentido uma dose de desconfiança relativamente às análises apoiadas em dados biográficos, não podemos deixar de reconhecer no trajeto de Ruy Duarte de Carvalho o aflorar de pistas para interpretação de traços definidores de sua obra. Já referenciamos os seus vários nascimentos e a sua obsessão pelo deserto. Outro ponto está nos vários ofícios nos quais exercita o extremado senso crítico. Poeta, ficcionista, cineasta e antropólogo, a reflexão emerge como um ato continuado, incluindo aquela que tem como alvo o seu próprio trabalho. Em “Falas e vozes … fronteiras e paisagens … escritas, literaturas e entendimentos…”, temos um instigante roteiro que nos coloca frente a frente com o intrincado processo criativo que o moveu na direção de tantas linguagens:
”[…] que acabei por me ver, de há uns anos a esta parte, a escrever também uma espécie de ficção, ou uma meia-ficção. Ou uma certa ficção que afinal só me ocorreu depois de ter feito largas travessias. Passei talvez a inscrever a poesia na prosa. Operação complementar e inversa, talvez, àquela que me tinha ocorrido quando há muitos anos atrás escrevi três contos julgando que estava a fazer prosa para constatar depois, mais tarde, que, afinal, tinha escrito era quase tudo em verso. Mas para mim, quando a questão se me coloca, a transição da poesia para a ficção, ou a circunstância de poder encarar agora a ficção, está ligada, já que não nasci ensinado, à aprendizagem da escrita que colhi nos terrenos da poesia, e a outras aprendizagens para as quais me servi da antropologia.” (2008, 19)
Nessa leitura que faz do seu ofício, ecoam as notas já presentes em “Poesia, cinema e antropologia, três polos de um exercício em ação”, apresentado em forma de palestra em universidades italianas na década de 1990, o que revela a dimensão e a permanência de seu interesse pela natureza das linguagens que exercita e a atenção cuidadosa ao processo de representação do mundo a partir dos signos com que procurou lidar. Já então, centrava seu olhar na relação entre o som e o sentido como um fato que condiciona a autonomia da palavra, buscando para a linguagem a possibilidade de reconhecer a natureza verdadeira das coisas. Em seu trabalho, podemos reconhecer reverberações da concepção de Alfredo Bosi, para quem “a superfície da palavra é uma cadeia sonora. A matéria verbal se enlaça com a matéria significada por meio de uma série de articulações fônicas que compõem um código novo, a linguagem” (Bosi 1977, 21).
No refinamento de sua proposta, o desafio se põe e repõe a cada passo:
“…… por outro lado dentro dessa determinação última de comunicar, de se fazer entender, ousar a palavra exacta… chamar as coisas pelo nome … e ainda que na vida privada, cívica, política, social, negocial, relacional, todos saibamos dos péssimos resultados que isso dá, ousar, pelo menos em poesia, a pertinência da palavra exacta… […] sem se enrolar a escrita na intenção da ideia, antes processando, com o uso da palavra a forma exacta que convém à ideia, a forma da ideia, a ideia dada, e criada pela forma que a escrita inventa enquanto produz o curso de uma fala, de um caudal de voz…” (2008, 18)
Noutras palavras, fascinava-o a hipótese de recuperar o poder de nomear e, assim, apostar na prevalência da poesia sobre a ideologia.
