Das tragédias históricas do povo caboverdiano e da saga da sua constituição e da sua consolidação como nação crioula soberana

SEGUNDA PARTE1

Constituem os textos que ora se publicam a segunda parte de um longo ensaio de José Luís Hopffer C. Almada intitulado Das tragédias históricas do povo caboverdiano e da saga da sua constituição e da sua consolidação como nação crioula soberana. Uma versão muito abreviada da primeira parte do mesmo ensaio e referente ao período colonial foi integrada como “Notas preliminares” na “Introdução” ao livro O Ano Mágico de 2006 - Olhares Retrospectivos sobre a História e a Cultura Caboverdianas

Pretendem os presentes subsídios ser um modesto contributo para as, felizmente, cada vez mais frequentes e aprofundadas reflexões sobre a história política recente de Cabo Verde e, em especial, sobre as vicissitudes relativas à implantação do regime de partido único e da democracia plena no nosso país.  

 

PROCESSOS POLÍTICOS PÓS-COLONIAIS e dialécticas da consolidação do povo caboverdiano como nação crioula soberana        

                                           

As dissenções políticas no período pós-25 de Abril de 1974 

1.1. O 25 de Abril de 1974 marca o início de uma nova era não só na história do povo português, como também de todos os povos das ex-colónias portuguesas, maioritariamente africanas.

 Em Cabo Verde, as repercussões imediatas da revolução dos cravos divisaram-se de forma nítida em amplas campanhas e movimentações políticas, tornadas possíveis devido ao novo quadro de liberdades democráticas propiciado pela queda do regime autoritário do Estado Novo.

   As mesmas campanhas e movimentações políticas iniciaram-se, na Praia e no Mindelo, a trinta de Abril de 1974, data das primeiras manifestações públicas de regozijo pela queda do fascismo português e pela concomitante irrupção das liberdades democráticas com o 25 de Abril de 1974.

    Aos eventos de 30 de Abril de 1974 seguiram-se, imediatamente, as jornadas políticas conexas com a libertação, a 1 de Maio de 1974, dos presos políticos caboverdianos e angolanos, primeiramente da famigerada prisão política (denominado de forma eufimística Campo de Trabalho ) do Tarrafal, e, depois, de outras masmorras políticas.

  Essas primeiras acções políticas foram desenvolvidas e protagonizadas por forças políticas caboverdianas, umas em semi-clandestinidade (como no caso do PAIGC que, então, utilizou a sigla FAAC (Frente Ampla Anti-Colonial), outras então em emergência, em toda a pujança da sua plena radicação no solo das ilhas.

 As mesmas forças políticas comungavam de diferentes ideários políticos e ideológicos e tinham diversos posicionamentos no que respeitava à questão crucial da independência e da soberania de Cabo Verde e da sua futura inserção no xadrez político e geo-estratégico então em vias de reconfiguração e susceptível de, no quadro da Guerra Fria que então se encontrava no seu auge, emprestar uma nova dinâmica ao Atlântico Médio e a África.

  As movimentações políticas propiciadas pelo 25 de Abril de 1974 materializar-se-iam, nesse contexto de dissensões, em intensas lutas políticas entre as diversas forças partidárias actuantes no terreno, designadamente, o PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), a UDC (União Democrática de Cabo Verde) e a UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde).

    Relembre-se neste contexto que, muito imbricados com os apetites das grandes potências e os respectivos interesses geo-estratégicos então em jogo, eram assaz diferenciados os perfis políticos e ideológicos das forças partidárias em liça ferrenha no chão de Cabo Verde.

    É assim que o PAIGC se apresentava como o único e autêntico movimento de libertação nacional do povo caboverdiano, alegando para seu beneficio a circunstância de ser detentor de sólidos pergaminhos trazidos da luta político-militar e diplomática e da luta clandestina  pela autodeterminação do povo de Cabo Verde bem  como da luta armada conduzida com inegável sucesso no território da anteriormente chamada Guiné portuguesa, também com decisiva participação de combatentes caboverdianos. A relevância da luta armada teria  ficado comprovado nos factos de a mesma ter conduzido à proclamação unilateral da República da Guiné-Bissau e ter culminado na perpetração do golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 por oficiais portugueses maioritariamente colocados no teatro da Guerra colonial da Guiné.

   Ademais, apresentava-se o mesmo partido como sendo tributário do pensamento de Amílcar Cabral, capitalizando, assim, a seu favor a aura mítica (e, até, mística em certos círculos populares caboverdianos, nomeadamente entre as populações rurais de Santiago e os estudantes universitários) e as ressonâncias heróicas dos seus combatentes, dos seus presos políticos e dos demais militantes da luta política clandestina conduzida nas ilhas e diásporas caboverdianas para exigir a independência total e imediata das ilhas e alvitrando uma futura união orgânica entre as ilhas afro-atlânticas e a República da Guiné Bissau no quadro de um modelo de sociedade de teor socializante, da qual seriam extirpadas a “exploração do homem pelo homem” e todas as formas de “sujeição do ser humano a interesses egoístas ou degradantes de grupos ou de classes sociais”.

  Subjacente ao projecto de unidade política entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde estariam ideários pan-africanistas muito em voga nessa altura, estratégias desenvolvimentistas num quadro de alegada complementaridade económica entre os dois países bem como o resgate da chamada dimensão africana da caboverdianidade tida por indispensável para a catarse cultural, o renascimento identitário e a integral libertação cultural dos filhos das ilhas de Cabo Verde.

 Por seu lado, a UDC congregava nas suas fileiras antigos defensores da adjacência político-cultural de Cabo Verde a Portugal, agora reciclados para o autonomismo político e o federalismo spinolista. A mesma força política apresentava-se (e era geralmente catalogada) como sendo de feição crioulo-lusitana (para usar uma expressão muito cara a Gabriel Fernandes) e de inspiração spinolista e, por isso, tida por assumidamente contrária “à independência imediata e total” de Cabo Verde, defendendo antes uma solução federalista com Portugal e um período longo de transição antes de uma eventual assunção da soberania nacional enquanto resultado possível de um referendo a ser impreterivelmente realizado como forma de exercício do direito à autodeterminação do povo caboverdiano.

   Por seu turno, a UPICV proclamava-se como sendo de ideologia maoísta e pró-chinesa, e, por isso, posicionava-se como contrária ao “imperialismo americano”, considerado como aliado natural do colonialismo português e dos seus “fantoches spinolistas autóctones”, e ao “social-imperialismo soviético”, de cujo expansionismo e hegemonismo o PAIGC era considerado mero instrumento e peão políticos.

  No âmbito do seu programa e da sua propaganda política, a UPICV apresentava-se com uma grande veemência soberanista e, nesta óptica, defensora de um nacionalismo caboverdiano estrito e, por isso, ferrenhamente contrária tanto a soluções federalistas de inspiração spinolista como à “união forçada” com a Guiné-Bissau. Este último projecto era desqualificado como consubstanciando meras estratégias de manutenção dos povos da Guiné-Bissau sob a órbita e a dominação da pequena-burguesia caboverdiana imigrada, desde os tempos do tráfico negreiro, passando pelas chamadas guerras de pacificação (de ocupação efectiva) e da edificação da moderna administração colonial, naquele território africano. Aliás, a sua oposição ao projecto de unidade Guiné-Cabo Verde parecia sobrepor se, em termos de propaganda política,  a qualquer outra finalidade política imediata e, malgré o confesso pan-africanismo de José Leitão da Graça, o seu líder histórico, tirar partido de seculares e arreigados preconceitos anti-(negro)africanistas no seio das populações caboverdianas de todas as ilhas.

   Ao mesmo tempo, a mesma força política pugnava, em termos programáticos, por uma identidade africana que fizesse jus às especificidades insulares e históricas de Cabo Verde. A pugna pela identidade africana do povo de Cabo Verde inspirava-se, outrossim, tanto no pan-africanismo político de Kwame Nkrumah, como também, e paradoxalmente, na reciclagem afro-insular das teses relativas à originalidade crioula da cultura caboverdiana, sustentadas quer por Gabriel Mariano quer ainda por Manuel Ferreira.

    Simultaneamente, defendia o líder da UPICV a realização de amplas e radicais transformações político-sociais, de carácter assumidamente socialista, e nas quais uma reforma agrária anti-latifundiária e anti-capitalista bem como a nacionalização dos meios de produção e dos bens industriais e comerciais ocupavam lugar de relevo.

   Como rezam os anais mais recentes da história caboverdiana, as jornadas e movimentações políticas subsequentes ao 25 de Abril de 1974 ficaram muito marcadas pela inusitada, festiva e entusiástica frequência de comícios, sessões de esclarecimento, saraus culturais, greves e outras acções de massas. Como é também sabido, as mesmas jornadas e movimentações políticas atingiram o seu auge no período que antecedeu a constituição do Governo de Transição do Estado de Cabo Verde, culminando com a neutralização política e a prisão dos apoiantes da UPICV e da UDC, partidos adversários do PAIGC.

     Anote-se que a neutralização da UDC, enquanto organização política, ocorrera meses antes, na sequência dos acontecimentos do 28 de Setembro em Portugal e da consequente queda em desgraça do General Spínola e do Partido do Progresso. Por seu lado, a neutralização e a repressão políticas da UPICV (onde, aliás, encontraram refúgio muitos dos ex-militantes da UDC) tem lugar no quadro da exacerbação das divergências entre os diferentes actores políticos, actuantes tanto na metrópole como na ainda província ultramarina, e insere-se na adopção de tácticas mais radicais de tomada de poder ou de efectiva ocupação de lugares nucleares da luta política, como atesta a tomada, a 9 de Dezembro de 1974, da Rádio Barlavento (então considerada como porta-voz das ideias dos adversários do PAIGC). A neutralização, que se queria definitiva e irreversível, dos responsáveis e apoiantes da UPICV materializa-se de forma cabal, nesses dias iniciais do mês de Dezembro de 1974, isto é, imediatamente antes da assinatura do Acordo de Lisboa, acima referido, com a prisão dos seus militantes e dirigentes mais destacados, tendo o próprio Leitão da Graça, talvez o mais proeminente adversário político do PAIGC na altura, escapado ao encarceramento político por, na altura, se encontrar em campanha política no estrangeiro. Na sequência da sua neutralização política, os adversários políticos do PAIGC são encarcerados no famigerado presídio de Chão Bom (vulgo campo de concentração do Tarrafal).

  Deste modo e para os efeitos das acima mencionadas neutralização e repressão políticas dos opositores do PAIGC, a prisão do Tarrafal foi temporariamente reactivada para ser, finalmente, definitivamente encerrada nas vésperas da independência nacional com a transferência da esmagadora maioria dos supra.referidos presos políticos para Portugal, e a sua transformação em centro de instrução político-militar das FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo).

    A neutralização e a repressão políticas dos adversários do PAIGC ocorrem por iniciativa desse último partido e de populares em histeria e por ele mobilizados. Ela contou com a conivência política e táctica e o apoio logístico do Movimento das Forças Armadas (autor do golpe de estado de 25 de Abril de 1974 e principal responsável político-militar pela revolução portuguesa dos cravos e pela concretização da descolonização, constante do seu programa, que ademais incluía entre os seus três “D” a democratização e o desenvolvimento de Portugal).

    É o MFA - Cabo Verde, que assume a responsabilidade política e a direcção operacional da prisão dos adversários políticos do PAIGC, por alegadamente se terem sistematicamente posicionado como fautores de desestabilização e contrários à descolonização, um dos pontos fundamentais do programa da mesma organização político-militar. Para tanto, contou o MFA quer com a aliança de dirigentes políticos independentistas quer com a prestimosa colaboração de personalidades, incluindo caboverdianas, colocadas no aparelho judiciário e então conotadas com o PAIGC.

   1.2. A neutralização e a repressão políticas dos adversários do PAIGC comprovar-se-iam como de importância decisiva para a ulterior evolução dos acontecimentos históricos e para a configuração do regime político indicialmente instaurado no período de transição e posteriormente implantado de jure no país soberano e independente, na medida em que são as mesmas que desenham o quadro político no qual seriam definitivamente abalizadas as forças políticas que negociariam as cláusulas e os trâmites que iriam conduzir Cabo Verde à soberania nacional e à configuração jurídico-constitucional do regime político posteriormente implantado no país. Como viria efectivamente a ocorrer.

Com efeito, depois de um período de transição que se inicia com a entrada em funções de um Governo constituído por um Alto Comissário que o chefiava, por ministros portugueses - tal como o Alto Comissário, propostos por Portugal - e por ministros caboverdianos, indicados pelo PAIGC, o Presidente da Assembleia Nacional Popular, Abílio Duarte, proclama, a 5 de Julho de 1975, no Estádio da Várzea da Cidade da Praia, “a República de Cabo Verde, livre, independente e soberana”.  

    Relembre-se que, nos termos do Acordo de Lisboa, de 19 de Dezembro de 1974, celebrado entre o Governo Provisório da República Portuguesa e o PAIGC, tinha sido instituído o Governo do Estado de Cabo Verde, entidade de transição, de natureza semi-autónoma no quadro da República Portuguesa, criada no período final do Estado Novo e ratificado pelos Acordos de Lisboa de 19 de Dezembro de 1974. Ao Governo de Transição que encabeçava o Estado de Cabo Verde incumbia primacialmente assegurar as condições de sobrevivência das populações de Cabo Verde na difícil conjuntura social, económica e climatérica reinante nos meados dos anos setenta do século XX bem como preparar as condições jurídicas e políticas para a proclamação da independência das ilhas atlânticas situadas ao largo da costa ocidental africana. 

   Para tanto, foi prevista a formação de um parlamento, constituído por deputados eleitos por sufrágio universal, directo e secreto em listas plurinominais de candidaturas apresentadas por grupos de cidadãos. Nos termos da lei eleitoral aprovada pelas autoridades soberanas portuguesas, caberia a esse parlamento a proclamação, a 5 de Julho de 1975, do Estado independente e soberano de Cabo Verde e a aprovação, no prazo de três meses após a independência, de uma Constituição política para esse mesmo Estado soberano.

  Anote-se que as listas eleitorais para a constituição dessa Assembleia Legislativa, dotada, como já referido, de poderes soberanos e constituintes, foram apresentadas unicamente por grupos de cidadãos afectos ao PAIGC, já que os adversários desse partido, anteriormente agrupados no seio da UDC e na UPICV tinham sido politicamente neutralizados, tendo alguns deles sido presos no Tarrafal. 

     Nesta óptica, mais do que eleições, no sentido próprio de disputas eleitorais

competitivas entre os programas defendidos por candidatos de diversas forças politicamente organizadas, o escrutínio de 30 de Junho de 1974 para a Assembleia Nacional Popular constituiu um verdadeiro referendo à independência de Cabo Verde e ao princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, bem como um claro plebiscito à instituição de um regime de partido único, liderado pelo PAIGC, e à correspondente composição monocolor dos futuros órgãos políticos de soberania do Estado independente, prestes a ser proclamado.

                      1.3. Relembre-se nesta circunstância que o referendo foi continuada e virulentamente causticado por intelectuais e responsáveis políticos afectos ao PAIGC durante as campanhas de mobilização política para a independência.

   Nas fileiras do PAIGC, a independência política era entendido como um direito natural e inalienável de todos os povos colonizados, para mais consagrado no Direito Internacional e nas pertinentes resoluções da OUA (Organização da Unidade Africana) e da ONU (Organização das Nações Unidas). Na óptica desse partido, dos seus mentores e dos seus adeptos, o povo caboverdiano teria, ao longo de uma história secular e, especialmente a partir da década de cinquenta do século XX, demonstrado de forma suficiente e insofismável a sua inabalável vontade de independência. A participação de caboverdianos na luta armada de libertação conduzida na Guiné-Bissau pelo PAIGC, o encarceramento de muitos anti-colonialistas ilhéus nas masmorras do célebre campo de concentração do Tarrafal e em outras prisões políticas (como a cadeia do Aljube, em Portugal, a cadeia civil da Praia, os campos de concentração de S. Nicolau e da Foz do Cunene, em Angola), as demonstrações maciças, no pós-25 de Abril, de pública simpatia em relação ao movimento de libertação fundado por Amílcar Cabral bem como as manifestações populares de júbilo aquando do regresso da luta armada de dirigentes caboverdianos, como Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva, Pedro Pires e Aristides Pereira, seriam as provas mais eloquentes dessa inabalável vontade de soberania nacional.  

      Nas hostes políticas dos adversários do PAIGC, o referendo foi empunhado como importante arma política e feito cavalo de batalha democrática. Assim, tanto os partidários confessos da UDC como também intelectuais anti-fascistas de extracção claridosa, como Baltasar Lopes da Silva, António Aurélio Gonçalves e Henrique Teixeira de Sousa (integrantes da Associação Democrática de Barlavento -depois denominada Associação Democrática de Cabo Verde, antes de se transformar em UDC) consideravam que o referendo era o instrumento jurídico e político mais adequado para o apuramento democrático da vontade popular e, por isso, o mais legítimo meio de exercício por parte do povo caboverdiano do seu inalienável direito à autodeterminação política. Na óptica de Henrique Teixeira de Sousa, um prestigiado defensor da “autonomia de Cabo Verde no quadro da Nação Portuguesa” como “solução de recurso”, em alternativa a “uma desejável, mas inviável independência total”, o mesmo referendo que, considerado como inaceitável nas colónias portuguesas, nas quais tiveram lugar lutas armadas para a obtenção da independência, era tido por indispensável nas condições específicas de Cabo Verde, colónia onde não houve lugar a nenhuma forma de luta armada e habitada por um povo cuja originalidade identitária teria sido fortemente marcada pela cultura portuguesa. Na óptica desse antigo militante das Juventudes Comunistas Portuguesas e do MUD (Movimento da Unidade Democrática) -Juvenil, ex-Presidente da Câmara Municipal de S. Vicente e autor dos ensaios Cabo Verde e a sua Gente, de 1954/1958, e Cabo Verde e o seu Destino Político, de Julho de 1974, o referendo de autodeterminação devia incidir sobre as seguintes opções: a) associação com Portugal na modalidade de região autónoma; b) integração plena na República Portuguesa; c) independência total.

