Nos bastidores do Museu
O recém-modernizado Museu Centro-Africano em Tervuren não se desfaz do velho, nem clarifica a questão dos propósitos servidos hoje por um ‘museu africano’ na Europa. Ao invés, quem o visitar após a sua reabertura confrontar-se-á com a problemática relação entre passado e presente que Tervuren sempre encarnará — e com a presença insistente do fantasma do Rei Leopoldo.
Caminhando pelo estaleiro que é o Museu Real da África Central, equipado com o seu capacete de plástico e calçado de segurança, o director Guido Gryseels deixa escapar a ocasional expressão de surpresa. “Ah - o elefante! Não sabia que já tinha voltado.” As suas palavras ecoam nas paredes altas, algumas das quais pintadas de cima a baixo com vastos mapas de África — nos quais os nomes de lugares, da “África Oriental Alemã” a “Leopoldville”, a aprisionam num breve momento da sua história. Ao lado de um deles, sobre uma porta de entrada, a pintura de uma citação atribuída ao pai fundador do museu, o rei belga Leopoldo II: “Para um povo que ame a justiça, uma missão colonizadora apenas pode ser uma missão de alta civilização”. Noutras salas, pinturas a fresco de aldeias e florestas africanas foram cuidadosamente restauradas mas, por baixo, muitos dos expositores permanecem vazios ou envoltos por panos — por agora. No terceiro ano de um meticuloso projecto de modernização, Gryseels espera que o Museu Real da África Central se possa transformar, após a sua reabertura no fim deste ano, de uma relíquia colonial num museu africano de classe mundial — desse modo finalmente exorcizando alguns dos seus fantasmas persistentes.
“No passado éramos frequentemente rotulados como sendo o último museu colonial no mundo”, explica Gryseels ao chegar ao edifício administrativo, cuja entrada contém uma maquete tenuemente iluminada. “Queremos tornar-nos no museu de África de hoje, queremos trazer uma visão muito mais crítica desse passado colonial — mas é muito difícil”. Alguns dirão que, mais do que difícil, será de todo impossível, dado o pecado original na génese deste museu: a brutal colonização, entre o fim do século XIX e o princípio do século XX, da actual República Democrática do Congo pelo Rei Leopoldo II. Centrado na colheita da borracha, este curto período de exploração selvagem, terá custado a vida a cerca de dez milhões de congoleses, forçados a trabalhar até à morte sob um regime de violenta escravatura.
O “Estado Livre do Congo” era a colónia pessoal de Leopoldo, um conceito que o Rei belga teve dificuldades em fazer aceitar pelos seus súbditos na metrópole — dificuldades essas para as quais muito contribuiu a advocacia de abolicionistas internacionais como Mark Twain. Em O Solilóquio do Rei Leopoldo, uma sátira fulminante da carnificina levada a cabo pelo Rei, Twain descreve a colónia como “uma terra de sepulturas; A Terra de Sepulturas; o Cemitério Livre do Congo.” Estas acusações, terrivelmente verdadeiras, desdiziam Leopoldo, para quem a Bélgica tinha uma responsabilidade moral de salvar os Congoleses da “escravatura Árabe” e de levar a civilização a África — sendo o colonialismo belga consequentemente caracterizado como uma missão benevolente e humanitária.
Coincidindo com o período mais intenso da violência infligida aos congoleses pelos agentes de Leopoldo, a Exposição Internacional de Bruxelas de 1897 marcou o apogeu de uma campanha de propaganda doméstica igualmente animada. Desejante de dar a mostrar os despojos das suas aventuras, Leopoldo fez especificamente construir um “Palácio Colonial” em Tervuren, nos arredores de Bruxelas, albergando conjuntos elaborados e cenários elaborados por arquitetos famosos, para expor uma panóplia de frutas e legumes, instrumentos musicais, escultura e taxidermia. Tais apresentações viram-se no entanto ofuscadas pela perversa exibição nos jardins impecavelmente desenhados do palácio, com cerca de três centenas de homens, mulheres e crianças, na sua maioria Mayombe, Bangala e Basoko, trazidos diretamente do Congo para viver em redor dos canais e lagos de Tervuren, expostos às multidões embasbacadas e ao clima gélido da Europa do Norte.