Em sua prosa, assim como em seus poemas, há um foco sobre as particularidades, as estranhezas, as descontinuidades, num quadro de estilhaçamento do mundo cuja consciência conduz à crença de que é preciso conjugar as partes para melhor compor o conhecimento, que – sempre parcial – está sujeito a novos aportes, conquistados com frequência na viagem em sua função primordial, inclusive e sobretudo naquelas que parecem feitas para se traduzir em livros. Em um congresso realizado em 2001, em Póvoa de Varzim, Ruy Duarte de Carvalho recordaria:
“Viagem e literatura andam juntas desde a confirmação desta, e a etnografia é da viagem que nasce. Retomando o curso da conversa diria ainda que a etnografia, fundada pela viagem, se instaura quando a exploração se detém, quer dizer, cessa a travessia e se instala a estadia sem que ainda assim se anulem nem as vertigens nem as tentações da viagem.” (2008, 122)
Nessa passagem presentifica-se a convicção de que para ele, antropólogo e escritor, a viagem, mais que a oportunidade de contato, de desembarque em um outro mundo, funciona como ato formativo, posição que o faz próximo de Lévi-Strauss e de Michel Leiris, dois nomes emblemáticos da antropologia francesa, duas referências de peso em sua trajetória intelectual. Leitor apaixonado do autor de L’âge d’homme e de Miroir de la tauromachie (universo fascinante também para ele), ressaltava a repercussão da viagem ao continente africano na virada profissional do escritor que como arquivista-secretário integra a famosa Missão Etnográfica e Linguística Dacar-Djibuti que em maio de 1931 partiu de Bordeaux para impactar fortemente a história da Antropologia francesa. Assim como a vida de Leiris, que identifica nessa viagem o seu nascimento como antropólogo:
“De volta de minha primeira viagem à África negra, enviei à André Malraux, então leitor da editora Gallimard, cópia dos cadernos de notas que mantive ao longo dessa viagem, graças à qual, ao mesmo tempo em que mergulhava num mundo que eu só conhecia pelo esplendor de suas lendas, me iniciava na profissão de etnógrafo.” (2007, 43)
Para além da repercussão da África no exercício profissional, Ruy Duarte comungaria com Leiris o pendor autobiográfico – uma presença de relevo no trabalho de ambos – e a ligação entre prática etnográfica e atividade literária. Vale ressaltar que na trajetória do escritor francês essas duas atividades corriam em paralelo, sem uma contaminação explícita, procedimento que só foi efetivamente rompido em A África Fantasma. Nesse texto que tem como base seu diário de campo, diluem-se as fronteiras entre o trabalho do antropólogo e o do escritor e associam-se as duas dimensões de seu projeto intelectual, como assinala Fernanda Peixoto (2007) no prefácio à edição brasileira.
É fato que para o autor de Os kuvale e de Vou lá visitar pastores, o trabalho de campo propriamente dito não antecedeu a busca da antropologia como instrumento de interpretação, no entanto, evidencia-se na sua reflexão o papel dos deslocamentos por Angola, seguindo roteiros novos e inusitados na vida no país. Antes do doutorado em antropologia feito em Paris, cidade, aliás, a que estão indiscutivelmente vinculados Lévi-Strauss e Leiris, o caminho para a etnografia fora preparado pela poesia e pelo cinema. E pelo trabalho de regente agrícola, que implicou em andanças pelo território, colocando-o em contato com a diversidade de mundos de que Angola se faz. Todas essas rondas, como ele prefere chamar em Vou lá visitar pastores, constituíram o saber que intervém na composição da escrita, dela não podendo ser afastado. Em nenhum dos textos.
Na trilogia a que deu o nome de Os filhos de Próspero, um conjunto de narrativas tonalizadas pela melodia da ficção, a errância é nota dominante. Em Os papéis do inglês (2000) temos um narrador em primeira pessoa que circula pelo sul de Angola; em As paisagens propícias (2005) e A terceira metade (2009), as travessias entre o território angolano e a Namíbia sugerem nitidamente a porosidade das fronteiras entre os dois países. Trazendo à cena a fragilidade dos limites demarcados pela empresa colonial e confirmados pelos estados nacionais, o autor chama-nos constantemente a atenção para a arbitrariedade dessas linhas imaginárias que ganham força na cabeça dos governantes e são ignoradas pelas populações que vivem por ali. Em causa, uma vez mais, ele coloca o pragmatismo das decisões políticas tomadas sem levar em conta as demandas do terreno.