    A alternativa consubstanciada na associação política de Cabo Verde com a Guiné-Bissau, também cogitada por Teixeira de Sousa como questão referendária eventualmente dotada de alguma pertinência política, foi depois contundentemente rejeitada pelo mesmo intelectual por razões de diverso teor: a) identitárias, designadamente a alegada “falta de afinidades culturais entre as populações dos dois países”; b) históricas, supostamente fundadas nos “fortes ressentimentos dos “guinéus” em relação aos caboverdianos, devido à participação destes nas guerras coloniais de pacificação e na administração colonial, não obstante a determinante participação caboverdiana na direcção da luta de libertação nacional liderada pelo PAIGC; c) pragmáticas, designadamente a pobreza e o subdesenvolvimento dos dois territórios e a correlativa e necessária competição entre ambos na angariação de ajudas externas.

   Inicialmente defensora da realização de um referendo de autodeterminação em termos idênticos aos defendidos pela UDC e por Teixeira de Sousa, a UPICV passa, depois, a defender a realização de uma consulta popular incidente exclusivamente sobre a questão da associação política (“união forçada” na terminologia de José Leitão da Graça, o líder desse partido nacionalista) com a recém-proclamada República da Guiné-Bissau.

    Tal como o PAIGC, também passou a UPICV a defender a posição segundo a qual seria moralmente inadmissível perguntar a um escravo se queria ser livre.  

   Embora nunca formalmente aceite pelo PAIGC, o referendo viria, assim, a demonstrar-se, enquanto modalidade de consulta popular, como um expediente jurídico-político de consequências decisivas para o futuro de Cabo Verde, mesmo se utilizado de forma encapotada e sob denominação diversa.

  Vencidas que foram as “eleições referendárias” de 30 de Junho de 1974 por uma maioria esmagadora de votos favoráveis (“sim”) às listas propostas pelos grupos de cidadãos afectos ao PAIGC, o Estado independente de Cabo Verde iniciava, num Julho marcado pela expectativa de novas e muito boas as-águas, a sua saga como Estado plenamente soberano, ainda que dirigido por um partido bi-nacional, o PAIGC, o qual se pretendia consubstanciador privilegiado dos propósitos da “reafricanização dos espíritos” e da “opção por um destino africano, livremente escolhido”, como propugnavam Amílcar Cabral e Manuel Duarte, e consta do texto da proclamação solene da independência de Cabo Verde.

       1.4. Por sua vez, no período sequente às soberanias nacionais, primeiramente da República da Guiné-Bissau – relembre-se, proclamada unilateralmente, ainda no decurso da luta armada, a 24 de Setembro de 1973, e reconhecida por Portugal a 10 de Setembro de 1974 -, e depois, da República de Cabo Verde, a união orgânica entre os dois países, reiteradamente apresentados como irmãos (por assim dizer, siameses porque de dois corpos e um só coração e, assim, implícita e inesperadamente condenados a uma perene união, sob pena de morte, caso o seu comum coração fosse dividido pelos dois corpos historicamente separados), foi sendo encarada de forma cada vez mais politicamente dúbia e pragmática e, deste modo, adiada para um futuro cada vez mais longínquo, quando finalmente estivessem criadas as condições objectivas para a sua efectiva concretização e as condições subjectivas para a sua plena e ponderada (consciente, no jargão político da época) aceitação por parte dos povos da Guiné e de Cabo Verde, que o deviam aprovar em consulta popular.

     Nesta óptica, o III Congresso do PAIGC, de 1977, reconheceu, de forma expressa e inequívoca, a existência de duas nações, culturalmente distintas - ainda que irmanadas pela história, pela luta de libertação nacional e pelo destino político - e doravante constituídas em dois Estados independentes e soberanos, a República da Guiné-Bissau e a República de Cabo Verde. O mesmo Congresso escolheu as vias da cooperação intergovernamental e da gradual integração infra-estrutural e económica entre os dois territórios como as mais seguras para a implementação do projecto de unidade entre os dois povos, num contexto em que a supra-nacionalidade do PAIGC, erigido em partido único nos dois países, era cada vez mais erodida pela crescente autonomização e pelo cada vez mais patente soberanismo dos ramos nacionais do mesmo partido, dotados de órgãos próprios de direcção nacional e cada vez mais consagrados e adaptados aos objectivos de desenvolvimento e às condições sociológicas pós-coloniais específicas de cada um dos respectivos países. 

     O sonho cabraliano de construção de uma pátria africana binacional nas terras da Guiné e de Cabo Verde seria violentamente desfeito com o golpe de Estado de Bissau, de 14 de Novembro de 1980, e com os acontecimentos que se lhe seguiram nos dois países, designadamente a constituição do ramo insular do PAIGC em partido plenamente autónomo e soberano, estritamente caboverdiano, o PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde).

 Anote-se, a título de curiosidade, que a pátria africana binacional almejada por Amílcar Cabral e constante do programa maior do PAIGC era considerada como antecâmara da futura e gradual unificação política do continente africano. A mesma pátria africana binacional foi igualmente teorizada e tida, implícita e simultaneamente, como herdeira parcial dos antigos Rios da Guiné do Cabo Verde e sucessora do antigo conjunto provinciano constituído pelas ilhas de Cabo Verde e pelo seu distrito guineense, conjunto esse subsistente até 1879, quando, na sequência do Desastre de Bolor, no qual foram chacinados muitos militares caboverdianos destacados para as guerras de subjugação, ditas de pacificação, dos povos guineenses, o território continental até então sujeito à autoridade e jurisdição do Governo-Geral sedeado na Praia, foi desanexado da província de Cabo Verde e constituído em província ultramarina directamente dependente da metrópole portuguesa.

 

                                                    II

 

        Transformações político-sociais e regime de partido único

 

      2.1. A independência política de Cabo Verde marca não só o início de um conjunto de transformações e de reformas estruturais visando mudar a face famélica e o destino incerto do povo do Sahel insular, até então sintomaticamente denominado “arquipélago da fome”, como também a institucionalização formal de um regime político de partido único.

   Na ausência, nos primeiros cinco anos da independência, de uma Constituição formal, a natureza monopartidária do regime ficou, desde logo, consagrada na chamada LOPE (Lei da Organização Política do Estado), adoptada, a 5 de Julho de 1975, pela recém-eleita Assembleia Nacional Popular para servir como Lei Fundamental do país, enquanto que os princípios e os objectivos constantes do programa maior do PAIGC foram dotados pela mesma LOPE de força política e jurídica supra-constitucional.

     Nesta óptica, serviram tanto esse programa (aliás, omisso quanto à questão do regime de partido único, mas muito detalhado quanto ao modelo de sociedade, ao sistema de governo e ao modelo económico-social, às funções e tarefas do Estado, aos direitos e deveres fundamentais de natureza pessoal, política, económica, social e cultural dos cidadãos dos Estados soberanos e independentes da Guiné-Bissau e de Cabo Verde), como as resoluções dos competentes órgãos partidários dirigentes, quer os supra-nacionais quer os nacionais, como parâmetro de interpretação das normas jurídicas importadas do período colonial.

    O mesmo programa foi também fonte de inspiração política e de enquadramento ideológico para a promoção de medidas e de acções com vista à transformação económica, social e política do país e para servir o desiderato revolucionário da construção progressiva de uma “sociedade sem exploração do homem pelo homem”.

     As transformações sociais iniciadas com a independência repercutiram-se no conjunto da sociedade caboverdiana e ficaram juridicamente consignadas em inúmeros diplomas legais, sendo de se destacar aqueles que:  

  I) No domínio do casamento e da filiação, consagraram alguns princípios e soluções, sumamente inovadores e pioneiros, como os seguintes: o princípio da plena igualdade entre o homem e a mulher; o direito ao divórcio; a plena igualdade jurídica entre os chamados filhos legítimos e ilegítimos e a correlativa extinção da discriminação legal e patrimonial dos chamados filhos ilegítimos (isto é, dos filhos nascidos fora do casamento); a institucionalização da união de facto e, quando reconhecida, a sua equiparação ao casamento convencional; a plena validade do casamento civil em detrimento do casamento religioso, etc.

    A aprovação dos diplomas legais relativos ao casamento e à filiação denota uma clara vontade política da reestruturação do direito de família em consonância com os parâmetros e as exigências da edificação de um Estado laico, no qual vigorasse a efectiva separação entre as Igrejas e o poder público, e culmina com a aprovação pelo DL nº 58/81, de 20 de Janeiro, de um novo Código de Família e a correlativa revogação do livro IV do Código Civil, relativo à mesma matéria. 

   A aprovação dos textos legais acima referidos insere-se nos esforços encetados pelo Governo do Estado soberano caboverdiano bem como pelo partido único que o dirigia e pela sua ala feminina, depois constituída em organização de massas, a OMCV (Organização das Mulheres de Cabo Verde), com o fito declarado da emancipação da mulher, do reconhecimento da igual dignidade social e da plena igualdade jurídica de todos os cidadãos, concomitantemente com a consagração de alguns costumes e tradições caboverdianos quanto à constituição da família.  

      Apesar da sua pretensão de ruptura radical com o status quo jurídico, social e religioso vigente no período colonial, ou por causa dela, o Código de Família não acolheu contudo algumas práticas, correntes nos meios rurais caboverdianos, como o rapto da mulher (com ou sem o seu consentimento) para efeitos de constituição da família. Curiosamente, o consentimento da mulher viria a ser acolhido depois no novo Código Penal como causa de exclusão da ilicitude no crime de rapto para efeitos matrimoniais.    

    As mudanças no estatuto da mulher bem como nas questões do casamento e da filiação estenderam-se:

a) Ao domínio comercial, com a revogação da norma que sujeitava a conclusão de negócios comerciais por parte da mulher à autorização prévia do marido;

b) Ao domínio penal com a aprovação de leis novas relativas ao crime de violação e a outras ofensas contra a autodeterminação sexual da mulher e, particularmente, da mulher menor de idade (com destaque para as recentes leis de criminalização da pedofilia e do abuso sexual de adolescentes e de crianças).

    O novo quadro jurídico-penal teve nítidas repercussões em certos atavismos da sociedade patriarcal caboverdiana, oriundos de uma tradição muito marcada e influenciada pelas concepções morais mais conservadoras de certos círculos religiosos, católicos e não só. É o que ocorreu com a descriminalização do adultério da mulher casada, a despenalização dos denominados crimes contra a natureza (com destaque para a homossexualidade), bem assim com a antiga relevância social e penal da chamada virgindade da mulher e do sequente casamento como causa tanto de isenção da pena (que não de exclusão da responsabilidade penal) do agente da violação dessa mesma virgindade como de reposição da honra da ofendida.

   São ainda de se destacar a enorme extensão que, no período pós - independência, conheceu a protecção da saúde materno-infantil bem como as visíveis mudanças de mentalidades quanto à condição da mulher e à sua auto-determinação pessoal.

    Tais factos, porque portadores de indesmentível relevância histórica, reflectir-se-ão na aprovação, em 1986, de uma muito liberal (ou, se quiser, permissiva) lei de interrupção voluntária da gravidez. A aprovação desta última lei viria consagrar juridicamente uma situação de muita e visível tolerância social em relação ao aborto (aliás, amiúde praticado clandestinamente ou de forma semi-legal em hospitais públicos), a despeito da ferrenha oposição à mesma lei por parte da Igreja Católica e de certos círculos sociais e mediáticos ligados à sua hierarquia (como, por exemplo, o jornal Terra Nova) ou, ainda de outros personalidades, mais renitentes em relação à despenalização do aborto por razões de foro íntimo, conexas com o valor que atribuem à vida humana intra-uterina, como no caso de alguns deputados da altura, como Tomé Varela da Silva.

   Anote-se que, curiosamente, foram nas áreas relativas ao estatuto, à dignidade e à autodeterminação da pessoa humana que se verificaram as maiores fracturas na super-estrutura jurídico-legal herdada do período colonial e incorporada no aparato jurídico-legal do estado soberano caboverdiano e do regime de partido único instalado nas ilhas. 

II) No domínio agrário: extinguiram, já em 1975, o regime de parceria rural, limitaram a aplicação do regime de arrendamento rural, proibiram o sub-arrendamento rural, estabeleceram (exíguos) montantes máximos de rendas, ratificaram a ocupação ou nacionalizaram algumas propriedades rústicas, como as dos Engenhos, da Boa Entrada, do Cerrado ou de Chã de Tanque, confiscaram outras, designadamente as dos chamados “inimigos do povo”, como atestam os exemplos do bananal de Santa Cruz e de outras propriedades rústicas e urbanas, sobretudo as localizadas na ilha de Santiago.

III) No domínio económico: institucionalizaram uma economia mista que assentava em três formas de propriedade (a pública, a cooperativa e a privada) e tinha o sector empresarial público, formalmente regido pelo princípio da planificação central da economia, como o sector dominante; estabeleceram o controlo da moeda e do comércio externo, incentivaram a criação de cooperativas de consumo e de produção, orientadas técnica e politicamente por uma Central pública de cooperativas denominado Instituto Nacional de Cooperativas, e regularam o comércio interno, com o intuito expresso de assegurar o regular abastecimento das populações em bens essenciais, combater a especulação e limitar o comércio privado, como, na realidade, foi praticamente efectivado pela EMPA (Empresa Pública de Abastecimentos), a sucessora da extinta SAGA.

 iv) No domínio político: estabeleceram as traves - mestras de um regime autoritário de “democracia nacional revolucionária”, alegada e formalmente assente numa ampla participação popular.

       A Constituição Política de Setembro de 1980 viria consagrar plena e detalhadamente a democracia nacional revolucionária como praxis política e denominação oficial do regime autoritário de partido único implantado desde os alvores da independência de Cabo Verde nos seus traços jurídico-legais essenciais pela LOPE.

   Esse regime, doravante constitucionalmente modelado, apresentava-se como fundada na soberania popular, na unidade nacional entre todas as categorias e classes sociais bem como numa democracia participativa, pensada como componente nuclear de uma democracia popular e de um regime de assembleia, consubstanciados num parlamento, a Assembleia Nacional Popular (ANP), constituído de deputados eleitos por escrutínio universal, directo e secreto em listas únicas de candidatos propostos pelo partido único e qualificado como detentor exclusivo do poder legislativo e órgão supremo do poder do Estado e, por isso, fonte primacial de legitimação do poder executivo e da chefia do Estado. É fazendo jus a essa óptica que tanto o Presidente da República como o Primeiro-Ministro eram escolhidos de entre os deputados da ANP, parlamento onde os membros do Governo tinham assento quando também fossem deputados.

   Os órgãos políticos do poder do Estado coexistiam com um poder judicial, delineado como detentor exclusivo da função jurisdicional do Estado e constituído de juízes, adstritos ao dever de julgar exclusivamente segundo a lei e a sua consciência, mas carente de órgãos próprios de autogestão e, por isso, fortemente dependente do poder executivo e do Chefe do Estado para os efeitos da sua composição bem como da gestão e do exercício do poder disciplinar sobre os magistrados. Ao Ministério Público, que funcionava “junto dos tribunais” e era superiormente dirigido por um Procurador-Geral proposto pelo Governo e nomeado pelo Presidente da República, cabia representar o Estado, os menores e outros incapazes, para além da titularidade da acção penal e da direcção da instrução (preparatória e contraditória) dos processos penais.

     Anote-se que, fazendo jus à arquitectação da natureza do regime instituído e do sistema de governo como de assembleia, todos os órgãos de soberania, denominados órgãos do Poder do Estado, estavam subordinados aos princípios da unidade (unicidade) do poder e da fidelidade aos princípios e objectivos de uma Constituição que entronizava o partido único como força política dirigente da sociedade e do Estado e o integrava nas Instituições da República, cabendo-lhe nomeadamente a definição do programa político, social, económico e cultural bem como o estabelecimento das etapas da chamada reconstrução nacional do país.

    Assinale-se ainda que, em conformidade com o princípio da unidade do poder, cabia à Assembleia Nacional Popular proceder à fiscalização abstracta de todas as normas jurídicas, incluindo as aprovadas por ela própria, restando ao poder judicial a fiscalização concreta difusa das normas, quando devida e tempestivamente impugnadas em processos judiciais específicos.    

   Realce-se ainda que os esforços no sentido da instituição de um Estado de Direito que fosse respeitador não só da legalidade e da ordem instituídas mas também da dignidade da pessoa humana e dos direitos básicos e pessoalíssimos dos cidadãos, estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, tornaram-se mais visíveis e consistentes com a aprovação da Constituição de 1980.

    Com efeito, o período anterior, de carácter transitório do ponto de vista juridico-constitucional, decorrente até Setembro de 1980 e, em grande medida, coincidente com a vigência do projecto de unidade Guiné-Cabo Verde, ficou marcado pelas lacunas advenientes da vigência da LOPE e da sua remissão aos princípios e objectivos do PAIGC bem como ao seu programa (aliás, completamente omisso no que se refere ao poder judicial) como fontes de direito bem como pelas experiências de instituição de uma justiça popular e revolucionária, retoricamente “anti-burguesa”, da qual os tribunais de zona, comummente conhecidos como tribunais populares, se tornaram os rostos simbólicos mais conhecidos.

    Característico desse período pré-constitucional, em que o contencioso administrativo relativo aos actos definitivos e executórios dos membros do Governo era da competência exclusiva do poder executivo, designadamente do Conselho de Ministros, o órgão superior da organização judiciária denominava-se Conselho Nacional de Justiça e o restante contencioso administrativo e as contas do Estado eram “julgados” por um tribunal administrativo e de contas, de natureza exclusivamente administrativa, colocado na dependência directa do Governo, é o encetamento de esforços no sentido do estabelecimento de uma administração da justiça consentânea com a natureza soberana do Estado caboverdiano mas também conforme com uma inflamada retórica político - ideológica na qual avultavam os objectivos e princípios socializantes consignados no programa do partido único.

   Com a aprovação da Constituição de Setembro de 1980, os objectivos e princípios do PAIGC perderam a sua imediata força supra-constitucional na medida em que passaram a estar directamente plasmados na letra da Constituição e juridicamente consagrados como objectivos, princípios e tarefas do Estado caboverdiano e doravante adjectivados como visando o fim progressivo “da exploração do homem pelo homem” e a emergência, no solo das ilhas, de um “homem novo, liberto do medo, da ignorância, da miséria e da alienação colonial”, como certamente teria almejado Amílcar Cabral.

