Viagem no Deserto – Namibe, Angola
Excerto do livro Viagem no Deserto – Namibe, Angola de Cristina Salvador e Cristina U. Rodrigues, editado pelo IPAD, em Setembro de 2010, dedicado pelas autoras a Ruy Duarte de Carvalho.
Regresso
Chegámos ao fim da viagem. O nosso conhecimento imperfeito daquele deserto, procurámos posteriormente preenchê-lo com a informação que ao longo dos tempos tem vindo a ser produzida sobre aquela área. Informação que fomos procurando sempre cruzar com a emoção do que lá vivemos durante a viagem. No jogo espaço/tempo que pauta as nossas vidas, esta viagem ficou a marcar um compasso que aparece e desaparece como se não tivesse fim.
Sobre as forças da natureza que estão na origem daquele deserto, ficámos com um diminuto conhecimento da sua dimensão e da vastidão das suas influências. Por outro lado, ficámos também divididos pelo contraste entre o horizonte que se estende para além do que é visível e o interesse pelo detalhe de uma pedra, ou da simples prova de uma passagem humana. Lembrando uma dificuldade semelhante do Paul Theroux no Regresso à Patagónia, a de ser obrigado a escolher entre o minúsculo e o interminável, por aí não haver uma zona intermédia de estudo, também nós nos fomos dividindo, entre a vastidão do deserto e a observação da welwitschia, ou entre o reconhecimento da transumância que caracteriza a população daquela área e a atracção pelos testemunhos das tentativas de sedentarização e finalmente entre o presente que lá se vive actualmente e a história do passado que procurámos reencontrar.
Entendemos então que o deserto é um lugar de passagem que pode também ser referido como espaço de criação ou de punição. Na cultura ocidental tem sido identificado ao longo dos tempos como espaço de reencontro consigo próprio ou como espaço de transcendência, é também apontado como lugar de origem das religiões monoteístas (Debray, 2002:66):
“Na verdade, no Primeiro Testamento, o deserto é tão magnético quanto repulsivo. Está carregado de ambivalência: é o castigo de Adão e a salvação de Moisés, lugar de provação e espaço das tentações, próximo do schéol, a morada sombria dos mortos. Nunca é indiferente: ou ressuscita ou faz morrer. É o caos anterior ao acto criador, anterior às chuvas do terceiro dia, anterior ao bem regado jardim do Éden. É também o pó ao qual o homem regressará in fine” (Debray, 2002:66).
Sobre as questões de desenvolvimento ou de ordenamento, de que ouvimos falar, que se colocam naquela área, julgamos dever partir de um grande conhecimento daquele território e do que se lá passa. Essa necessidade de conhecimento que nos empurrou para esta viagem mantém-se, não se esgota de forma alguma nesta escrita. Posso talvez dizer que esta viagem aumentou a nossa percepção dos aspectos incontroláveis da natureza (o vulcão islandês serviu agora de aviso aos distraídos) e desvendou-nos a existência de populações que sabem conciliar uma organização social complexa e uma apropriação simples de recursos naturais, que só pode ser resultado de seu profundo conhecimento do território. Apercebemo-nos também que, estranhamente, no deserto tudo tem vindo a ficar registado e que quem estiver atento e com sorte, às vezes pode ver, entre miragens, fósseis de dinossauros, travessias em fuga, trabalhos forçados, pinturas rupestres, moinhos de vento… A areia às vezes vem e tapa, mas mais tarde o vento limpa, até que a areia volte a tapar. No final desta travessia voltámos novamente ao ponto de partida.
Cristina Salvador.
Nunca se chega a regressar do deserto. As viagens são etapas de regressos cíclicos, começam a fazer sentido quando se volta a um lugar que se percorreu antes. As visitas ao Namibe foram também assim, tanto na revisita física como nas revisitas aos textos e à informação existente sobre o Namibe. Mas, enquanto as paisagens e as gentes recriam as suas próprias formas ao longo do tempo – incluindo o tempo das revisitas –, os textos permanecem fixos nas datas e nas ideias que os forjaram. Quanto mais actualizados, mais terão a possibilidade de dar conta das mudanças. Um dos grandes desafios para o conhecimento de Angola é precisamente produzir novos textos, novos registos da realidade, que dêem conta da transformação das paisagens e das gentes. E não foram poucas as transformações nos últimos anos, se contarmos a partir do momento em que começaram a ser registadas em papel: colonização, descolonização, independência, guerra quase sempre.
Embora o deserto seja antigo, um dos mais antigos do mundo, que mantém ao longo de milhares de anos praticamente as mesmas características, as pessoas do Namibe vão mudando, na maneira de viver e de se relacionarem, nas formas como se adaptam à própria paisagem, onde ela se mantém igual e onde se altera. As mudanças mais rápidas passam-se nas cidades, naquilo que elas geram de novo na paisagem do deserto e na forma como influenciam os espaços que não são cidade. A cidade em si é também potencialmente um deserto.
As pessoas do Namibe estão muito habituadas à mudança, à adaptação. O deserto exige aos seus seres, vivos e inanimados, um esforço de articulação com a paisagem e com a forma como ela está organizada. Uma das mais notáveis características destas pessoas é a capacidade ancestral de integração da mudança, o que conduziu a produções sociais e culturais inéditas, originárias de várias partes de África e do mundo. Daí algumas dificuldades dos etnógrafos e, por vezes mais ainda, daqueles que procuram uma autenticidade étnica ou linguística ou cultural que pudesse ser arrumada e compartimentada. Esta dificuldade de catalogação das pessoas do Namibe não é, contudo, razão para que não se conheçam melhor as suas características actuais e a forma como se têm vindo a alterar ao longo dos últimos tempos. Deixá-las encerradas nos compartimentos dos escritos antigos pode não só contribuir para uma crescente invalidação de tudo o que foi escrito e descrito até agora – porque é cada vez mais difícil reconhecer na realidade dos dias de hoje aquilo que antigamente se escreveu – como também contribui para que se perca a narração de tudo o que se passou desde aqueles escritos da época colonial até à actualidade. Felizmente no Namibe o Ruy Duarte de Carvalho acompanhou as evoluções. Falta repor a informação numa série de outras paragens.
Cristina U Rodrigues.