Doze deles morreram pouco após a chegada. Os sobreviventes foram colocados para exibição, divididos por três diferentes reproduções de aldeias congolesas “tradicionais”, marcando o contraste com uma quarta, a “aldeia civilizada” de Gijzegem. Nesta última, crianças anteriormente levadas para educação em escolas religiosas na Bélgica deveriam demonstrar, ao lado de soldados de infantaria africanos da Force Publique gendarmarie, as virtudes da missão “civilizadora” belga no Congo. “É um legado que, para nós, permanece sendo altamente perturbador”, afirma o historiador congolês Georges Nzongola-Ntalaja, autor de uma extensa obra sobre o colonialismo Belga e a história do Congo, a partir da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA.
No entanto, não obstante alguma má imprensa, a feira foi no geral um sucesso entre o público belga, tendo sido visitada por um terço da população do país. Visando satisfazer tanto o entusiasmo da sua audiência como o seu próprio desejo de deixar um legado, Leopoldo decidiu tornar a sua exibição colonial numa instalação permanente. Para esse fim, um grandioso complexo, a ser construído de raiz, foi desenhado para Tervuren — complexo esse que viria mais tarde a albergar o Museu do Congo belga. A menos de um quilómetro de distância, na igreja local, jazem os Congoleses que não resistiram a Tervuren, sepultados numa fila de campas simples e indistintas.
Visitando o museu muitas décadas depois, em 1995, o jornalista norte-americano Adam Hochschild — cujo livro O Fantasma do Rei Leopoldo (1998) investiga o genocídio levado a cabo por Leopoldo — encontrou-o praticamente inalterado desde a sua abertura. Em galerias escuras com painéis de madeira, tableaux de animais selvagens e pessoas africanas partilhavam um palco; os uniformes de exploradores Belgas estavam cuidadosamente preservados ao lado das suas armas e ferramentas, sob o olhar atento de uma girafa empalhada.
“O que realmente me espantou foi o que não estava lá…” recorda Hochschild. “Podia-se ver uma planta de borracha, por exemplo, mas sem qualquer indicação ao facto de que milhões de pessoas perderam a vida como consequência directa ou indirecta do sistema de trabalho forçado.” Esconso num recanto dos espaços verdes em redor de uma cidade que ainda celebra Leopoldo em inúmeras das suas praças, placas e estátuas, o museu tinha-se tornado, com o passar dos anos, num museu de si mesmo, cultivando uma antiquada fantasia colonial. Em comparação com países como o Reino Unido ou a França, não existe na Bélgica um debate público sobre o longo passado colonial do país, ou sobre o terrível papel que desempenhou na história mais recente do Congo.
Tendo ele próprio crescido perto de Tervuren, Gryseels visitou frequentemente o museu com os seus pais: “Eu lembro-me que quando vim pela primeira vez ao museu, com cinco anos, fiquei verdadeiramente com medo de África, e porque essa era a imagem que te mostravam — que eles eram todos selvagens, armados com lanças, e muito violentos, como se te fossem matar — e claramente a mensagem com que se ficava, também, era que o homem branco era superior ao homem negro… foi só depois de eu mesmo ter começado a trabalhar em África que fui capaz de me distanciar dessa percepção inicial” afirma, referindo-se a uma carreira em desenvolvimento agrícola em vários países do continente africano, incluindo catorze anos nas Nações Unidas, antes de se juntar ao museu como seu diretor. “Para a maioria das crianças belgas, o seu primeiro encontro com África ainda acontece através deste museu; então se é essa a imagem que se apresenta, em que medida, de facto, são as percepções que os belgas têm de África influenciadas? Em que medida se contribuiu para os problemas que temos hoje?