     Como acima referido, é a partir da vigência da Constituição de 1980 (em especial da sua primeira revisão) e do degelo do regime sequente ao abandono do projecto de união orgânica entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde, à repressão militaro-policial dos sublevados dos acontecimentos de 31 de Agosto de 1981 em Santo Antão bem como ao regresso maciço de quadros técnicos caboverdianos formados em universidades estrangeiras que se tornam mais visíveis e consistentes os esforços no sentido do sólido e irreversível estabelecimento dos alicerces de um Estado de Direito, minimamente congruente com a defesa dos direitos dos homens consignados na Declaração Universal dos Direitos do Homem no limitado quadro proporcionado por um regime autoritário de partido único. 

     Tais esforços ficaram exemplificados na aprovação de duas leis de indesmentível relevância jurídica e política:

    a) O Decreto-Lei nº14-A/83,de 22 de Março, que atribuiu aos tribunais judiciais a competência para o processamento e o julgamento do contencioso administrativo relativo a todos os actos administrativos, definitivos e executórios;

   b) O Decreto-Lei nº 116/84,de 8 de Dezembro, que regulou a responsabilidade extra-contratual do Estado e, por isso, se demonstrou como de fundamental importância no que respeita à limitação da arbitrariedade na actuação dos poderes públicos e dos seus representantes e agentes e no que se refere ao efectivo ressarcimento dos cidadãos por eventuais danos causados por esses mesmos representantes e agentes dos poderes públicos e decorrentes da sua responsabilidade delitual e objectiva. A aprovação dos diplomas legais acima referidos muito contribuiu para a construção da especificidade positiva e de uma imagem moderada do regime monopartidário caboverdiano no conjunto dos regimes africanos afro-lusófonos de partido único.                                                                      

 

    As ambiguidades políticas e ideológicas desses tempos de busca de conjugação entre, por um lado, os esforços com vista à instituição da ossatura essencial de um Estado de Direito que se não confundisse com um mero Estado policial da Lei e da Ordem e, por outro lado, os objectivos programáticos do regime de partido único no sentido da progressiva socialização da justiça - aliás devidamente consignados em pertinente resolução do III Congresso do PAIGC, de 1977- ficaram reflectidos, por exemplo:

    i) Na modelação de uma nova organização judiciária, marcada pela natureza soberana do Estado caboverdiano, mas também pelas preocupações quer de superação do modelo judiciário herdado do colonial-fascismo quer de implantação de uma administração da justiça de cariz eminentemente popular. 

      Tais preocupações ficaram expressas, desde logo, na extinção das figuras dos administradores de concelho, dos regedores de freguesia e dos cabos-chefes, aos quais eram anteriormente atribuídas extensas competências jurisdicionais e outros poderes de polícia e de resolução de conflitos. As mesmas preocupações ficaram depois reflectidas nas tentativas de instituição generalizada de assessores populares junto dos tribunais judiciais, consubstanciadas num diploma legal que, devidamente aprovado e publicado, todavia nunca conheceu aplicação prática.

      Esses esforços e tentativas de reorganização do sistema judiciário do país enquadravam-se na mesma filosofia política que presidiu à criação dos tribunais de zona e que visava instituir uma administração da justiça mais próxima das preocupações e do modus vivendi das camadas mais humildes e desapossadas das populações e na qual as mesmas camadas sociais pudessem participar efectiva e directamente.

      Sem prejuízo do bem fundado da sua instituição - à semelhança, aliás, de vários exemplos de órgãos de mediação extra-judicial de conflitos bem como os tribunais de paz e os tribunais de jurados de países tão liberais e democráticos como os Estados Unidos da América - , a filosofia participativa subjacente a esse figurino, política, logística e administrativamente apoiado e orientado pelos serviços do Ministério da Justiça, terá sido subvertida e ideologicamente contaminada pelos vícios próprios dos regimes de partido único, nomeadamente a sua excessiva dependência e o seu controlo político e ideológico por parte do partido único e das suas organizações de massas, para além da sua eventual utilização abusiva para efeitos de ajustes de contas pessoais e de concentração de poder por parte de novos caciques e líderes locais. Tanto mais se considerarmos que os tribunais de zona, a par das comissões de moradores e das milícias populares, eram eles próprios considerados como organizações sociais plenamente integradas na filosofia e na praxis de participação popular, arquitectada e dirigida pelo partido único.

   Para mais, o continuado apego das populações caboverdianas, incluindo as mais remotamente rurais, às instituições clássicas de uma justiça plasmada em normas gerais e abstractas, previamente fixadas em actos normativos aprovados por autoridades legítimas (como, aliás, ocorria com os textos legais e os actos normativos que regularam o funcionamento, as atribuições e as competências dos tribunais de zona), e proferida por entidades dotadas da devida competência técnica e suficientemente distantes dos atritos de vizinhos e distanciadas das comezinhas preocupações do dia-a-dia dos cidadãos, terá ditado a má fortuna dos tribunais de zona bem como dos projectados assessores populares, previstos, como já referido, para funcionarem junto dos tribunais judiciais num diploma legal que nunca mereceu aplicação prática.

    Anote-se que os tribunais de zona foram depois sumamente demonizados (conjuntamente com as milícias populares, as comissões de moradores, as comissões de reforma agrária e as comissões de litígios do trabalho) como alegados rostos repressivos do regime de partido único e, finalmente, extintos na sequência das mudanças democráticas de 1990/1991. A generalidade dos observadores concorda, todavia, que dessa extinção, muito ideologicamente marcada, terá ficado um grande vazio institucional, ainda por preencher.

     ii) Na criação do IPAJ (Instituto de Patrocínio e Assistência Judiciários), um instituto público de carácter associativo cujos objectivos expressos consistiam na restrição do exercício da advocacia privada, mormente no que respeitava à liberdade de fixação dos honorários por parte dos próprios advogados e solicitadores judiciais, e na generalização do acesso à justiça, em concretização, aliás, da mesma resolução do III Congresso do PAIGC que também pugnava pela socialização progressiva do exercício da medicina e limitava drasticamente o seu exercício privado. Na realidade, a advocacia continuou a ser exercida de forma quase inteiramente privada, ainda que no quadro orgânico do IPAJ, o qual funcionava como órgão associativo dos profissionais de foro e das demais profissões jurídicas, mesmo se sujeito à tutela administrativa e inspectiva do Ministro da Justiça, usufruindo, em contrapartida, de subsídios do Governo para a prossecução dos seus objectivos de facilitação do acesso à justiça ao comum dos cidadãos.

     Curiosamente, é no quadro do IPAJ que o exercício da advocacia se tornou acessível não só aos tradicionais profissionais do foro (advogados licenciados e advogados provisionários) mas também a todos os licenciados em direito e aos solicitadores judiciais, saídos dos cursos de formação judiciária, instituídos depois da independência e de fundamental importância para o preenchimento dos quadros dos tribunais sub-regionais e regionais, os quais perfaziam a ossatura essencial (intermédia) da nova organização judiciária.

    Igualmente curioso é o facto de o IPAJ se ter perfilado, sobretudo nos anos oitenta do século XX, como uma das mais importantes e críticas organizações emanadas da sociedade civil caboverdiana, tendo sido, incontestavelmente, uma indispensável e plural instância moral no que respeitas à observância do respeito dos direitos humanos durante a vigência do regime de partido único.

 

    2.2. Como é sabido, o regime caboverdiano da democracia nacional revolucionária sustentava-se num intrincado e insuperável paradoxo político, característico, aliás, de todas as chamadas democracias populares e revolucionárias.

     Esse paradoxo político consistia precisamente na pretensão de exponenciar uma ampla participação das populações na gestão política de todas as esferas da vida social em concomitância com a mediação da mesma participação pelas chamadas organizações sociais e de massas bem como com o exercício de um assumido dirigismo e controlo político e ideológico por parte de uma vanguarda partidária, erigida em partido único e em torno da qual gravitavam, como seus essenciais satélites, as mesmas organizações sociais e de massas.

   Dirigida pelos denominados (e, por vezes, auto-proclamados) “melhores filhos do nosso povo”, a mesma vanguarda partidária deveria constituir-se de uma elite política supostamente meritocrática, auto-representando-se como iluminada e vanguardista - porque alegadamente dotada de uma mais sólida formação moral e de uma mais avançada consciência política e ideológica revolucionária - , recrutada primacialmente entre os militantes e os quadros das organizações de massas bem como entre os trabalhadores desejavelmente mais destacados pela sua exemplaridade no trabalho, na participação cívica e política e na conduta social.   Desejavelmente, na medida em que contingências conexas com o carreirismo, com a lealdade política em relação aos dirigentes partidários dos escalões superiores e intermédios e, quiçá, a subserviência em relação aos clãs políticos de extracção regional e geracional bem assim com o oportunismo necessariamente emergente da promiscuidade entre uma militância, ainda que meramente formal, no partido único e a ocupação dos mais importantes cargos disponíveis no sector administrativo e empresarial do Estado eram de molde a subverter toda e qualquer veleidade de eleição da pureza ideológica, do mérito pessoal e da idoneidade política e moral como os critérios exclusivos ou predominantes no recrutamento dos quadros e dos militantes do partido único. É nessas circunstâncias que reside a explicação tanto para uma aparente e significativa penetração social do partido único nos momentos de estabilidade e, até, de apogeu, do regime autoritário, como também para a deserção e a geral debandada que se verificam quando o partido único e os seus quadros e dirigentes perdem os privilégios e as regalias que lhes advinham do seu estatuto de força política dirigente da sociedade e do Estado em razão do colapso do regime autoritário e das sequentes evoluções políticas, quer estes resultem da inicial e livre iniciativa da própria cúpula do partido único quer provenham da incontornável pressão de forças oposicionistas ou de doadores estrangeiros e internacionais. 

       Relembre-se, neste contexto, que a expressão “melhores filhos do nosso povo” foi criada, concebida, cunhada e amiúde utilizada por Amílcar Cabral para, num quadro de pedagogia política dos quadros, militantes e combatentes do PAIGC, designar aqueles patriotas guineenses e caboverdianos mais cabalmente comprometidos com as exigências políticas e morais da luta de libertação nacional e, assim, com a defesa do que ele considerava os verdadeiros e genuínos interesses do povo. Por outro lado, Cabral distinguia o conceito de “povo” do conceito de “população”, sendo população uma categoria de sentido meramente demográfico e antropológico para designar o conjunto dos habitantes ou dos nativos de um dado país, enquanto que “povo” seria um conceito socio-político primacialmente utilizado para denominar o conjunto dos indivíduos e das categorias sociais de uma dada população que, num momento histórico determinado, pugnavam pelo seu progresso no sentido mais conforme com a conjuntura política dominante e ditada pelos ventos predominantes da História. Neste sentido, embora estável nos seus pré-requisitos demográficos, antropológicos e sociológicos, o conceito de “povo” seria tão mutável como relativamente mutáveis seriam também as grandes e marcantes conjunturas históricas de cada país. Ponto é que o povo fosse efectivamente integrado, na sua dimensão sociológica e política, pela grande maioria da população de um determinado país. Neste contexto, caberia a uma vanguarda partidária, constituída precisamente pelos melhores filhos do povo - porque, como referido, supostamente mais conscientes e mais comprometidos com a defesa dos interesses permanentes do povo - potenciar a unidade suficiente do mesmo povo com vista a conduzi-lo com sucesso nos caminhos difíceis da luta pelos seus verdadeiros interesses. Muito inspirado no elitismo vanguardista de extracção leninista, ao qual todavia adita o conceito de partido-movimento, bem como no conceito gramsciano de intelectual orgânico, os conceitos cabralianos de “povo” e de “melhores filhos do povo” denotam também nítidas influências da doutrina política elaborada por Mao Tsé Tung, designadamente no texto “Como resolver as contradições no seio do povo”, numa fase anterior ao conflito sino-soviético, consabidamente de marcado cariz ideológico e doutrinário, e ao enveredamento do “grande timoneiro” chinês por um radicalismo político de esquerda que ficou tragicamente ilustrado nas desgraças económicas e sociais e na miséria moral consubstanciada nas inumeráveis vítimas das políticas dos “dois saltos em frente” bem como da “Grande Revolução Cultural Proletária”. 

     Depois de, no período pós-independência, o regime de partido único ter sido formalmente implantado em Cabo Verde, a expressão “melhores filhos do nosso povo” foi sendo sistematicamente utilizada pelos ideólogos do regime para alicerçar a hegemonia política da nomenclatura e da elite dirigente do partido único, cuja legitimidade teria sido forjada nas agruras e nas condições difíceis e de muitas exigências éticas da luta político-armada para a independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau. A mesma expressão foi também sendo utilizada amiudadas vezes pelos críticos e pelos opositores do regime quer para causticá-lo com as armas da ironia, da sátira e do sarcasmo políticos, aliás característicos da sinalização do descontentamento e da dissidência em regimes autoritários e totalitários, quer para denegrir o mesmo regime por via da acentuação da natureza alegadamente elitista, monopolizante e usurpadora da nomenclatura dirigente.            

     Feito o parêntesis, cabe sublinhar que a pretensão da construção de uma democracia efectivamente participativa em Cabo Verde quis-se fundar na retórica do estabelecimento de uma sólida unidade nacional e de uma ampla aliança política entre todas as classes e categorias sociais nativas sob os auspícios de um auto-intitulado movimento de libertação nacional no poder e da sua sedimentação em mecanismos de participação directa das populações na resolução dos assuntos que mais directamente lhes diziam respeito, bem como na constituição de instituições representativas das mesmas populações na discussão e na gestão de matérias de relevante interesse nacional.

    O propósito da edificação de uma democracia participativa foi, outrossim, apresentado como alternativa credível e viável tanto em relação à democracia representativa liberal-democrática - aliás, desde sempre desqualificada como formal, burguesa e de matriz ocidental-capitalista -, como também em relação à ditadura revolucionária de uma classe operária, considerada incipiente e, por isso, incapaz de, nas periclitantes condições do subdesenvolvimento económico-social de Cabo Verde, exercer o seu suposto papel histórico de vanguarda das classes trabalhadoras nativas.

     Deste modo, o propósito da edificação em Cabo Verde de uma democracia participativa demonstrou-se, por um lado, como largamente influenciado, nos seus pressupostos ideológicos e sociológicos, pela teoria da democracia nova de Mao Tsé Tung e, por outro lado, como relativamente distante quer da teoria marxista-leninista da ditadura do proletariado quer ainda das teses contemporâneas oriundas de alguns ideólogos oficiais dos “países do socialismo real”, as quais propunham a adaptação da doutrina da ditadura do proletariado às condições específicas dos jovens Estados independentes, primacialmente mediante a adopção do conceito e da praxis de uma ditadura popular democrático-revolucionária liderada por um auto-intitulado partido da classe operária ou, na sua falta ou insuficiência, da aliança operário-camponesa, como desastrosamente praticado pelo MPLA-PT, pela FRELIMO, pelo Partido Congolês do Trabalho, pelas partidos-ditaduras militares beninense e etíope bem como por outros partidos progressistas africanos, que professavam, expressamente, uma vulgata tropical da ideologia marxista-leninista ou, mais exactamente, uma ideologia democrático-revolucionária de cariz afro-estalinista.     

      Por sua vez, a restrição dos direitos cívicos e das liberdades políticas dos cidadãos, ou, pelo menos, de uma sua importante franja constituída pelos apáticos ou desafectos do regime de partido único, processou-se por diversas formas, de entre as quais destacamos:

i) a inibição mediata e indirecta do exercício dos direitos políticos fundamentais mediante a sua funcionalização política e ideológica e a sua sujeição a princípios e objectivos constitucionais partidariamente inquinados e ideologicamente contaminados;

ii) a adopção de medidas politicamente castradoras, como, por exemplo, as leis eleitorais que revogaram os princípios pluralistas da lei eleitoral dos tempos da transição política para a independência e consagraram as listas unipartidárias de candidatos a deputados à Assembleia Nacional Popular;

iii) a aprovação de normas aberta ou subtilmente repressivas das liberdades de expressão do pensamento e de imprensa, como se verificou com a chamada “lei do boato” (decreto-lei nr 37/77), bem assim com as cláusulas da lei de imprensa de 1987 que transformaram em delitos de opinião as liberdades de crítica e de expressão políticas, tipificando-os e penalizando-as como crimes de “ultraje contra as Instituições da República” e “ofensas ao Presidente da República”.

     As práticas restritivas dos direitos, das liberdades e das garantias fundamentais, típicos e enformadores das democracias plenas, desnudaram, de forma insofismável, a natureza autoritária da democracia nacional revolucionária caboverdiana e os limites intrínsecos e extrínsecos da sua retórica participativa.    

     Um outro momento característico tanto do pragmatismo como da esquizofrenia política do regime autoritário caboverdiano ficou consubstanciado nas reiteradas tentativas, aliás parcialmente coroadas de sucesso, por parte do partido único e da sua liderança no sentido da auto-limitação do seu próprio poder.

    Esses esforços de autolimitação do poder do partido único ficaram doutrinariamente consignados em diferentes relatórios e documentos programáticos apresentados aos congressos e a outros órgãos dirigentes quer do PAIGC quer do PAICV e obtiveram consagração jurídica quer na Constituição de Setembro de 1980 quer em inúmeros diplomas legais ordinários, como as referidas leis relativas ao contencioso administrativo e à responsabilidade extra-contratual do Estado.

      As tentativas de clarificação da esfera de actuação do partido único foram teorizadas por dirigentes que, como nos casos de Aristides Pereira, Pedro Pires, Abílio Duarte, Silvino das Luz, Osvaldo Lopes da Silva ou Olívio Pires, conviveram de perto com a paranóia política e policial característica da República da Guiné (a Guiné-Conacry de Sekou Touré), na altura o principal santuário do PAIGC, movimento de libertação nacional que tinha localizadas no território desse país africano a sede da sua direcção política representada pelo seu Secretariado-Geral bem como outras importantes instalações logísticas e político-militares. Relembre-se que a paranóia policial e totalitária do regime de Sekou Touré ficou ilustrada nas frequentes intentonas e nas célebres inventonas que caracterizavam o quotidiano da República da Guiné, na mortífera sinistralidade do Camp Boiro ou na banalidade da execução sumária de opositores políticos e de verdadeiros e supostos agentes do imperialismo internacional e, em particular, do neo-colonialismo francês e do colonialismo português, efectivamente muito activos na sua demanda de derrube do regime anti-colonialista de Sekou Touré, como também ficou amplamente comprovado na operação Mar Verde, concebida e levada a cabo por militares portugueses, co-adjuvados por opositores e mercenários guineenses.   