Entre Os papéis do inglês, o primeiro a ser publicado, e A terceira metade foram publicados Actas da Maianga, em 2003, e Desmedida – Luanda/São Paulo/São Francisco e volta – Crônicas do Brasil, em 2006. São dois títulos que oficialmente interrompem a sequência da trilogia. Todavia, uma leitura atenta das narrativas deixa ver o sentido de unidade de seu projeto. Em todo esse conjunto, encontramos elementos que, apenas vislumbrados ou claramente manifestos, põem-nos perante um projeto orgânico, particularidade do trabalho desse autor nunca distante da grande ideia fixa: Angola. Para melhor lidar com essa espécie de obsessão, mecanismos especiais de análise foram acionados por ele. O sentido da autorreflexividade, destacado por Bernardo Carvalho na sua resenha em Os papéis do inglês, refaz-se em todas essas narrativas em que a noção de autoria é trabalhada de maneira original, propondo uma especial relação entre a Literatura e a Antropologia.
Em um grande esforço classificatório, que não ignora a opinião do próprio escritor, poderíamos dizer que nas obras que compõem a trilogia predominam as características da prosa de ficção. E, nesse jogo autorreflexivo, observamos a viagem se misturando a histórias de demandas que se entrecruzam nas estórias narradas, para surgir como movimento organizador, atuando na formação de uma consciência que se alimenta de experiências e contrapontos. Problema muitas vezes visitado nos chamados textos de intervenção do autor, o trânsito é também tematizado em textos literários, aliás, desde os contos de Como se o mundo não tivesse leste. Cabe, todavia, ressaltar a relevância que ganha quando penetra na estruturação do texto, tornando-se um elemento interno da obra. Assim, se em alguns trabalhos, Ruy Duarte fala da transumância, principalmente a partir de Vou lá visitar pastores, ela se inscreve em seu processo criativo, gerando uma dinâmica particular da qual derivam novas cadeias de sentido.
Dirigindo o olhar para a trilogia ou mesmo para os Pastores, Actas da Maianga e Desmedida, esses títulos que bem podem ser identificados como obras integradas a esse projeto a que o autor chamou de “meia-ficção-erudito-poético-viajeira”, o leitor poderá vislumbrar as linhas que exprimem a decisão de um olhar que se arrisca e faz questão de não ignorar os limites e os dilemas que as suas investidas comportam. A sensação de não ser “bastante”, que ganha expressão nas primeiras páginas de Os papéis do inglês, reitera-se em muitas passagens, traduzindo não uma fragilidade, como se poderia interpretar, mas a consciência de quem compreende a complexidade da matéria que se abre à sua frente. Tal complexidade espelha-se na paisagem ou na história que lhe cabe viver ou simplesmente dar conta que existiu.
Diante desse mundo misturado, que é o seu, e não só, Ruy Duarte empenha-se na construção de estratégias que não têm como objetivo simplificá-lo, nem simplificar a linguagem que o possa exprimir. Por isso, a opção não é resolver os impasses, mas jogar luz sobre eles, para que se possam reconhecer as complexas redes que os envolvem. São muitos os dilemas que o mobilizam, entre os quais vamos encontrar a delicada relação entre a escrita e a oralidade, problema de grande interesse para a literatura e para a antropologia, duas áreas de conhecimento que estão, como sabemos, na esfera de prioridades que animam a sua reflexão. Se em vários textos de caráter reflexivo a preocupação se manifesta, em suas narrativas a questão é problematizada na estruturação das cenas, na composição dos diálogos representados, no desenvolvimento dos enredos.
Nos Pastores, o recurso da transcrição das cassetes gravadas para orientar o percurso do amigo jornalista que era suposto acompanhá-lo na “ronda” pelo Sul evoca a emissão da voz, ao mesmo tempo que insinua a inviabilidade da sua materialização sem a intermediação do elemento tecnológico. Em Os papéis do inglês, o tom de diálogo é atravessado pela alusão aos e-mails, uma referência mais que evidente da mediação da modernidade, mas a presença, mais que insinuada da destinatária no texto projeta-se, por exemplo, nas interrogações moduladas pela voz do narrador. Em A terceira metade, as primeiras linhas dão o mote: “….. falar a gente fala, e se entendemos….. escrever porém é outra cousa …… ainda assim, Paulino, você já deu bem conta? …… andamos a falar dessas viagens, e a cumpri-las, ultrapassa nessa altura para cima de dez anos…….” (2009, 13).