Mesmo agora, envolto em plástico e película de bolhas-de-ar, o velho salão de entrada permanece sendo o elemento mais apelativo e atroz do museu — a mais inequívoca demonstração do seu inerente racismo. Sob uma alta cúpula ao estilo de uma igreja, quatro brilhantes estatuetas de ouro compõem uma cena bizarra, direcionando os visitantes para a mitologia do museu com as suas legendas em placas de bronze: a Bélgica, trazendo a civilização ao Congo; a Bélgica, trazendo bem-estar ao Congo; a Bélgica, trazendo segurança ao Congo; a Bélgica, trazendo libertação da escravatura ao Congo. Num pátio circular posterior, um busto de Leopoldo II olha de soslaio.
O museu não irá reabrir antes do final deste ano, mas os trabalhos de construção encontram-se na sua fase final, oferecendo surpresas a Gryseels no seu caminho — entre elas o regresso da famosa estátua de elefante de Tervuren. Atravessando as galerias, o director indica um espaço para o qual os velhos bustos e estátuas de Leopoldo serão movidos. “Onde quer que eu vá enquanto diretor do instituto, a primeira pergunta que as pessoas me fazem é ‘Como vão os trabalhos’” declara, “E a minha resposta é sempre: ‘Os trabalhos? Essa é a parte fácil. Quando tenho um problema técnico há sempre um engenheiro que consegue encontrar uma solução. Muito mais difícil é: como iremos lidar com as novas exibições? Que tipo de exibições iremos trazer? Como é que traremos o passado colonial?’”
Uma das dificuldades reside no facto da estrutura original ter estatuto de património protegido, não podendo por isso ser demolida; “até o estuque original está protegido” diz Gryseels, apontado para os tetos que ainda estão marcados com os LL da insígnia do pai fundador do museu. O projecto arquitectónico desempenhou, por esse motivo, um papel significativo nesta tentativa de reorientação do museu: defronte do anterior, e reflectindo-o distorcidamente nas suas paredes de vidro, um edifício completamente novo foi construído. A nova entrada para o museu fornece um outro tom; uma loja de recordações e um café, com vista cénica para os jardins, indicam o caminho; e uma passagem subterrânea liga a nova estrutura às salas preexistentes e, por fim, diretamente ao átrio do museu original. A velha propaganda colonial permanece, mas o diretor do museu promete que será reenquadrada e contextualizada.
Segundo a Dra. Kimberley Keith, curadora afro-americana com especialização em sociologia dos museus, “Pode se defender a existência de um museu sobre seja o que for, em qualquer lugar que seja; mas é sempre uma questão da posição de quem fornece a informação… É uma coisa reconstruir um antigo museu — mas quando existem elementos altamente problemáticos na colecção que são parte da arquitectura do espaço, é necessário ser-se muito explícito sobre essas peças.” O Professor Nzongola-Ntalaja, por seu lado, manifesta ambiguidade sobre o lugar ocupado no mundo — e particularmente em Bruxelas — pelo museu Africano: “É o resultado da pilhagem da arte Congolesa, e outros materiais, característica do colonialismo — certamente, possui uma riqueza de materiais em termos de espécies animais e outra vida selvagem, em termos de arte africana, e no que diz respeito a pesquisa arqueológica e mineral nas várias regiões do Congo, mas mais importante que tudo eles têm que reconhecer que pilharam todas essas coisas, e que elas pertencem a África.” Por agora, Nzongola-Ntalaja espera que a digitalização dos arquivos e pesquisa do museu os possa aproximar do povo congolês, mas não exclui a sua posterior repatriação: “Isso é o correcto.”
Com o objectivo de estabelecer o renovado Museu Real da África Central como um museu de novo tipo, para uma nova era, Gryseels afirma existirem planos para comunidades africanas, afro-descendentes e diaspóricas desempenharem um importante papel na sua curadoria, e indica galerias e espaços de performance cuja programação será, após a sua abertura no final deste ano, participativa.
Ainda assim, o director está preparado para a crítica; para muitos, a modernização do museu será insuficiente — e muitos belgas consideram que o velho museu deveria ter permanecido inalterado: “Mas não podemos fingir que ainda estamos no século XIX,” afirma cabisbaixo, “e talvez fosse essa a pequena perversão que o velho museu permitia.”