    Na óptica da liderança do PAIGC/CV e do seu sucessor islenho, o PAICV, a auto-limitação do poder do partido único deveria processar-se fundamentalmente mediante a clara separação entre as estruturas partidárias, por um lado, e os órgãos e instituições do Estado, por outro lado, e a inequívoca e transparente delimitação das suas atribuições, competências e esferas de actuação: o primeiro como força política dirigente da sociedade e do Estado, dotada de autoridade política supra-institucional e supra-constitucional, como ficou consagrada na LOPE, ou de funções específicas, conquanto latas, de direcção política, constitucionalmente consagradas, como, aliás, estatuído pelo artigo quarto da Constituição de Setembro de 1980; o segundo como instrumento privilegiado de aplicação do programa económico, social e cultural definido pelo partido, privilegiado e insubstituível em razão da sua natureza, dos seus poderes soberanos e da sua dimensão internacional.

   A separação orgânica entre as estruturas do partido e do Estado era mais facilmente exequível a nível intermédio e de base, já que a nível superior existia uma notória união pessoal e respectiva contaminação de competências e atribuições entre os mais altos dirigentes do partido e os titulares de cargos políticos nos chamados órgãos do poder do Estado. Ademais, os responsáveis e outros membros dos órgãos intermédios do partido integravam, por inerência das suas funções político-partidárias, inúmeros órgãos e organismos de concertação social. Deste modo, também exercia o partido a sua função dirigente, funcionando muitas das organizações sociais como meras correias de transmissão, mesmo se pensadas como mecanismos de participação popular incumbidas de conjugar controlo partidário e democracia participativa.

   Certamente vãs em grande mediada no que, especificamente, se referia a um genuíno e amplo controlo e a uma eficaz e abrangente limitação da latitude e da esfera de decisão e dos espaços de arbitrariedade dos órgãos dirigentes do partido único - à semelhança, aliás, do que terá ocorrido na fase mais recentemente autoritária da evolução de alguns países do “socialismo real” do Leste europeu -, essas tentativas de auto-limitação das atribuições e do poder autoritários do partido único permitiram, todavia, um claro distanciamento e uma nítida destrinça entre, por um lado, o modelo autoritário corporizado pelo regime monopartidário caboverdiano e, por outro lado, vários regimes africanos de partido único, como o ilustrado pelo famigerado modelo policial e totalitário de Partido-Estado conacry-guineense, que, teorizado e praticado por Sekou Touré, tornou-se predominante nos demais países afro-lusófonos e na grande maioria dos regimes africanos, quase todos de partido único, independentemente da sua orientação doutrinária neo-colonial ou socializante e das suas nuances políticas e ideológicas.

    Concomitantemente, o modelo de partido único vigente em Cabo Verde conferiu ao Estado, à administração pública e aos respectivos funcionários e agentes margens de actuação, suficientes para preservar a sua identidade de representantes legítimos e exclusivos da autoridade pública e, como comprovam os factos realmente acontecidos, de potenciar autónoma esfera de actuação, relativamente distinta, distante e livre de constrangimentos mais directamente político-partidários, daqueles funcionários públicos que, não obstante o juramento de fidelidade aos princípios e objectivos consignados na Constituição da República monopartidária, não comungavam da ideologia do movimento de libertação no poder, politicamente não se reconheciam na praxis do partido único e, por isso, se opunham ou se posicionavam criticamente, ainda que por modos cautelosos e, por vezes, abstrusos, em relação a ele.

     Ainda assim e não obstante a sua deliberação política de superação dos dilemas congénitos às chamadas democracias populares e revolucionárias mediante uma praxis política caracterizada por uma certa contenção repressiva e, quiçá, por uma genuína vontade de potenciação da participação popular, mesmo se devidamente enquadrada e arregimentada pelo conjunto do sistema monopartidário, não puderam os ideólogos do PAIGC/CV e não lograram os teóricos e dirigentes do PAICV superar o paradoxo e a esquizofrenia típicos de todos os regimes de partido único, mesmo dos mais moderados e mitigados como efectivamente foi o regime autoritário caboverdiano.   

 

                                                             III  

  O período pós-unidade Guiné-Cabo Verde e a busca de uma nova legitimidade política   

 

    3.1. 1.Como anteriormente referido, assiste-se, na sequência da aprovação da Constituição de 1980, a uma relativa estabilização política e institucional do regime caboverdiano de partido único.     

    A relativa estabilização política e institucional do regime monopartidário fica a dever-se, em grande medida, à própria institucionalização política pós-independência do PAIGC como movimento de libertação nacional no poder (como passou o partido da independência a denominar-se a partir do seu III Congresso, de 1977) e força política dirigente da totalidade do sistema político, bem como à sua efectiva implantação no conjunto do arquipélago e do tecido social caboverdianos.

    Essa institucionalização processa-se por várias formas, com destaque para as seguintes: a constitucional, com a aprovação da LOPE e, depois, da Constituição de Setembro de 1980; a político-eleitoral, designadamente mediante a realização de “eleições referendárias” periódicas (quinquenais) para a ANP; a do enquadramento político-ideológico das chamadas massas populares, com o alargamento do espaço de intervenção das chamadas organizações sociais e de massas, maioritariamente satélites do partido único; a repressiva, com a instituição de serviços de segurança do Estado dotados de uma importante componente relativa à vigilância e à recolha de informações respeitantes à conduta política dos cidadãos, em regra da competência das polícias políticas e dos serviços de espionagem e de contra-espionagem, bem como a criminalização dos actos políticos de oposição ao regime mediante a sua desqualificação como atentados contra a segurança do Estado e a sua tipificação como crimes essencialmente militares para efeitos da sua sujeição à jurisdição exclusiva de um tribunal especial, o Tribunal militar de instância, como se verificou com o julgamento dos cabecilhas e participantes dos eventos de 31 de Agosto de 1981, em Santo Antão.

    A implantação política do PAIGC e a institucionalização do regime de partido único ocorrem concomitantemente com a busca de consolidação da legitimidade histórica dos seus dirigentes pela via da sua complementação com uma nova legitimidade política.

   A acima referida legitimidade histórica vinha-se primacialmente sustentando na reiterada invocação da participação dos mesmos dirigentes na luta político-militar e diplomática para a independência, levada a cabo a partir da Guiné-Conacry e da Guiné-Bissau, bem como nas jornadas políticas pós-25 de Abril que, realizadas em solo caboverdiano e em contacto directo com o povo das ilhas, a princípio sob o controle dos desavindos militantes das clandestinidades portuguesa e islenha, e, depois, sob o controle sucessivo e directo dos mais altos dirigentes “vindos de Conacry”, como Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva, Olívio Pires e, finalmente, Pedro Pires, culminariam no Acordo de Lisboa para a Independência de Cabo Verde, de 19 de Dezembro de 1974, directamente negociado por uma delegação do PAIGC, chefiada por Pedro Pires, então Presidente da Comissão Nacional de Cabo Verde desse movimento de libertação nacional, e por uma delegação do Governo português, chefiada por Almeida Santos e por Mário Soares, respectivamente ministros portugueses da coordenação interterritorial e dos negócios estrangeiros.

      A busca de uma nova legitimidade política que pudesse complementar a legitimidade histórica propiciada pela participação na luta político-armada conduzida na Guiné-Bissau, embora cautelosa e fazendo hábil uso de alianças tácticas com sucessivas gerações e fracções de militantes não participantes na mesma luta político-armada, intentava sustentar-se na irrestrita monopolização do poder político e na ocupação dos mais importantes órgãos partidários de decisão política (primeiramente, o Secretariado Permanente da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC e, depois, a Comissão Política do PAICV) bem como das pastas nucleares do Governo, cuja titularidade era ciosamente restringida aos mais altos dirigentes “vindos de Conacry”.

      A monopolização do poder por parte do chamado “Grupo de Conacry ” (no qual, aliás, se integrava o mais restrito “Grupo de Cuba”) ficou claramente expressa, por exemplo, na colocação de José Araújo, Júlio de Carvalho e Honório Chantre nas mais altas instâncias da nomenclatura partidária e da governação do país, aquando do seu regresso da Guiné-Bissau e da sua fixação definitiva em Cabo Verde, em razão do golpe de Estado perpetrado pelo então Comandante de Brigada e Primeiro-Ministro da Guiné-Bissau, João Bernardo (Nino) Vieira.

     A linha de indeclinável monopolização do núcleo do poder por parte do chamado Grupo de Conacry demonstrar-se-ia igualmente na ascensão de Carlos Reis, João Pereira Silva e de Corsino Tolentino, também integrantes do mesmo núcleo histórico, à Comissão Política do PAICV.

      Ela só conheceria uma alteração, ligeira, com a designação, já depois da abertura política de Fevereiro de 1990, de José Luís Lopes Fernandes, proeminente dirigente da clandestinidade portuguesa e da agitação política pós-25 de Abril em Cabo Verde. Conotado com a teoria da revolução permanente de Leon Trotsky e com a chamada estratégia do “entrismo trotskista” num relatório apresentado, em 1976, por Silvino da Luz à direcção do ramo cabo-verdiano do PAIGC, e, posteriormente, acusado de pertencer ao facciosismo trotskista, José Luís Fernandes recusou-se - à semelhança, aliás, de Amaro da Luz, de Renato Cardoso e de outros acusados de aventureirismo de esquerda - a aderir à  declarada dissidência protagonizada por Manuel Faustino, José Tomás Veiga, Eugénio Inocêncio, Jorge Carlos Fonseca e outros auto-denominados  radicais de esquerda socialista  que, auto-desvinculados/”expulsos” do PAIGC, em 1979, lhes seguiram os passos e escolheram os caminhos do trabalho ou dos estudos universitários no exílio, estrangeiro ou interno.

      A supra-referida monopolização do poder político e ideológico por parte dos Comandantes - isto é, por parte dos mais proeminentes elementos saídos do chamado Grupo de Cuba - bem como a coesão interna patenteada por parte do conjunto mais vasto representado pelo Grupo de Conacry Conacry (também denomiinado de forma, aliás, mais adequada “Vindos da Guiné”), em face das investidas políticas de adversários externos e internos não foi todavia de molde nem a completamente submergir a natureza essencialmente civilista do poder constituído depois da independência nacional de Cabo Verde nem tão pouco a excluir quer a discriminação de alguns combatentes com menos pergaminhos académicos e político-militares quer ainda a emergência de dissenções, desavenças e divergências entre os mais proeminentes integrantes do chamado Grupo de Conacry (ou dos “Vindos da Guiné).

    Essas dissenções, desavenças e divergências ficaram atestadas, por exemplo:

     i) Na proverbial competição entre Pedro Pires e Abílio Duarte, o intrépido Presidente da ANP que quis transformar essa câmara monocolor de deputados num parlamento que não fosse somente mera caixa de ressonância do partido no poder e inócua câmara de ratificação das deliberações do Governo. Essa rivalidade era tanto mais relevante se se considerar que Pedro Pires era considerado o principal arquitecto do PAICV e, sobretudo a partir da ruptura do projecto da unidade entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau, o verdadeiro homem forte do regime caboverdiano de partido único, do qual Aristides Pereira seria a reserva moral e a eminênca distante e silente na sua condição de mais próximo companheiro de Amílcar Cabral, de Secretário-Geral do partido e de Presidente da República.

       A rivalidade entre Pedro Pires e Abílio Duarte, a qual remontaria aos tempos da luta político-armada e se reportaria a questões de protagonismo na liderança da ala caboverdiana do PAIGC bem como a uma diferente aproximação, no seio do movimento binacional de libertação nacional, em relação à questão islenha (de maior premência nacionalista insular, por parte de Abílio Duarte, e mais pragmaticamente binacionalista e cabraliana, por parte de Pedro Pires) culminaria na saída deste membro destacado do triunvirato que representava a omnisciente e omnipotente ubiquidade do rosto do regime de partido único em Cabo Verde, já depois da devastadora derrota eleitoral de 1991, sob a alegação da inoperância e da paralisia políticas da Comissão Política do PAICV em favor do Secretariado do mesmo partido e das instâncias governamentais, sob controlo directo de Pedro Pires e Olívio Pires, e a sua correlativa responsabilização pela inesperada e traumatizante queda eleitoral do PAICV.

    ii) Na surda  rivalidade entre Pedro Pires e Osvaldo Lopes da Silva, defensores de estratégias económicas divergentes para a sobrevivência e o almejado desenvolvimento de Cabo Verde. Essa rivalidade pessoal e política culminaria na pública caída em desgraça, já nos tempos derradeiros do regime de partido único, do comandante operacional da operação Guiledje e crítico assumido e, até, desassombrado, do projecto pós-colonial de união orgânica entre as Repúblicas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau. Essa queda em desgraça ficou consubstanciada no escasso score eleitoral de Osvaldo Lopes da Silva nas eleições para o Conselho Nacional saído do Congresso de 1988, na sua sequente saída da Comissão Política do PAICV e, posteriormente, na sua demissão do Governo de Pedro Pires. Inconformado, Osvaldo Lopes da Silva denunciaria, a seu tempo, as manobras políticas que, alegadamente, estariam por detrás da sua queda em desgraça, isso numa altura em que o regime se enredava em inextrincáveis labirintos nos quais pairavam a sombra da reforma política do conjunto do sistema político e o definitivo ofuscamento político de José Araújo e de Honório Chantre. 

 

    3.1.2. A paulatina consolidação da nova legitimidade política dos “vindos de Conacry” ocorre de forma paulatina e fica a dever-se a factores de diverso teor.

    Nesse contexto, a chamada reconstrução nacional das ilhas com vista à sobrevivência e ao crescimento de um país considerado, quase unanimemente, como estruturalmente vulnerável, anormalmente frágil e, por isso, economicamente inviável, bem como os reconhecidos mérito e seriedade dos dirigentes caboverdianos na gestão da escassez de recursos e na arrecadação e na reciclagem da ajuda pública proporcionada pelas organizações internacionais e por países de todos os quadrantes político-ideológicos, aliados à austeridade do seu modo de vida e ao seu inegável e sempre reiterado patriotismo, demonstraram-se como propícios à manutenção e à exaltação da auto-estima, da auto-confiança, do patriotismo e do orgulho nacionais dos caboverdianos (visíveis na música revolucionária então em voga e na poesia ufanista de vates, como o Ovídio Martins do poema “Ilha a Ilha”, o Oswaldo Osório, tanto do ciclo poemático “Rapicai com Tchabeta” (constante do caderno Jogos Florais 12 de Setembro de 1976) como de alguns momentos do livro Clar(a)idade Assombrada, o Jorge Carlos Fonseca dos poemas construtivistas constantes da colectânea Jogos Florais 12 de Setembro de 1976, o Corsino Fortes do livro Árvore e Tambor, o T. T. Tiofe de “O Segundo Livro de Notcha”, o David Hopffer Almada do poema “Canto a Cabo Verde” e a Vera Duarte dos poemas primevos recolhidos nos cadernos cantalutistas do livro Amanhã Amadrugada

      Deste modo vêem-se os dirigentes do regime de partido sustentados numa legitimidade política que, inicialmente fundada na legitimidade histórica da luta político-armada de libertação nacional e no carisma do mártir, militante número um e herói do povo, Amílcar Cabral, doravante a extravasa. 

    Tanto mais que os seus eventuais opositores e concorrentes foram sendo sucessivamente neutralizados ou politicamente (que não física ou penalmente) eliminados.

    Foi assim com a totalidade dos adversários político-partidários do PAIGC, arredados do espaço político público, em Dezembro de 1974.

    Foi assim com alguns dirigentes paigcistas da luta clandestina, logo nos períodos antecedentes e imediatamente sequentes à independência nacional (como comprovam os exemplos de Jorge Querido, que, com o nome de Ioti Kunta, foi o responsável máximo das estruturas clandestinas do PAIGC em Portugal e em Cabo Verde, bem como de outros militantes da clandestinidade e ex-presos políticos do Tarrafal, os quais viriam a ser conotados com o mesmo dirigente da clandestinidade e/ou com a chamada corrente maoísta da ala caboverdiana do PAIGC).

    Foi, finalmente, assim, em 1979, com a expulsão e/ou auto-disvinculação da chamada fracção trotskysta da ala caboverdiana do PAIGC, especialmente de Manuel Faustino, José Tomás Veiga, Eugénio Inocêncio e Jorge Carlos Fonseca. 

    Foi assim com os exilados e os eventuais opositores clandestinos, conotados com a extrema-esquerda radical, com o pluralismo político e/ou com a UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática, fundada, em 1977, na Holanda, por antigos adeptos da UDC e ex-partidários do PAIGC, descontentes com o projecto da unidade Guiné - Cabo Verde e com a instituição em Cabo Verde de um regime de partido único).

 

     A ocorrência do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, liderado pelo então Presidente do Conselho Nacional do PAIGC da Guiné-Bissau, João Bernardo (Nino) Vieira, e que teve como alvo principal o Secretário-Geral Adjunto do PAIGC e Presidente do Conselho de Estado da então denominada República irmã, Luís Cabral, acarreta como consequência imediata o bloqueamento das estruturas supranacionais do PAIGC bem como dos restantes poderes estaduais e constitucionais, substituídos, na Guiné-Bissau, pelo recém-instituído Conselho da Revolução e, depois, a definitiva inviabilização do projecto de unidade orgânica entre as Repúblicas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau.

     Nessa sequência e conexa com a ulterior transformação do ramo nacional caboverdiano do PAIGC em PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde), os dirigentes insulares encontram nessa ruptura uma fonte privilegiada de exaltação do patriotismo islenho e de louvação do peso específico da participação dos nacionalistas ilhéus na saga libertária da Guiné-Bissau, a qual teria tido, de todo o modo, como objectivo final a libertação da sua “pátria do meio do mar”, como exarado em poema de Ovídio Martins.