Tal como em Desmedida, a figura do Paulino funciona como uma espécie de âncora que exprime a firme ligação com a Angola a que tem seu destino associado. Assim convocado, o Paulino é uma espécie de índice de referencialidade, inserindo-se na narrativa como um instrumento do anti-ilusionismo, a impedir que o leitor se instale completamente no reino da fantasia que é próprio da ficção. Já nas primeiras páginas, abre-se o jogo que se instaura entre os desígnios do autor e as tarefas do narrador,
”………..instalado no hotel Paralaxe do parque turístico local, que, nessa altura do ano cobrava mais barato por ser estação baixa […] convocava em mim o narrador que nestes últimos anos me tenho imposto às vezes ser, embora sem grande sucesso …….. depois, quando às 3 da tarde de cada dia encerrava uma jornada de escrita, daí até às 5 da alvorada seguinte, o narrador (o autor constituído em narrador) só existia como destinatário das instruções, das intenções, das decisões, que cada noite o autor deixava assentes num roteiro……..” (2009, 21)
A distinção é nítida e precária, ao mesmo tempo. Os movimentos que cabem a cada um tangenciam-se e produzem novos efeitos do real. A explicitação dos papéis corta a ideia da linearidade, afastando-se a crença na literatura como um reflexo estático da realidade. Melhor dizendo, o jogo parece anunciar que entre a verdade da ficção e a ficção da verdade são difusas as linhas da demarcação. É nesse emaranhado que se define a musculatura de um projeto que espelha dinamicamente a desordem do mundo. Não se trata, portanto, de diluir as contradições que nos constituem, nem de se colocar ao serviço de uma mediação que se acredite capaz de elidir as diferenças ou minimizar a tônica dos conflitos. Ruy Duarte de Carvalho, em seu teimoso percurso, expôs a limitação de certas convenções e fez da ruptura uma prática que repercutiu com engenho e arte na sua escrita.
Dele, se pode dizer, com toda a serenidade, que sua práxis corresponde efetivamente à definição de artista que em março de 2010 ele formulara numa sessão em Luanda: “o artista não resolve questões, nem remata discursos, nem culmina discorrências, questões, antes as inaugura e instala interrogações e obtém por vezes resultados que escapam a todas as intenções que à partida lhe assistiram ao próprio artista” (2011, 113).
Ao distanciar-se de qualquer apego a um possível messianismo, não raro presente em concepções literárias que emergem nas periferias, o sentido da escrita que o movia levou-o sempre a encarar impasses que mais interferem na formulação de perguntas do que no oferecimento de respostas. O gosto pela interrogação, não como estilo, mas como método de reflexão dominou o seu itinerário, condicionou a ruptura das formas cristalizadas e a prática do diálogo com os contextos em que se vê inserido como duas das marcas centrais da obra de Ruy Duarte de Carvalho nas quais se enraíza a força da sua complexidade. Desse modo, situando-se no terreno da radicalidade, o seu projeto intelectual pautava-se pela eleição de parâmetros fundamentais para propor a transformação que entendia necessária. No texto como um fato; na vida como uma possibilidade a defender com rigor.
Bibliografia
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———. 2007. África fantasma. São Paulo: Cosac & Naify.
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Quintais, Luís. 2008. “Escolher o deserto”. In Ciclo Ruy Duarte de Carvalho – Dei-me Portanto a um Exaustivo Labor. Organizado por José Fernandes Dias. Lisboa: CCB, fevereiro 2008. Folheto da Exposição, p. 8.
____________
in Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho (2019), Marta Lança et all (org), Lisboa: BUALA - Associação Cultural I Centro de Estudos Comparatistas (FL-UL). ISBN: 978-989-20-8194-6