Acaso subjectivo
Às ordens de quem as dá
entro em casa
como se alguém me esperasse
entro em casa
como se ninguém me esperasse
entro em casa
como se lá vivesse há muito, há pouco
entro em casa
como se lá não vivesse ninguém
entro em casa
como se ela estivesse a ruir devagar
entro em casa
como se ela já fosse ruína de pleno direito
entro em casa
e o incêndio vem atrás de mim
entro em casa
pois fachada após fachada ela se me fecha
entro em casa
pela porta das traseiras
entro em casa
por uma janela aberta
entro em casa
mas afinal enganei-me na porta
entro em casa
e lá dentro chove
entro em casa
mais devagar do que um raio de sol
entro em casa
e levo com uma porta invisível na cara
entro em casa
e não vou além da entrada
entro em casa
à procura da luz interior
entro em casa
mas sou impedida de avançar por uma matilha de cães que me lambem os pés
entro em casa
a casa descola brutalmente do solo e eu não sei onde me agarrar
entro em casa
rastejando como a serpente soldado
entro em casa
e esvazio imediatamente os bolsos
entro em casa
e demoro muito tempo a esfregar os pés
entro em casa
e anuncio que o regresso à ficção será realmente ficcionado
entro em casa
e descalço os sapatos do futuro
entro em casa
e reparo que ainda lá não vivi
entro em casa
porque alguém me levou ao colo
entro em casa
empurrada pela ideia de guarda-costas
entro em casa
e posso começar a chorar por mim e para mim
entro em casa
e chamo por todos os que lá viveram
entro em casa
e sou decapitada por um sonho
saio de casa
e afinal a minha rua
só pode ser outra
Acaso subjectivo
1
a minha mãe ensinou-me a escolher a fruta consoante o peso e o cheiro
a minha mãe ensinou-me a fazer arroz solto nem que seja embrulhando o tacho num jornal
a minha mãe ensinou-me a escolher uma linha no cimento do passeio para caminhar bem a direito
a minha mãe ensinou-me a ter vergonha de esbanjar quando se pode poupar
a minha mãe ensinou-me a empurrar a comida com um bocado de pão coisa que raramente faço embora seja tão bom
a minha mãe ensinou-me a andar com um lencinho enfiado na manga mas eu detesto mangas apertadas
a minha mãe ensinou-me a não chorar quando não é preciso
o meu pai ensinou-me a chorar quando não é preciso.
2
frente ao prato quase cheio
a criança pensa:
se eu deixar o melhor para o fim
posso já não ter fome
nem sequer apetite
quando lá chegar.
no meio dos vinhedos em brasa
sob um céu impiedosamente azul
um bando de trabalhadores magrebinos
podando os ramos ladrões
das videiras recém-plantadas
enquanto de um rádio portátil
jorram cânticos religiosos
não se entende se alegres
ou apenas alegremente laboriosos.
irmanados por gavinhas
que os ligam ao Islão
daquele futuro vinho
eles não beberão.