     Com o fito de compensação das diversas (ainda que não mortíferas) sangrias verificadas nas fileiras da ala caboverdiana do PAIGC -  depois rebaptizada como PAICV e recorrentemente denominada a posteriori pelos seus opositores como PAIGC/CV - bem como da disforia e da estupefacção provocadas pela abrupta dessacralização de um dos maiores tabus enformadores do corpus político-ideológico do PAIGC e resultantes do golpe de Estado de Bissau, assiste-se a uma intensa mobilização de novos protagonistas partidários, sobretudo entre os líderes locais e os quadros intermédios, e à sua entrada progressiva nas instâncias intermédias e superiores do partido, nas organizações sociais e de massas bem como no parlamento monopartidário, nas estruturas administrativas locais e desconcentradas dos órgãos do Poder do Estado bem como nos sectores administrativo e empresarial públicos, com excepção daquelas instâncias políticas nas quais residia o verdadeiro e essencial núcleo do poder político monopartidário, designadamente a Comissão Política e o Secretariado do PAICV bem como as pastas nucleares do Governo da República de Cabo Verde. Deste modo, logra o núcleo dirigente do regime de partido único alargar, de forma substancial e assaz consistente, a base de interessados objectivamente na manutenção e na consolidação do regime, num contexto em que a geral apatia política das populações ia grassando e sobrepondo-se à inicial euforia patriótica e revolucionária, anteriormente despoletada pela descompressão política pós-25 de Abril bem como pelo sonho/utopia inoculado por “Julho, nosso orgulho” (na palavra poética cantalutista de Oswaldo Osório) e que deveria consubstanciar-se na construção, “ilha a ilha, dor a dor, amor a amor” (como escreve Ovídio Martins nesses tempos de primícias primaveris) de um pais livre, solidário e de bem-estar para todos sobre o árido solo do Sahel insular.  

     Nesse contexto, torna-se ademais premente e acelera-se o processo de busca de uma nova localização, exclusivamente caboverdiana, das fontes de legitimação do poder dos dirigentes do regime de partido único, ainda que essa legitimação permanecesse fundada nos pressupostos político-ideológicos do programa revolucionário do movimento de libertação nacional. 

     É nessa perspectiva que, no período imediatamente subsequente ao golpe de Estado de Bissau, se assiste a uma aceleração do “processo revolucionário em curso”.

      Essa aceleração ficou, aliás, largamente ilustrada na aprovação e na parcial aplicação de um extenso pacote de actos normativos relativos à implementação final da reforma agrária.

      A resoluta implementação da reforma agrária foi entendida como essencial para a emergência da justiça social nos campos do Sahel insular e para a superação definitiva dos entraves socio-económicos ao desenvolvimento agrário de Cabo Verde bem como ao florescimento de uma democracia social e económica, como, num outro contexto, designadamente o do enredo ficcional do romance Xaguate, no âmbito do qual Teixeira de Sousa interpreta as chamadas conquistas da independência, inserindo-as no quadro da sua teorização da implantação progressiva dessa mesma democracia em resultado de uma mais lata promoção do negro e do mulato caboverdianos.

   Anote-se que, nos termos da Lei de Bases da Reforma Agrária, as mutações sociais nos campos caboverdianos visariam no imediato, não a implantação de uma quimérica sociedade socialista (denominada “sociedade sem exploração do homem pelo homem”, na terminologia programática e revolucionária dos cabralistas, depois retomada na Constituição de Setembro de 1980), mas de uma sociedade de transição, de natureza democrático-revolucionária, porque visando essencialmente a libertação da exploração semi-feudal dos trabalhadores rurais e imbuída, a médio e a longo prazos, de claros propósitos socializantes. É, por isso, que, à parte a crassa limitação “anti-latifundiária” da dimensão da propriedade da terra, nunca foi posta em causa a exploração capitalista (denominada “exploração directa”) das terras bem como o emprego do trabalho assalariado por parte dos seus proprietários.

    Ademais, o carácter “essencialmente democrático-revolucionário” da reforma agrária (em contraste com outras experiências mais radicais porque fundamentalmente socialistas) viu-se reflectido no seguinte: 

a) A expropriação das terras, a partir de um limiar de dois hectares, tinha sempre como contrapartida uma indemnização justa, a qual poderia ser negociada entre os expropriados e o Estado; 

 b) As expropriações deveriam incidir prioritariamente sobre as terras dos grandes proprietários absentistas, devendo ficar salvaguardados os interesses tanto das viúvas como dos emigrantes.

     Como é sabido, para além da extensa controvérsia que gerou, a implementação da reforma agrária teve magros resultados práticos. Tais resultados ficaram consubstanciados na distribuição em posse útil aos respectivos rendeiros, parceiros e trabalhadores assalariados de algumas propriedades fundiárias, ocupadas no imediato pós-25 de Abril, sobretudo na ilha de Santiago, e, depois, formalmente confiscadas no pós-independência, e de outras terras nacionalizadas no período pós-colonial em resultado da aplicação das leis de reforma agrária, bem como na constituição de algumas cooperativas de produção, primacialmente entre os beneficiários da reforma agrária.

     A magreza desses resultados ficou a dever-se a factores de diversa índole, como:

   i) Uma acentuada desconfiança das populações, incluindo das campesinas e rurais, por vezes influenciadas por representantes da grande proprietária rural que era também a Igreja Católica e levadas ao paroxismo de uma resistência activa, como se verificou com os acontecimentos do 31 de Agosto de 1981 em Santo Antão.

 ii) Fortes laços de compadrio e, até, de parentesco, entre os proprietários rurais, por um lado, e os cultivadores directos (rendeiros, parceiros e assalariados rurais), por outro lado.

  iii) Uma certa sacralização do direito de propriedade fundiária, em virtude das vicissitudes históricas conexas com o entendimento da sua aquisição como inerente à ascensão económica e social e, assim, à aristocratização, do negro e do mulato caboverdianos, por vezes, em resultado de um reconhecido esforço e investimento pessoais, por exemplo, com dinheiro adquirido na emigração, dos respectivos titulares.

  iv) A priorização de outras formas, consideradas mais legítimas e honrosas de acesso à terra, por exemplo, a sua compra com dinheiro extenuadamente arrecadado na terra-longe.

      Ademais, a manutenção, durante todo o período em análise, de um regime de arrendamento, por vezes resultante da conversão forçada do extinto regime de parceria, e a sua conjugação com a fixação pelo Estado de um montante irrisório das rendas em dinheiro eram de molde a não satisfazer nem os proprietários rurais nem os seus rendeiros.

     Aqueles porque estariam interessados na superação do estado de ansiedade, de relativo abandono político-legal e de empobrecimento a que foram votados pelo novo regime das coisas e, assim, numa definição inequívoca e definitiva da sua situação, incluindo a eventual nacionalização com a respectiva indemnização das suas terras, que lhes permitisse a reformulação do destino das suas vidas e das suas actividades económicas.

     Os rendeiros e outros cultivadores directos porque estariam interessados, objectiva e subjectivamente, no acesso completo à posse da terra, quer pela titularidade da propriedade quer pela sua aquisição em regime de posse útil.  

     A esses factores acresciam a proverbial vulnerabilidade ecológica das terras caboverdianas, vulnerabilidade essa ilustrada nos efeitos devastadores de secas persistentes e muito acentuada a partir da catástrofe ecológica de 1968- abrangente do conjunto da zona do Sahel, no qual Cabo Verde se inseria trágica e geograficamente -, bem como a diferenciação dos contextos sociológicos das diversas ilhas agrícolas no que se refere à receptividade aos desafios e desígnios políticos e ideológicos prosseguidos com a reforma agrária. 

      É assim que, segundo estamos em crer, esses desígnios e desafios tiveram uma melhor aceitação e uma mais ampla repercussão mobilizadora nas ilhas de Santiago e do Fogo, onde eram mais acentuadas tanto a fome campesina de terra como as clivagens sociais entre os grandes proprietários e os trabalhadores rurais. Ademais, eram nessas ilhas que permaneciam mais frescas/presentes e politicamente produtivas as memórias dos abusos e das arbitrariedades dos famigerados morgados, por vezes de origem metropolitana ou descendentes directos dos povoadores brancos.

    A implementação da reforma agrária servia, assim, o intuito do regime socializante de partido único no sentido da ostensiva demonstração da inviolabilidade do seu poder e com o fito de atestar total fidelidade ao seu programa político, o qual teria permanecido ideologicamente intacto e inteiramente conforme com o legado revolucionário do pensamento doutrinário de Amílcar Cabral.

    Com efeito, em resultado dos sentimentos de orfandade identitária, de assolamento político-ideológico e de acossamento doutrinário sentidos pelos círculos dirigentes do partido único e directamente provocados quer pelo golpe de Estado de Bissau, quer pela ruidosa e incontinente euforia demonstrada por uma oposição caboverdiana exilada em países como Portugal, a França, a Holanda e os Estados Unidos da América em vista do estertor final do PAIGC e do definitivo fracasso do considerado famigerado e, por isso, execrado projecto de unidade Guiné-Cabo Verde, assiste-se, no pós-14 de Novembro de 1980, a um nítido aumento das pulsões repressivas e histéricas do regime de partido único. Esse acréscimo repressivo e histérico ficaria, aliás, largamente testemunhado na desproporcionada reacção militaro-policial e nas inúmeras violações de direitos humanos básicos e elementares em face dos acontecimentos violentos de Santo Antão, bem como de outras ocorrências, como as críticas dirigidas contra as sevícias e outros maus-tratos a que eram sujeitos os presos nessa e noutras sequências, com destaque para a pichagem nocturna das paredes dos edifícios com slogans contra “as Instituições da República” (em especial, contra o partido único e os seus dirigentes), a feitura e a disseminação de panfletos clandestinos do mesmo teor e esporádicas manifestações de descontentamento com o regime, protagonizadas essencialmente por jovens urbanos.

 

     3.2. Como consequência directa do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, uma primeira revisão da Constituição de Setembro 1980 procede à consignação formal das mudanças políticas entretanto ocorridas em Cabo Verde, designadamente a extinção do PAIGC, enquanto partido único binacional e a transformação do seu ramo caboverdiano em PAICV. Na mesma lógica e em concretização das decisões da Conferência Nacional soberanista dos militantes caboverdianos do PAIGC, erigida em congresso fundador do PAICV, a 19/20 de Janeiro de 1981 (sintomaticamente, a data das tradicionais comemorações do “dia dos heróis nacionais”, em homenagem à memória do aniversário (desta feita, o oitavo) da morte (do “bárbaro assassinato”, na terminologia da época) de Amílcar Cabral, procede-se à expurgação no texto constitucional de todas as referências ao PAIGC como força política dirigente do Estado e da Sociedade, ao falido projecto de união orgânica com a Guiné-Bissau e de construção da pátria africana binacional- teorizada e almejada por Amílcar Cabral -, à equiparação dos cidadãos guineenses aos cidadãos caboverdianos quando residissem em Cabo Verde, bem como ao desmantelamento das empresas mistas constituídas entre os dois Estados.

    Todavia, o regime socializante de partido único, constitucionalmente consagrado, não é objecto de quaisquer questionamentos intra-partidários nem sequer é alvo de outras mudanças substancias na sua matriz político-ideológica. É, assim, que o PAICV sucede ao PAIGC como partido único e permanece por mais dez anos como força política dirigente da sociedade e do Estado caboverdianos.

    O fim do projecto de unidade da unidade Guiné-Cabo Verde e a inusitada reacção das populações santantonenses, alegadamente manipuladas pela UCID e, em especial, por grandes proprietários fundiários, tidos como mestres no manejamento dos laços de compadrio e de patronagem que mantinham com os camponeses e visceralmente avessos ao “comunismo” que alegadamente presidiria às discussões públicas e às acções políticas que deveriam conduzir à reforma agrária, determinarão a (re)ponderação por parte dos dirigentes caboverdianos de novas, mais equilibradas, fontes de legitimação política, mesmo se também exclusivamente centradas no solo das ilhas e nas preocupações das diásporas caboverdianas.

     Neste contexto, assiste-se, num segundo tempo pós-aprovação da Constituição de Setembro de 1980, a um progressivo degelo do regime.

    Essa relativa distensão repercutir-se-ia:

   i) Na formulação de um novo discurso político-identitário e de uma nova postura nacionalista que, visando explicitamente a superação do geral sentimento de orfandade identitária, sem todavia renegar ou, sequer, questionar o regionalismo africano da identidade política do povo caboverdiano bem como a dimensão africana da sua cultura, tinha também em conta as especificidades históricas e insulares da nossa crioulidade. 

    É nesse sentido que se orientam os trabalhos do Simpósio Internacional Amílcar Cabral, realizado em Janeiro de 1983, na cidade da Praia, e, em particular, a comunicação da ensaísta e estudiosa Dulce Almada Duarte, a qual complementa no plano identitário-cultural as intervenções de Aristides Pereira, de Pedro Pires e de Olívio Pires, os mais abalizados e consagrados teóricos da democracia nacional revolucionária e os mais conhecidos estrategas do regime caboverdiano de partido único.

   ii) Na busca da reconciliação com as elites claridosas e neo-claridosas, em parte radicadas nas diásporas ocidentais, por ocasião das comemorações, na cidade do Mindelo, do quinquagésimo aniversário da revista Claridade.

     A busca de uma reconciliação nacional abrangente, à sombra daquela encetada com sucesso com os claridosos e os neo-claridosos, estendeu-se a outras áreas culturais.

     É, assim, que na sequência da criação, nos inícios de 1986, do Ministério da Informação, da Cultura e dos Desportos (MICD) e da expressa disponibilização do titular da pasta em encetar um diálogo aberto, franco e profícuo com todos os agentes culturais, como parte de uma mais ampla abordagem da sociedade civil (como, aliás, o mesmo deu explicitamente a conhecer), realiza-se em 1988, na cidade da Praia, o Primeiro Encontro de Música Nacional, organizada pela Direcção-Geral da Animação Cultural do MICD, em particular pelos seu dirigente Eutrópio Lima da Cruz e pelo seu técnico Carlos Alberto Martins. Anote-se como auspiciosa curiosidade que o célebre fundador dos Bulimundo viria a sofrer um fatal acidente de viação depois da realização da noite de gala musical que encerrou o mesmo Encontro de Música Nacional, e encontrou a morte dois dias depois, tendo sido acompanhado à sua última morada pela nata da música caboverdiana, na altura reunida na cidade da Praia.

    Aberto por Abílio Duarte, ele próprio um respeitado compositor de mornas, hinos e marchas guerrilheiras e revolucionárias, e dirigido pelo titular da pasta da cultura, David Hopffer Almada, o Primeiro Encontro de Música Nacional permitiu o confronto entre as diferentes gerações e sensibilidades dos cultores, dos estudiosos e dos amantes dos diferentes géneros da música caboverdiana, possibilitou uma exaustiva dissecação do estado das artes bem como a exorcização dos inúmeros tabus, preconceitos e questionamentos identitários em relação aos diferentes géneros musicais, designadamente ao funaná, ao batuco ou, até, à música erudita cultivada por Vasco Martins. Em resultado dos debates (por vezes muito acesos), todos os géneros musicais foram reconhecidos como identitariamente pertinentes do ponto da sua caboverdianidade e, por isso, considerados como merecedores do respeito e da protecção públicas no quadro de uma dinâmica em que a tradição coexiste e entrelaça-se com a inovação e a modernidade, e o nacional conjuga-se com o regional e o universal, como, aliás, os factos vieram ilustrar e comprovar de forma por demais profusa e insofismável. 

 iii) Na integração de candidatos independentes nas listas unipartidárias para as eleições legislativas, bem como na indigitação de personalidades apartidárias para o exercício de funções nos conselhos deliberativos (órgãos de um poder local não eleito e presidido por delegados do governo designados pelo primeiro-ministro).

    Assinale-se que, mesmo nos conturbados e, por vezes, tensos momentos políticos que, no período pós-independência, se seguiram aos confrontos político-ideológicos e identitário-culturalistas do pós-25 de Abril e ao saneamento de algumas personalidades conotadas, por vezes abusivamente, com o sistema colonial-fascista e as suas instituições repressivas, como a famigerada e execrada PIDE/DGS, derrubados com o 25 de Abril de 1974, são visíveis os esforços do novo poder no sentido da optimização política da obra literária (que não do discurso ensaístico e identitário) dos claridosos e dos neo-claridosos, como Jorge Barbosa, Baltasar Lopes da Silva e Manuel Lopes, doravante consagrados como autores e elementos nucleares dos currículos escolares. Os mesmos esforços foram igualmente extensivos à recuperação política e/ou técnico-administrativa de alguns dos seus eventuais críticos e opositores e a sua sequente integração quer no sistema de partido único e na “saga da reconstrução nacional” quer ainda na construção de um discurso de sedimentação nacionalistas das tragédias dos flagelados do vento leste e da saga da sobrevivência da nação caboverdiana contra todas as calamidades climatéricas e históricas. É assim que, por exemplo, Baltasar Lopes da Silva é designado como membro do nascente Conselho Nacional de Justiça, cargo a que, depois, renunciaria, “desgostoso e farto ” de certas práticas, aludidas num bilhete publicado por António Caldeira Marques no seu livro de ajuste de contas com o Cabo Verde independente e sintomaticamente intitulado Os Bazófios da Independência, mas que o próprio intelectual claridoso nunca desvendou, pelo menos em terreiro público. Anote-se como curiosidade que, segundo esse advogado residente em Portugal e em ruptura com o PAIGC desde os fins dos anos setenta, o Cabo Verde independente teria sido deficientemente descrito na obra Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes, autor que, em resposta pública, fez publicar, pela Spleen-Edições, o livro também sintomaticamente intitulado Os Desatinos de Caldeira Marques.

 iv) Na aprovação, sobretudo a partir de 1986, de diversas leis relativamente liberalizantes (como a lei de imprensa e a lei das associações, ambas de 1987), na admissão oficial de um não negligenciável aumento da conflitualidade social provocado pela competição pelos chamados bens raros, complementada pela pública indagação do futuro do regime e do papel da sociedade civil por ocasião dos debates preparatórios do III Congresso do PAICV, de 1988, bem como na implementação de outras medidas que, depois, culminariam na aprovação de vários diplomas legais com vista a permitir, a curto prazo, a participação de grupos de cidadãos independentes na disputa das primeiras eleições autárquicas competitivas, previstas já para 1991.

   v) Na liberalização económica de 1988, concretizada com a adopção do conceito liberalizante de extroversão da economia bem assim com uma profunda revisão da parte económica da Constituição de Setembro de 1980 com vista à reformulação e à restrição dos sectores económicos reservados ao Estado.   

    Não obstante as suas inevitáveis e intermitentes irrupções repressivas e a sua inegável inserção na tipologia dos regimes ditatoriais de partido único, em especial daqueles terceiro-mundistas e africanos de natureza socializante, o regime autoritário caboverdiano foi, desde muito cedo, impregnado por um elevado grau de moderação político-ideológica e repressiva, devido a um conjunto de circunstâncias, das quais destacamos: 

   i) As fragilidades estruturais do país e a sua extrema dependência em relação à ajuda externa (de organizações internacionais e de países doadores dos mais diferentes quadrantes político-ideológicos) bem como das remessas de emigrantes, maioritariamente radicados em países ocidentais, de tradição política liberal-democrática assente na economia de mercado;

    ii) A existência de elites intelectuais e pequeno-burguesas detentoras de um savoir faire secular, nos planos económico, político e cultural, e dotadas de prestígio social e de instituições, como, por exemplo, as Associações Comerciais, de Sotavento e Barlavento, e o IPAJ, as quais, conjuntamente com as Igrejas, sobretudo a Católica, e com as elites emergentes e constituídas por jovens quadros regressados dos estudos superiores num estrangeiro política e ideologicamente muito díspare, podiam exercer uma influência moderadora dos conflitos sociais e contrária à ocupação exclusiva dos esteios político-sociais pelas elites monopartidárias, lideradas pelos auto-proclamados “melhores filhos do povo”, vindos da luta político-armada contra a dominação colonial, e enquadradas pelo partido único e pelas suas organizações sociais e de massas;

  iv) Um pensado pragmatismo político e ideológico, a nível interno, e um activo não-alinhamento, no plano das relações externas, muito inspirados no pensamento humanista de Amílcar Cabral (reconhecidamente avesso a roupagens revolucionaristas e a rotulagens marxistas-leninistas, não obstante o seu inegável pendor democrático-revolucionário e marxizante, fundado na “concepção científica do mundo”, como se lê em inúmeros documentos do PAICV) bem como numa férrea e reconhecida vontade de viabilizar e desenvolver o país e de, assim, assegurar a sobrevivência das populações das ilhas enquanto povo independente e soberano. 

   Esse elevado grau de moderação, engendrado pelas circunstâncias objectivas e subjectivas, acima referenciadas, parece ser a causa imediata da característica oscilação do regime caboverdiano de partido único entre:

   i) Por um lado, o incentivo, mesmo se eminentemente retórico, da participação política e do exercício democrático dos direitos fundamentais por uma população tradicionalmente arredada pelas oligarquias coloniais e pelas autoridades colonial-fascistas da gestão da coisa pública, e, por outro lado, a funcionalização política e ideológica do exercício dos direitos políticos consagrados no programa do partido único e na Constituição da República, daí resultando o inevitável cerceamento da cidadania e a nítida limitação das liberdades publicas, mormente as do foro político.

 ii) Por um lado, as exortações a uma prática efectiva de políticas de unidade nacional, interclassista e desenvolvimentista (consubstanciada, por exemplo, na busca

quase obsessiva de consensos sociais alargados, mediante a discussão pública e devidamente dirigida das leis e das políticas públicas mais relevantes, incluindo as relativas ao sistema político, como as, por exemplo, tiveram lugar por ocasião da preparação do III Congresso do PAICV) e, por outro lado, a ilegalização da oposição política e as (ir)regulares irrupções repressivas, como as ocorridas a 31 de Agosto de 1981 na ilha de Santo Antão, na sequência das discussões das leis da reforma agrária e dos levantamentos e dissensões contras as mesmas leis, ou aquelas de silenciamento e encarceramento de adversários do projecto de união orgânica com a Guiné-Bissau bem como da natureza socializante e /ou autoritária das “Instituições da República”.

iii) Por um lado, a defesa dos direitos colectivos do povo das ilhas, em especial dos seus direitos à independência, à soberania permanente sobre os seus recursos naturais, ao desenvolvimento sustentado e ao bem-estar das suas populações, bem como o explícito posicionamento a favor da dignidade humana e social dos caboverdianos. Este último posicionamento ficou concretizado, por exemplo, na democratização do acesso ao ensino primário e secundário, aos cuidados básicos de saúde, na protecção e na livre fruição da língua materna e de todas as manifestações da cultura nacional, na tutela constitucional e jurídico-legal dos direitos fundamentais pessoalíssimos dos cidadãos, como a

inviolabilidade da sua integridade física e moral, a liberdade de consciência, de religião,

de expressão do pensamento, de criação, etc., e a proibição da tortura e de tratamentos

desumanos, cruéis e degradantes). Por outro lado e concomitantemente, a prática (mesmo

se esporádica) por agentes da segurança do Estado de actos lesivos dessa mesma dignidade,

como testemunham os actos de tortura praticados contra os presos da contra-reforma

agrária e contra outros opositores e participantes de manifestações pacíficas e de desagravo

cívico e político.

 

                                                          IV

             Abertura política, mudança democrática e emergência da Segunda República caboverdiana     

 

     Em repercussão da perestroika e da glasnost soviéticas, lideradas pelo então Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), Mikhail Gorbatchov, da queda do Muro de Berlim, a 9 de Novembro de 1989, e das sequentes e vertiginosas mudanças democráticas no Leste da Europa, nas ilhas caboverdianas ocorrem a abertura política de 19 de Fevereiro de 1990 e a subsequente pluripartidarização de facto da sociedade caboverdiana, com a emergência do MpD (Movimento para a Democracia), o regresso do exílio (aliás, incompreensivelmente tardio) de alguns dirigentes da UCID e as tentativas, frustradas, de reconstituição da UPICV (agora vãmente denominado UPICV-R (Reconstruído) e de outras forças políticas, reduzidas ao estatuto de associação política, como a USD (União Social-Democrata), de Jorge Querido e Pedro Martins, ou a Associação Cívica Cristã, do Frei António Fidalgo Barros e do arquitecto António Jorge Delgado.

      A revisão constitucional de Setembro de 1990, a qual, como é sabido, deu uma nova redacção e um novo conteúdo jurídico-material, de cariz plenamente democrático, à Constituição política de 1980, engendraria a mudança de regime com a revogação do famigerado artigo quarto da Constituição de 1980, a implantação de jure de um sistema democrático pluripartidário e a mudança da forma (ou sistema) de governo com a institucionalização de um regime semi-presidencial.

  Essa mudança, reforçada com a aprovação formal de leis consagradoras de amplas liberdades políticas democráticas, designadamente das liberdades de constituição de partidos políticos, de associação (inclusive política), de reunião, de manifestação e de greve, bem como de novas leis eleitorais, plenamente democráticas, seria ratificada pelas eleições legislativas, presidenciais e autárquicas, respectivamente de Janeiro, Fevereiro e Dezembro de 1991.

      Dessas eleições resultaria a vitória esmagadora, com maioria qualificada, da lista de candidatos proposta por uma ampla e ecléctica oposição política, de natureza interclassista, frentista e anti-paicvista, coligada no seio do MpD e conduzida por Carlos Veiga, doravante o seu líder histórico. 

       Deste modo, ficou a democracia caboverdiana geneticamente marcada pelo pecado original da bipolarização político-partidária, circunstância muito favorecida pela não legalização tempestiva da UCID por parte do Supremo Tribunal de Justiça, alegadamente por não preenchimento por parte dessa força política, primacialmente implantada na diáspora, dos requisitos mínimos exigidos na lei dos partidos políticos, recentemente aprovada. 

      Para além de significar a opção por um novo governo no quadro do regime democrático instituído pela revisão constitucional de Setembro de 1990, a vitória esmagadora da oposição nas primeiras eleições plenamente democráticas realizadas em Cabo Verde foi outrossim interpretada pelos seus beneficiários como um mandato claro e democrático do povo ao MpD no sentido de uma radical ruptura com o modelo de sociedade, a ideologia, os símbolos, as instituições e as práticas do regime de partido único.

     Nesta óptica, as eleições de de13 de Janeiro de 1991 abriram caminho à concretização das seguintes medidas:

  i) Desmantelamento total das remanescentes instituições do regime de partido único, especialmente das mais ferozmente desqualificadas, porque conotadas com o rosto repressivo, monopartidário e “democrático-revolucionário” do regime de partido único, com destaque para a polícia política (comummente conhecida como Segurança do Estado), os tribunais de zona (também vulgarizados como “tribunais populares”), as comissões de moradores, as milícias populares bem como as comissões de reforma agrária.

 ii) Aprovação, em Setembro de 1992, de uma Constituição (materialmente nova, mas formalmente adoptada mediante o procedimento de revisão total da versão de Setembro de 1990 da Constituição de Setembro de 1980). A nova Constituição consagraria novos símbolos nacionais (incluindo o hino e a bandeira), o parlamentarismo mitigado (ou parlamentarismo racionalizado) como forma (ou sistema) de governo e o Estado Social e Democrático de Direito, alicerçado numa economia mista de mercado fundado na iniciativa e na propriedade privadas e sustentado num amplo leque de direitos, liberdades e garantias e de direitos económicos, sociais e culturais, irradiadores da dignidade da pessoa humana, consagrada como núcleo constitucional nevrálgico.

  iii) Encetamento de amplas reformas económicas assentes no desmantelamento do sector público empresarial e na sua privatização bem como na liberalização dos mercados e na integral abertura da economia aos investimentos externos.

    Deste modo, a vitória por maioria qualificada da oposição emergente possibilitou a célere edificação da ossatura jurídico-legal de novos modelos e paradigmas políticos e económico-sociais, de matriz euro-ocidental e cariz democrático-liberal.

    Por outro lado, alguns observadores da conjuntura caboverdiana da altura têm sustentado que, concomitantemente, a vitória esmagadora do MpD fertilizou o terreno e contribuiu para o nascimento de um neo-autoritarismo, assaz perverso, mesmo se formalmente democrático, porque assente em maiorias de âmbito parlamentar, presidencial e governamental, legitimadas pelo voto popular livremente expresso. É esse neo-autoritarismo que é, aliás, contundentemente causticado no poema “Ali ben Ténpu di Ali Babá…”, de Danny Spínola, no poema “Conjunturado” e na música “Dimokransa”, de Kaká Barboza (interpretada por Mayra Andrade no seu celebrado disco de estreia Navega), em vários poemas de T. V. da Silva constantes do seu livro “Na Kaminhu” bem como em poemas vários do livro “Porcos em Delírio”, de Jorge Carlos Fonseca. Curiosamente, é o mesmo Kaká Barboza que no poema-canção “Konjuntura” tinha tecido severas e sentidas críticas ao estado de degenerescência que o celebrado compositor e poeta teria observado nos anos finais da primeira governação do PAICV, numa postura aparentada com a dissidência constante das letras de “Dimocracia”, dos Bulimundo, ou de alguns poemas do livro Na Kantar di Sol, de Euricles Rodrigues (Danny Spínola), Kardisantus, de T. V. da Silva, O Silêncio Acusado de Alta Traição e de Incitamento ao Mau Hálito Geral, de Jorge Carlos Fonseca, bem como dos “Poemas com Odor a Orgia e Clandestinidade” do segundo volume do livro À Sombra do Sol, de José Luís Hopffer Almada, para não nos referirmos à perene irreverência anti-autoritária da poesia de Arménio Vieira e de alguns passos da poesia de O Segundo Livro de Notcha, de T. T. Tiofe.

    Na óptica da dissecação do seu alegado neo-autoritarismo, qualificado como “tirania da maioria” ou “ditadura da maioria” porque alegadamente indiferente aos direitos das minorias, ou, até, activamente desrespeitador dos mesmos direitos, têm sido apontadas as seguintes deficiências sistémicas e derivas anti-democráticas como congénitas ao neo-autoritarismo da maioria qualificada, saída das eleições de 13 de Janeiro de 1991 e renovada nas eleições de Janeiro de 1996:

  i) Uma excessiva propensão para a exclusão política e a marginalização social de críticos e de adversários políticos, profusamente ilustrada, por exemplo, na perseguição judicial de autores de denúncias e críticas jornalísticas bem como na prática do emprateleiramento de funcionários públicos e de quadros do sector empresarial do Estado não afectos aos alegados desígnios hegemónicos dos novos detentores do poder.

  ii) Leis e instituições eleitorais demasiado permeáveis à fraude eleitoral e interferência excessiva por parte de poderes de facto, incluindo os ilícitos, na formação da vontade dos eleitores.

   iii) A busca de uma hegemonia política irrestrita, fundamentada na (também “ternurenta”) diabolização do adversário e numa bipolarização política, por demais invasora de todos os espaços sociais, tanto públicos como privados, e fortemente inibidora quer da emergência de novas forças políticas quer ainda da autonomia da sociedade civil e das suas expressões orgânicas e mediáticas.

  iv) A deliberação expressa da constituição de uma “classe empresarial próxima” do partido no poder.

   Os efeitos inibidores induzidos pela bipolarização político-partidária ter-se-iam indubitavelmente comprovado nos escassos escores eleitorais obtidos pelos partidos resultantes das duas sucessivas dissidências e cisões do MpD - o PCD (Partido da Convergência Democrática, liderado por Eurico Correia Monteiro e Jorge Carlos Fonseca) e o PRD (Partido da Renovação Democrática, liderado por Jacinto Santos e, depois, por Victor Fidalgo) - bem como de outros pequenos partidos, como o PTS (Partido do Trabalho e da Solidariedade, fundado por Onésimo Silveira), UCID (enredado em intermináveis disputas internas) ou o PSD (Partido Social-Democrata, dirigido por João Além), mesmo quando reunidas em coligações políticas pré-eleitorais.

    Anote-se, contudo, que a bipolarização política protagonizada pelo MpD e pelo PAICV - aliás, à primeira vista assaz inusitada num sistema eleitoral proporcional, mas muito favorecida pela pequena dimensão de grande parte dos círculos eleitorais - não pôde impedir nem a representação parlamentar, primeiramente do PCD, e depois da coligação formada pelo PTS e pelo PCD, e, finalmente, da UCID, no decorrer respectivamente das eleições legislativas de 1996, 2001 e 2006.

    Outrossim, a bipolarização político-partidária não logrou tornar-se impeditiva da emergência de forças independentes capazes de obter expressivos escores eleitorais nas eleições autárquicas, como ilustram as associações políticas autárquicas lideradas por Onésimo Silveira, na ilha de S. Vicente, por Jorge Santos, no concelho da Ribeira Grande de Santo Antão, por Alcídio Tavares, no concelho do Paúl, ou ainda por Jorge Figueiredo, no concelho do Sal.

   Não obstante a intrínseca vantagem consubstanciada nas maiorias governativas estáveis que a bipolarização político-partidária tem proporcionado, os efeitos da mesma bipolarização têm sido, por outro lado, inegavelmente devastadores no que se refere à emergência de uma consistente e tolerante cultura democrática, na medida em que têm conduzido à recorrente e sistemática diabolização dos adversários políticos e, até, ao desaparecimento de algumas forças partidárias, como, por exemplo, o PCD, ou à sua notória irrelevância política, como nos casos do PRD ou do PSD, mesmo se considerarmos a eleição de dois deputados da UCID nas eleições legislativas de 2006.      

    É ao acima referenciado neo-autoritarismo, política e parlamentarmente legitimado, que também se imputa a mudança, alegadamente intempestiva e revanchista, dos símbolos nacionais da República de Cabo Verde (hino, bandeira e armas).

    Se, desde o golpe de Estado de Nino Vieira e a correlativa e definitiva falência do projecto de união orgânica com a Guiné-Bissau, se detectava um geral e consensual sentir quanto à premente necessidade da substituição do hino nacional caboverdiano, também hino do PAIGC e em tudo idêntico ao hino nacional da Guiné-Bissau, a questão tornou-se assaz azeda quando se tratou da mudança da bandeira nacional.

    Ainda que inspirada na bandeira do PAIGC que também serviu de modelo à bandeira da República da Guiné-Bissau e era assumidamente representativa dos tempos pan-africanistas e unitários da emergência do independentismo caboverdiano- aliás, claramente simbolizados nas suas cores ouro-verde-rubra e na estrela negra -, consideravam os defensores da primeira bandeira nacional que a identidade caboverdiana, simbolizada no milho e na concha marinha, se encontraria suficientemente plasmada na antiga bandeira nacional.     

   Ademais, argumentava-se que não colheria a objecção relativa às efectivas parecenças entre a bandeira nacional e a bandeira do antigo partido único, na medida em que esta fora tempestivamente mudada ainda antes das eleições de 1991, exactamente para obviar a essa confusão, aliás, inadmissível num sistema democrático no qual vigore uma inequívoca separação identitária entre o Estado e os partidos, e, por isso, devidamente sancionada na lei dos partidos políticos.

     Argumentou-se ademais que a nova bandeira nacional seria uma cópia quase fiel da bandeira regional das Antilhas Holandesas, país - irmão - tal como a Guiné-Bissau -, pela sua língua crioula (o papiamento) e por outras afinidades culturais e identitárias.  

     Uma retórica, frequentemente fantasmática, diabolizante e alegadamente arrasadora dos malefícios repressivos e dirigistas dos tempos do regime de partido único (aliás, muito presente, no seu carácter apologético, no livro O Partido Único em Cabo Verde - Um Assalto à Esperança, de Humberto Cardoso) sustentava a sanha democrática, desmesuradamente revanchista, dos titulares e detentores das funções executiva, parlamentar e autárquica do novo poder democrático, porque eleito e legitimado pelo voto livre e soberano dos caboverdianos.

     A essa retórica opuseram os seus adversários, doravante constituídos em oposição parlamentar e, por vezes, colocados em alguns nichos autárquicos, em órgãos da imprensa escrita bem como em organizações da sociedade civil, um discurso que se escudava quer na relativa legitimação temporal e epocal do regime caboverdiano de partido único e das suas opções nacionalistas, africanistas, não-alinhadas e socializantes, quer na desmistificação do percurso político dos detentores da retórica anti-totalitária, ora dominante.

  Assim, o novo discurso oposicionista trazia à colação, em seu favor e para benefício do seu passado histórico, duas linhas de argumentação:

     i) A alegada moderação do antigo regime caboverdiano de partido único, a qual o teria tornado original e o teria colocado em nítido e especial contraste com as práticas sumamente repressivas de outros regimes monopartidários africanos e do Leste europeu, das quais seria, por isso, insusceptível de equiparação. 

    ii) A estranha inércia política de muitos dos seus opositores emergentes no pós-abertura política de 19 de Fevereiro de 1990, então alegadamente reduzidos, durante a vigência do regime de partido único, a:

  a) Adversários históricos do PAIGC/PAICV, designadamente ex-militantes da UDC e da UPICV e outros opositores políticos, alguns alegadamente saudosistas da antiga metrópole colonial, todos então silenciados nas ilhas e maioritariamente reunidos, na diáspora, no seio da UCID, organização política dantes vituperada como herdeira da spinolista UDC e, depois, política e judicialmente aventada e, até, condenada nos processos da contra-reforma agrária enquanto alegada instigadora dos “violentos desacatos” do 31 de Agosto de 1981, em Santo Antão.

 b) Grupúsculos radicais de esquerda, maioritariamente constituídos de antigos militantes maoístas descontentes e de chamados “fraccionistas trotskystas”, expulsos e/ou voluntariamente desvinculados do PAIGC em 1979, posteriormente exilados em Portugal, nos Estados Unidos da América, no Brasil e em outros países ocidentais. Os exilados em Portugal organizaram-se, primeiramente, no quadro do GRIS (Grupo Revolucionário de Intervenção Socialista, integrado por Eugénio Inocêncio, Helena Lopes da Silva, Gualberto do Rosário, Jorge Carlos Fonseca e outros militantes considerados então como muito próximos do PSR (Partido Socialista Revolucionário, português, herdeiro da LCI (Liga Comunista Internacional, então filiada na IV Internacional e de que Manuel Faustino tinha, aliás, sido proeminente dirigente, desde os tempos da clandestinidade anti-colonial) e, depois, dos CCPD (Círculos Cabo-Verdianos para a Democracia, fundados e dirigidos por Jorge Carlos Fonseca) e de outras associações, como a Liga Cabo-Verdiana dos Direitos Humanos, cujos propósitos confessos consistiriam, primacialmente, na defesa dos direitos humanos das vítimas da repressão política, alegadamente reinante nas ilhas. Sublinhe-se que essas organizações, em especial os CCPD, seriam depois essenciais na articulação programática e na vitoriosa emergência do MpD (Movimento para a Democracia).

    Aos opositores políticos congregados nos CCPD (e depois no MPD) imputariam depois os seus adversários, tanto do PAICV como da UCID, a reiterada e a alegadamente muito conveniente amnésia em relação ao seu passado revolucionarista de radicais de esquerda e a sua alegada responsabilidade na emergência do regime caboverdiano de partido único bem como uma supostamente muito apressada e pouco convincente reconversão à social-democracia, ao socialismo democrático, à democracia liberal, ao neo-liberalismo económico e, até, ao neo-conservadorismo político. Essa reconversão aos ideais democrático-liberais teria sido usada, mais recentemente, como subterfúgio e tentativa de adaptação aos tempos democráticos que despontavam sobre os escombros do Muro de Berlim, do cadáver em rápida putrefacção que já era o socialismo real e da crise letal das ideologias e das utopias revolucionárias. 

    Prova da moderação do regime caboverdiano de partido único e da relativa inércia organizacional e da inépcia política dos seus críticos e detractores seriam alegadamente, na óptica dos novos opositores nascidos com o 13 de Janeiro de1991, os seguintes factos, tidos por sumamente exemplares:

 i) a integração, durante a vigência do regime de partido único (sobretudo nos anos oitenta do século XX), de conhecidos críticos e opositores do regime em altos cargos da administração pública e do sector empresarial do Estado.

  ii) Uma não negligenciável liberdade de expressão, alegadamente muito exercitada nas críticas e reclamações públicas dos cidadãos dirigidas contra abusos e arbitrariedades do poder então vigente.

   iii) Uma inegável liberdade de informação, consagrada na lei de imprensa, de 1987, que, expurgada de uma ou outra norma (designadamente do seu famigerado e muito causticado artigo cinquenta), teria sido, aliás, sintomaticamente mantida em vigor durante parte do tempo da governação do MpD. A alegada liberdade de imprensa durante o regime caboverdiano de partido único estaria igualmente ilustrada na existência de uma imprensa livre, crítica e/ou avessa ao regime, como comprovariam o paradigmático caso do jornal oposicionista Terra Nova bem como a livre circulação da imprensa estrangeira no conjunto arquipelágico do país.

  iv) Uma ampla liberdade de criação literária, artística, intelectual, científica e cultural, condicionada, é certo, pelo dirigismo político-administrativo vigente e pela exigência constitucional de não contrariedade ao progresso social das obras produzidas no exercício da mesma liberdade de criação, mas favorecida pela inexistência da censura prévia e ilustrada na proliferação de autores, intérpretes e grupos nos domínios da música, da dança e de outras expressões artísticas, bem como na existência de várias iniciativas culturais e de importantes publicações de carácter privado ou cooperativo, nas áreas literárias e em outros domínios, como o das ciências jurídicas, e, por isso, não directamente controladas ou susceptíveis de controlo pelos poderes públicos. Seriam, por exemplo, os casos das revistas Ponto & Vírgula, Sopinha de Alfabeto, Fragmentos bem como da revista jurídica do IPAJ.

  v) A proibição constitucional e legal da prática por parte das autoridades e dos seus agentes de quaisquer actos de tortura ou de outros tratamentos desumanos, cruéis e degradantes contra a pessoa humana, cuja integridade física e moral era considerada inviolável.  

 vi) A inexistência de prisioneiros de consciência e de presos políticos no período que se segue ao indulto presidencial concedido aos implicados nos acontecimentos da contra-reforma agrária, depois julgados em tribunal militar e condenados a pesadas penas de prisão, aliás, agravadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, mas, graças ao supra-referido indulto presidencial, cumpridas somente por um curto período de tempo.

  v) A existência de um parlamento constituído de deputados partidários e de alguns deputados independentes (com destaque para o futuro presidente do MPD) e caracterizado pela vivacidade dos debates, mormente entre os deputados representados na chamada Reunião Conjunta das Comissões Especializadas e o grupo formado pelos ministros-deputados, geralmente representativos das posições do governo, etc.

  Argumentava-se ademais que, mesmo a nível económico, as soluções inegavelmente estatizantes consignadas na Constituição de 1980 (como por exemplo, a estatuição de que todos os meios de informação e de comunicação deveriam ser propriedade exclusiva do Estado) seriam essencialmente semânticas, nunca tendo conhecido plena concretização prática. Pelo contrário, o sector privado teria conhecido uma relativa e promissora expansão, designadamente mediante a sua associação ao Estado no quadro institucional das empresas mistas e o seu reforço em sectores como a construção civil, os transportes públicos de passageiros, o comércio (grossista, retalhista e informal) e o ainda incipiente sector turístico. No que se refere à reforma agrária, as medidas expropriadoras previstas na sua lei de bases e primacialmente dirigidas contra os grandes proprietários rurais e os absentistas que não fossem emigrantes teriam sido aplicadas somente de forma parcial, estando, todavia, previstas indemnizações justas e compensatórias nos casos da sua concretização.  

   Por outro lado, sustentava-se que o sector público empresarial fora fruto da independência e de uma deliberada vontade de soberania nacional de Cabo Verde, porque, em grande medida, construído de raiz no período pós-independência por livre iniciativa do governo caboverdiano, por vezes a partir de incipientes serviços personalizados do Estado (como os serviços de electricidade e de água ou a SAGA). Argumentava-se, ademais que a criação do sector empresarial do Estado teria visado primacialmente satisfazer as necessidades mais prementes das populações e colmatar as lacunas resultantes da incipiência de um sector empresarial nacional, então confinado a um comércio totalmente dependente de importações oriundas de Portugal, à pequena indústria, ao transporte público de passageiros e à propriedade imobiliária, rústica e urbana. Deste modo, o mesmo sector público empresarial teria sido edificado não em razão de nacionalizações nem sequer por força da concretização de suicidários e radicais projectos ideológicos de mudanças sustentados em puro e duro voluntarismo revolucionário.

      Para mais, a política da extroversão económica e a abertura política de 1990 teriam sido da cabal iniciativa do regime de partido único, não tendo, por isso, resultado de quaisquer pressões políticas internas de uma, aliás, organicamente pouco relevante oposição política. As mesmas políticas de abertura teriam - em correlação com as revisões constitucionais de 1988 e de 1990- acarretado mudanças tanto da constituição económica como do próprio regime político caboverdiano.

      A esmagadora vitória da oposição, emergente com a abertura política de Fevereiro de 1990 e liderada pelo recém-constituído MpD, explicar-se-ia não necessariamente pelo mérito exclusivo ou predominante de uma resistência encarniçada, consistente e duradoura a um regime alegadamente totalitário, mas à exacerbação discursiva e à exponenciação retórica pós-abertura política dos defeitos estruturais do regime de partido único, primacialmente radicados no seu notório autoritarismo e na deficiente circulação política que o mesmo propiciava.

      Essa exacerbação retórica, oportuna e inteligentemente protagonizada pela oposição emergente com a abertura política de Fevereiro de 1990, teria sido particularmente adequada e eficaz na medida em que teria ocorrido num tempo, em que, por via da sua ampla mediatização e da dissecação dos seus pressupostos anti-repressivos e anti-totalitários, as inesperadas e vertiginosas mudanças democráticas no Leste Europeu tinham imediatas e contundentes repercussões nas campanhas políticas em curso nas ilhas e diásporas caboverdianas e na mobilização de um crescente número de caboverdianos para os objectivos da mudança, não só do regime/governo, mas também dos rostos dos actores do palco político das ilhas.

      Deste modo, teriam sido, por exemplo, facilmente confundíveis as políticas altamente repressivas dos regimes de Leste - muito sofisticadas na sua eficácia engendradora do medo e da contenção, da desorganização e da desacreditação das dissidências e das oposições políticas, particularmente patentes nas práticas “arquivísticas” e delatoras da STASI da ex-RDA, ou abertamente terroristas, como no caso da Securitate romena - com o autoritarismo moderado do regime caboverdiano de partido único, alegadamente detentor de um modesto palmarés de prisioneiros políticos e de outras vítimas da intolerância, da repressão e da contra-informação políticas.

      Anote-se contudo que é a crescente e entusiástica mobilização das populações, saturadas por quinze anos de uma governação monopartidária, caracterizada pela “mesmidade” de uma “reconstrução nacional” conduzida pelos conhecidos e rotineiros rostos políticos “vindos de Conacry” e, em parte, da luta clandestina anti-colonial (isto é, a pouca circulação geracional apontada em Reformas Políticas em Cabo Verde, por Aristides Lima, um destacado jovem dirigente do PAICV nos anos noventa), e, por isso, cativadas pelas desassombradas denúncias e pelas novas esperanças alimentadas pelas prementes expectativas de mudança, eficiente e eficazmente geridas por uma emergente mas hiper-activa oposição e contrapostas à cautela política dos antigos governantes, aliás retratada no slogan eleitoral “nada de aventuras!”, que determina uma expressiva aceleração do processo de democratização, então em muito vociferante decurso nos revolutos anos de 1990/1991.

  Com efeito, a abertura política, anunciada a 19 de Fevereiro de 1980, no salão nobre da ANP, em conferência de imprensa do então primeiro-ministro Pedro Pires, apanhara de surpresa e colocara em estado de desorientação política uma parte significativa das bases militantes do partido único, que, aliás, no decorrer do seu recém - realizado congresso de 1988, desperdiçara a oportunidade histórica de se manter na ofensiva política ao recusar a mudança ou, pelo menos, a reforma do sistema político e o reconhecimento do papel político da sociedade civil caboverdiana. Sintoma da desorientação das bases e da falta de rumo das cúpulas partidárias do PAICV foram os jogos à volta da escolha dos candidatos do mesmo partido para as eleições que se avizinhavam.

    Com efeito, tendo renunciado ao cargo de líder do PAICV para, alegadamente, conduzir, com a necessária isenção político-partidária, o processo de transição democrática, Aristides Pereira surpreendeu tudo e todos quando decidiu recandidatar-se “a mais um mandato de Presidente da República”, agora num quadro plenamente democrático, porque configurado e determinado por eleições directas, secretas, universais e competitivas.

    Deste modo, a candidatura de Aristides Pereira pôs em crise as opções alinhavadas no Congresso de Julho de 1990 do PAICV, as quais previam uma relativa renovação da nomenclatura dirigente com a candidatura de Pedro Pires para Presidente da República e a de João Pereira Silva para Chefe do Governo.

    Com a reviravolta de Aristides Pereira, alegadamente pressionado por algumas forças vivas das ilhas e diásporas e nas quais avultava a figura de um Henrique Teixeira de Sousa plenamente reconciliado com as opções progressistas e outras orientações fundamentais do regime de partido único depois do fracasso do projecto de união orgânica com a Guiné-Bissau, o PAICV apresentou como candidatos às eleições legislativas de Janeiro de 1991 e às presidenciais de Fevereiro do mesmo ano as mesmas personalidades que durante quinze anos foram os rostos e os responsáveis máximos pela condução dos destinos do país sob um regime socializante de partido único. Esses sinais não podiam ser mais aziagos num tempo em que era palpável a febre de mudança quer de modelo político-social quer dos titulares dos cargos governamentais e dos órgãos políticos de soberania. 

      Sinais aziagos, não obstante os esforços empreendidos pela liderança do PAICV no sentido do estabelecimento de um maior equilíbrio regional e geracional na distribuição de cargos governamentais, como se comprova com a nomeação de um número inusitado de originários da ilha de Santiago e de jovens quadros para o governo na derradeira remodelação promovida por Pedro Pires.

    A candidatura de Aristides Pereira significou, outrossim, a segunda preterição de Pedro Pires para o cargo de Presidente da República de Cabo Verde. A primeira preterição ocorrera nas vésperas da proclamação da República de Cabo Verde quando Aristides Pereira decidira não aceitar o cargo de Presidente de uma República Unida da Guiné e Cabo Verde a ser criada imediatamente depois da independência de Cabo Verde, preferindo ser Presidente de Cabo Verde, cargo para o qual estava previsto Pedro Pires.

      A abertura política de 19 de Fevereiro de 1990 encontra em estado de expectante ansiedade uma oposição que, apesar dos intermitentes sinais de crise do regime e dos seus conhecidos pergaminhos críticos e satíricos com a “situação pouco democrática das coisas”, mostrara-se politicamente conformada, acantonando-se, no interior do país, nos sectores administrativo e empresarial do Estado, e confinando-se, na sociedade civil, a esparsas vozes assumidamente discordantes e sonantes com particular ênfase no público manda-bocas, nas páginas do jornal oposicionista Terra Nova (dirigido pelo ex-simpatizante do PAIGC e, depois, contundente oposicionista do regime de partido único, o Frei António Fidalgo Barros), na clandestinidade dos panfletos nocturnos e das publicações trazidas das diásporas portuguesa, holandesa ou norte-americana (como, por exemplo, a folha Nação Cabo-Verdiana, da UCID, ou os textos pró - instauração de uma democracia plena elaborados pelos activistas dos CCPD). 

     Encorajada pelos cada vez mais evidentes sintomas de crise do regime bem como pelos seus sinais de abertura, emitidos especialmente por ocasião dos debates preparatórios do congresso de 1988 do PAICV ou consubstanciados na previsão da participação de grupos de cidadãos nas eleições autárquicas de 19991, algumas dessa vozes, barricadas em algumas associações cívicas ou instituições públicas, como o IPAJ (Instituto de Patrocínio e Assistência Judiciários), pronunciar-se-iam frontalmente nas antenas da Rádio Nacional e em outros espaços públicos contra o sistema monopartidário e os seus pressupostos político-ideológicos.

    São essas vozes que, depois, passarão à ofensiva política, conquistando, num invulgarmente curto espaço de tempo, a maioria dos caboverdianos para o seu discurso “de competência e de mudança” direccionado primacialmente contra o “enquistamento” e o “anquilosamento” dos detentores do poder político no regime de partido único e o seu discurso político sumamente petrificado.   

    É assim que, dois meses depois da sua inauguração pela abertura política de 19 de Fevereiro de 1990 e da sequente ultimação e divulgação pública, a 4 de Março de 1990, da declaração política do MPD, sintética mas sintonizada com as mais profundas expectativas populares de plena democratização  da sociedade e do poder político caboverdianos, , o processo de democratização do país conheceu um inesperado vigor e uma inusitada aceleração, em especial a partir a partir das primeiras aparições públicas dos principais rostos do recém-criado MpD: a primeira na conferência de imprensa do Hotel Praia-Mar, celebrizada pela reiteração da exigência do “desmame” do partido único, desferida pela primeira vez por José António dos Reis na sequência imediata da conferência de imprensa de Pedro Pires no salão nobre da Assembleia Nacional de anúncio da abertura política, isto é, pelo fim da “parasitação” do Estado por parte do PAICV mediante o pagamento dos vencimentos dos funcionários desse partido e das organizações de massas suas satélites e a concessão às mesmas entidades de subsídios de diverso teor por parte do Estado; a segunda, na sequente sessão de esclarecimento do Centro Social Primeiro de Maio, presidida por Carlos Veiga, então presidente provisório do MPD, durante a qual se escutam as primeiras referências abertamente desassombradas aos alegados abusos e arbitrariedades da polícia política e as primeiras explicitações públicas das exigências políticas constantes da Declaração Política que, elaborada por um conjunto de menos de duas dezenas de fundadores e, depois, subscrita por mais de seiscentos cidadãos, serviria de ponto de partida para a constituição de um amplo e multifacetado “Movimento para a Democracia”.

     Anote-se, entre parentêsis, que, antes da abertura política de Fevereiro de 1990, a crise do regime de partido único ficara atestada, por exemplo, nos seguintes sintomas: o acréscimo de panfletos e de críticas públicas contra os seus procedimentos e representantes, aliás, amiúde vituperados e caricaturados em papéis clandestinos; a reacção atabalhoada do mesmo regime em face do até agora não desvendado assassinato de Renato Cardoso, Secretário de Estado da Administração Pública, de grande visibilidade social e intelectual; a relativa estagnação e, até, a deterioração de alguns índices macroeconómicos em sinal do esgotamento da estratégia da construção tripolar de uma economia nacional independente, factualmente baseada na reciclagem da ajuda externa e na substituição das importações, etc.).

      É neste contexto que, previstas para ocorrer somente no final da legislatura de cinco anos que, segundo o timing de abertura política delineado na Resolução de 19 de Fevereiro do Conselho Nacional do PAICV e em conformidade com os procedimentos eleitorais previstos na Constituição monopartidária de Setembro de 1980, se devia iniciar somente em Dezembro de 1995, as eleições legislativas e presidenciais foram calendarizadas respectivamente para Janeiro e Fevereiro de 1991.

    É para tornar possível, num tão breve período e curto espaço de tempo, a realização dessas eleições, ferreamente reivindicada pela oposição emergente e formalmente negociada com o antigo partido único, que, dando seguimento às resoluções do Congresso de Julho do PAICV- o último realizado com este partido envergando as vestes formais de força política dirigente do Estado e da sociedade -, se procede à revisão da Constituição de Setembro de 1980.

     Dessa revisão constitucional resultariam, como anteriormente referido, a revogação expressa da substância monopartidária e autoritária do muito famigerado e alvejado artigo quarto da Constituição de Setembro de 1980 e a sua substituição por normas que instituiriam um regime democrático pluripartidário, bem como uma forma de governo semipresidencial. Como também aventado, é na sequência da revisão constitucional de Setembro de 1990 que a ANP adoptaria um novo sistema eleitoral, plenamente democrático porque propiciador de eleições competitivas, transparentes e pluripartidárias, aprovaria as leis sobre as liberdades de constituição de partidos políticos, de associação, de reunião, de manifestação e da greve e revogaria o artigo 50 da lei de imprensa de 1987 que excluía a invocação da prova da verdade dos factos como causa penal de justificação nas ofensas contra o Presidente da República.  

      No contexto das intensas disputas políticas, ideológicas, doutrinárias e jurídico-constitucionais que precederam as eleições de 1991 e que se lhe seguiram, ganharam especial relevo tanto as opções do novo poder saído das eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991 no sentido da privatização da economia, inclusive dos seus sectores estratégicos, maioritariamente transferidos para empresas públicas portuguesas do sector financeiro, da energia e das telecomunicações, como também a emergência de um discurso e de uma prática, considerados como revanchistas, porque de declarada e acerba deslegitimação da luta armada e da luta clandestina e política para a independência conduzida pelo PAIGC nos solos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e de indisfarçada ostracização (senão perseguição) política dos seus protagonistas caboverdianos bem assim dos partidários da nova oposição democrática. A condução de uma prática alegadamente revanchista aliar-se-ia à adopção de um discurso identitário, reciclador e renovador do discurso claridoso sobre a alegada diluição de África na cultura caboverdiana, e, por isso, acusado de ser fortemente defensor da des-africanização político-cultural de Cabo Verde ou, pelo menos, da submersão e da ocultação da co-matriz negra da sua crioulidade.      

     De todo o modo e apesar das deficiências e das derivas anti-democráticas apontadas ao novo poder, o sistema democrático caboverdiano, incorporado na doravante denominada Segunda República e plasmado juridico-formalmente na Constituição de 1992, conheceu significativos avanços, muito por força quer da interiorização da cultura democrática por parte tanto dos actores e agentes político-partidários como também por largas faixas das populações, quer ainda pela experienciação de duas alternâncias democráticas, a segunda das quais ocorrida em 2001 e renovada em 2006.

     É assim que o decorrer e a serenidade dos tempos vieram propiciar a ampla (senão quase-unânime) aceitação popular dos novos símbolos nacionais, em especial da nova bandeira nacional, considerados não mais como instrumentos ideológicos da desafricanização político-cultural de Cabo Verde bem como do revanchismo simbólico e iconográfico proporcionado pelas passadas e retumbantes vitórias eleitorais do MpD contra o PAICV, mas como símbolos da identidade insular bem como da especificidade do percurso histórico e dos recursos materiais e espirituais do povo das ilhas de Cabo Verde.

   Por seu lado, os antigo hino e bandeira nacionais parecem permanecer na memória de largas faixas das populações das ilhas e diásporas como símbolos da emancipação política da nação caboverdiana, oportunamente concretizada por força da sábia opção por “um destino africano, livremente escolhido” e do papel que personalidades como Amílcar Cabral e Abílio Duarte - presumíveis autores respectivamente da letra e da música do antigo hino - desempenharam na conquista dessa emancipação.

    A natureza politicamente fechada do regime de partido único (de qualquer regime de partido único) e a escassa ou nula circulação política - na sociedade em geral e, até, entre as diferentes gerações do mesmo partido único - que ele propiciava, bem como o autoritarismo e a intolerância política e ideológica, consubstanciados no monopartidarismo e na ilegalização da oposição democrática ou de outra qualquer outra extracção partidária de dissidência política parecem ser os principais malefícios apontados ao sistema político vigente nas ilhas no período que decorreu entre a prisão, em Dezembro de 1974, por parte do MFA (Movimento das Forças Armadas) e dos seus aliados do PAIGC, de dirigentes e aderentes dos demais partidos, adversários da independência política das ilhas ou meros opositores do projecto da união orgânica entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau, e a abertura política, decidida pelo Conselho Nacional do PAICV e anunciada, a 19 de Fevereiro de 1990, por Pedro Pires, o homem forte do regime de partido único e, na altura, titular dos altos cargos de Secretário-Geral Adjunto do PAICV e Primeiro-Ministro da República de Cabo Verde.

    A segunda alternância democrática significou, em primeiro lugar, o regresso político de Pedro Pires, que, depois de uma primeira e surpreendente candidatura, considerada temerária até por muitos dos seus próprios correligionários, seria por duas vezes escrutinado em eleições presidenciais muito controvertidas e judicialmente contestadas - a primeira vez, escassamente à tangente e, a segunda vez, por pequena, mas convincente margem de votos recolhidos na diáspora caboverdiana -, mas sempre confirmadas no competente contencioso eleitoral.

      Relembre-se que nas eleições presidenciais disputadas, em 2001 e 2006, Pedro Pires teve sempre Carlos Veiga, o líder histórico do MpP e primeiro-ministro de Cabo Verde, de 1991 a 2000, como adversário principal.

      Sejam ressaltados, neste contexto, alguns aspectos, tais como:

      1) A nula competitividade das eleições presidenciais de 1996, as quais tiveram como candidato único o Presidente em exercício, António Mascarenhas Monteiro, e ameaça principal a abstenção de um eleitorado já desabituado da opção entre o “sim” e o “não” dos tempos passados das listas únicas e monopartidárias.

       Para muitos observadores, a candidatura única de Mascarenhas veio demonstrar de forma irrefutável o elevado grau de hegemonização política da sociedade caboverdiana por parte do MPD, depois de duas sucessivas maiorias qualificadas.

     2) Em contraste com as eleições presidenciais de 1996, o elevado grau de competição das eleições de 2001.

     Cinco candidatos, designadamente Pedro Pires, Carlos Veiga, Jorge Carlos Fonseca, David Hopffer Almada e Onésimo Silveira (desistente logo na primeira volta) participaram nestas últimas eleições. 

     O elevado grau de competitividade das eleições presidenciais reflectiu, outrossim, igual grau de competitividade das antecedentes eleições legislativas, nas quais participaram o MpD, o PAICV, o PRD bem como a coligação política formada pelo PCD, pelo PTS e pela UCID.

      Não obstante o elevado grau de competitividade dessas eleições, prevaleceu o voto útil induzido pela flagrante bipolarização política entre o MPD e o PAICV e entre os candidatos presidenciais apoiados por essas duas forças políticas maiores no espectro político caboverdiano.

    Como referido, a bipolarização política entre o PAICV e o MpD tem marcado a vida política caboverdiana, desde a abertura e a democratização políticas de 1990/1991. Expressões típicas dessa bipolarização política foram as eleições presidenciais de 1991 bem como as de 2001 e 2006, acima referenciadas.

      Relembre-se que nas eleições presidenciais de 1991, muito marcantes da primeira alternância democrática, o candidato apoiado pelo PAICV, o então Presidente da República de Cabo Verde por mais de quinze anos e figura marcante (e carismática) do movimento africano de libertação nacional, Aristides Pereira, foi derrotado por muito expressiva margem pelo candidato apoiado pelo MpD, o antigo e prestigiado Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde e ex-dissidente do PAIGC, António Mascarenhas Monteiro.  

     Para além de ter provocado a ressurreição política e eleitoral de Pedro Pires, líder do PAICV durante o período final da transição democrática e parte da travessia do deserto a que esse partido foi sujeito de Janeiro de 1991 a Janeiro de 2001, a segunda alternância democrática de 2001- renovada, como referido, em Janeiro de 2006 - tornou-se sumamente relevante por, pelo menos, duas ordens fundamentais de razões: 

   i) Marcou a ascensão à governação do país de uma nova e jovem geração política do PAICV, liderada por José Maria Neves, último Secretário-Geral da JAAC-CV (Juventude Africana Amílcar Cabral - Cabo Verde), a antiga organização juvenil do PAICV, autodissolvida depois da abertura da abertura política de 1990 e muito temporariamente transmudada em UJSD (União da Juventude Social-Democrata). É essa geração que, sentindo-se parcialmente obstruída nas suas ambições político-partidárias, quer devido à deficiente e insuficiente circulação política inter-geracional durante o período de partido único quer em razão da potencial ameaça que representaria a emergência de uma oposição anti-paicvista num quadro político democrático aberto a todos os possíveis postulantes, foi inicialmente avessa ou, pelo menos, reticente em relação à abertura politica de Fevereiro de 1990, então considerada prematura e/ou descontrolada porque ainda não interiorizada pelas bases do PAICV, como, por outros motivos, reclamava Abílio Duarte, tornado dissidente depois da expressiva derrota eleitoral do PAICV em 1991. É essa mesma geração que, depois calejada, enquanto oposição parlamentar, numa longa, desgastante e muito produtiva travessia de deserto, a que não faltaram graves acusações por parte do partido no poder - como, por exemplo, a alegada participação na profanação de ícones religiosos católicos - interioriza e dissemina os valores do socialismo democrático propagados pela Internacional Socialista, questiona a liderança das antigas gerações do PAICV, enceta a reforma e a superação da imagem passadista e autoritária colada a um partido ainda muito marcado pelo carisma patriótico, paternalista e austero de Pedro Pires, vence as eleições autárquicas de 2000 e empreende o seu regresso ao poder com um discurso que alia o nacionalismo cabraliano e a retórica anti-corrupção com os valores de um Estado social e democrático de Direito, aliás, devidamente plasmados na Constituição de 1992 e também impregnados nos ante-projectos de Constituição e de revisão constitucional que serviram de base de argumentação ao grupo parlamentar do PAICV, durante os debates constitucionais de 1992 e 1999.

ii) Assinalou a crescente consolidação do sistema democrático caboverdiano e das suas

instituições.  

   Constituem indícios seguros dessa crescente consolidação:

a) Uma alargada consensualização social em torno tanto da irreversibilidade das mudanças

políticas, económico-sociais e, em parte, simbólicas encetadas a partir de Fevereiro de 1990

e aprofundadas nos anos noventa do século XX e nos primeiros anos da primeira década do

presente século, como se verificou nos casos das mudanças dos símbolos nacionais, dos

paradigmas político-ideológicos e dos modelos de sociedade em face da premência dos

grandes desafios de desenvolvimento colocados à nação caboverdiana.

  A acima referida consensualização alicerça-se, em grande medida, numa prática política

que tenta erradicar da sociedade caboverdiana a retórica persecutória e a mentalidade de

diabolização da oposição, características dos períodos anteriores, incluindo os

pluripartidários.

b) A disseminação de uma cultura democrática, doravante incorporada na sua substância

pela sociedade civil e pelos actores políticos e partidários.

 c) O aperfeiçoamento dos procedimentos normativos e das instituições de fiscalização da

genuína expressão eleitoral da vontade popular.

    Por outro lado, as políticas de reconciliação com as elites claridosas e neo-claridosas, iniciadas ainda durante o período de partido único com o Simpósio Internacional sobre a Literatura e a Cultura Cabo-Verdianas (mais conhecido por Simpósio Claridade), de Novembro de 1986, vêm sendo prosseguidas e alargadas ao âmbito político e económico dos acontecimentos do pós-25 de Abril de 1974 e do pós-13 de Janeiro de 1991, eventualmente ressentidos como dolorosos por uma parte da sociedade caboverdiana, que se sente historicamente vitimizada.

   É, assim, que, no ano de 2006, após acesos e ferinos debates parlamentares e mediáticos entre os antigos protagonistas dos eventos acima referenciados, a maioria então veiculada ao radicalismo político e justiceiro de algumas correntes esquerdistas do PAIGC-CV, foram devidamente aprovadas pela Assembleia Nacional as chamadas leis de reconciliação nacional.

    As mesmas leis tiveram como intuito expresso a reintegração nas respectivas carreiras técnicas e administrativas dos saneados do pós-25 de Abril de 1974, do pós-5 de Julho de 1975 e do pós-13 de Janeiro de 1991 bem como a reposição dos direitos de propriedade (ou das respectivas indemnizações na impossibilidade da reposição dos referidos direitos) das alegadas vítimas dos confiscos e das nacionalizações dos tempos revolucionários de outrora.  

   Com a prossecução dessas políticas pretende(ra)m as autoridades caboverdianas ter em devida conta:

i)O contributo diferenciado e específico dos diversos extractos sociais e das várias gerações

das elites das ilhas para a emancipação social, cultural e política do povo caboverdiano.

Nesta óptica e num contexto de intensificação da investigação académica e jornalística da

sua obra, os mesmos extractos sociais e elites têm sido objecto de frequentes homenagens

públicas.

ii) A demarcação política em relação a certos excessos e abusos praticados com flagrante

violação dos direitos elementares das suas vítimas, aliás consagrados na Declaração

Universal dos Direitos do Homem (por exemplo, os direitos ao contraditório, à defesa e a

um processo justo e equitativo), durante os diferentes momentos e episódios das mudanças

político-institucionais em Cabo Verde.

iii) A natureza diaspórica da nação caboverdiana e a necessidade de uma recentragem identitária que tenha como núcleo essencial a crioulidade e as suas potencialidades matriciais e actuais de abertura ao outro e ao mundo.

iii) A premência de ancoragens e parcerias estratégicas que, mantendo a identidade político-cultural e a soberania política do povo das ilhas, optimize a  meso-atlanticidade macaronésica e a peri-africanidade da localização geo-económica e geo-estratégica do país bem como a peri-ocidentalidade, a negro-latinidade e a afro-ocidentalidade da cultura crioula do seu povo.    

    Desde modo e desde a sua independência, a 5 de Julho de 1975, conheceram Cabo Verde e o seu povo amplas, inesperadas, quiçá, inimagináveis, transformações na percepção do seu destino colectivo, no seu modo de vida bem como nas formas e vias da sua sustentação material e espiritual.

   Mudanças que, no ano de 2006, alcandoraram as ilhas a anunciado país de rendimento médio, o qual, permanecendo embora muito cioso da sua independência e da sua identidade crioula afro-atlântica, não descura esforços na permanente busca de novas dinâmicas, parcerias estratégicas e ancoragens externas, susceptíveis de alicerçar o desenvolvimento cada vez mais sustentável das ilhas.

    Mudanças que também acarretaram a transformação de Cabo Verde em país cada vez mais procurado por turistas, investidores privados de vários quadrantes do mundo ocidental, cooperantes, comerciantes chineses e imigrantes oriundos essencialmente da África Ocidental, mas também em plataforma e placa giratória de tráficos vários (de imigrantes clandestinos, de estupefacientes, etc), engendradores de preocupantes sinais da acrescida e globalizada desfaçatez da criminalidade organizada.

     Deste modo, viu Cabo Verde revalorizada a sua situação geo-estratégica no período pós-Guerra Fria.

     Essa revalorização geo-estratégica tem sido devidamente potenciada pelas autoridades caboverdianas com vista à sustentação das suas pretensões na demanda de um lugar útil no mundo globalizado.

     É essa revalorização que também contribuiu para o desencadeamento do processo de institucionalização de uma parceria especial entre a União Europeia e Cabo Verde, a qual deverá substituir os mecanismos de parceria previstos nos Acordos de Cotounou entre a União Europeia e os países ACP (África, Caraíbas, Pacífico) e complementar as vantagens e compensar as desvantagens advenientes da pertença de Cabo Verde a organizações africanas de integração continental, regional e subregional. 

      A mesma revalorização ficou, aliás, claramente expressa nos exercícios militares da NATO, sintomaticamente baptizados como o nome “Steadfast Jaguar” (“O Salto do Jaguar”) e pela primeira vez (em 2006) levados a cabo nesse país atlântico, por muito tempo seguidor de uma política internacional de não-alinhamento com os blocos político-militares e situado na encruzilhada de rotas várias e às portas de uma África Ocidental, cada vez mais interessante enquanto fonte alternativa de recursos energéticos, mas também cada vez mais problemática em razão dos conflitos armados internos, da emergência de estados falhados, dos tráficos ilegais, das dificuldades na efectiva implantação de Estados Democráticos de Direito, credíveis porque superadores das actuais “democracias eleitorais”, virtuais, neo-autoritárias e amplamente infestadas por fraudes e por outros desvirtuamentos e deformações da genuinidade e da soberania da vontade popular.   

    É neste contexto que se enquadram os actuais esforços do Estado caboverdiano na sua busca de um estatuto especial tanto junto da União Europeia como junto da CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental), a organização de integração regional de que Cabo Verde é membro de pleno direito. 

 

 

Lisboa, Dezembro de 2006/ Outubro de 2007  

 

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  • 1. O presente ensaio foi publicado pela primeira, há dois ou três anos, no ora suspenso (ou extinto?) site/revista electrónica TERTÚLIACRIOULA (www.tertúliacrioula.com)

por José Luís Hopffer Almada
A ler | 17 Fevereiro 2012 | Cabo Verde, crioulidade, ensaio, história contemporânea, Independência, nação, PAIGC, política