O Projecto Crioulo - Cabo Verde, colonialismo e crioulidade (Parte II e III)
2. Crioulização, crioulidade, crioulismo: perspectivas comparadas.
A sociedade de plantação
Línguas crioulas, populações crioulas e as figuras do crioulo e das manifestações culturais crioulizadas, escondem um pensamento racializado e ancorado em modelos de raízes e origens. Nas discussões quer sobre especificidades culturais quer sobre as suas hibridizações, dá-se uma atenção especial às populações crioulófonas e a própria língua surge como o precipitado cultural por excelência da crioulização.
O fascínio da linguística com as línguas crioulas desdobra-se num fascínio antropológico com as populações que as transportam, à semelhança da importância maior dos modelos linguísticos nos modelos antropológicos. Isto só pode ser entendido se se perceber também a importância do modelo etnolinguístico na formação das identidades nacionais. As sociedades crioulas criaram um espaço conceptual intersticial entre os estados-nação europeus com unidade etnolinguística (construída) e as entidades étnicas “tribais” do mundo colonizado e exótico. Dois universos bem distintos são o alvo da atenção crioulística: os contextos concretos da sua formação (costas, portos, entrepostos e, sobretudo, a Afro-América) e os contextos contemporâneos da sua metaforização pós-moderna e pós-colonial (diásporas, hibridismos, globalizações etc.).
Segundo Mufwene (2002), os Pidgins e os Crioulos são variedades linguísticas novas que se desenvolveram a partir dos contactos entre variedades não padronizadas de uma língua europeia e várias línguas não-europeias em torno dos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico, entre os séculos XVII e XIX. Os pidgins surgiram tipicamente em colónias de comércio, eram reduzidos na estrutura e especializados nas funções, servindo inicialmente como línguas francas não nativas. Alguns pidgins expandiram-se para se tornarem vernáculos regulares, especialmente em cidades. Já os crioulos, enquanto vernáculos, desenvolveram-se em colónias de assentamento cuja principal actividade consistia em plantações de açúcar ou arroz empregando trabalho escravo não europeu em massa.
Quanto ao crioulo como identidade social e já não estritamente linguística, na sua origem significava um europeu, normalmente espanhol, nascido no Novo Mundo. Noutros contextos, a expressão é, por exemplo, ainda corrente na Reunião, onde todos os nascidos na ilha são considerados crioulos por oposição aos nascidos em França. No México de hoje, crioulo ganhou conotações de “originário” da colonização espanhola, por oposição à massa mestiça. Na Trinidad, o termo creole é por vezes usado para designar todos os trinidadianos, excepto os de origem asiática. No Suriname um crioulo é alguém de origem Africana, ao passo que na Guiana Francesa é uma pessoa que adoptou um modo de vida europeu. No Brasil o termo é usado pejorativamente para significar “negro”. Eriksen (1999) diz que apesar das diferenças existem semelhanças importantes entre estas conceptualizações: os crioulos são «desenraizados» (uma qualificação problemática que o autor não elucida), pertencem ao Novo Mundo, são o produto de alguma forma de mistura e contrastam com o que é representado como antigo, profundo e enraizado.
Mufwene chama a atenção para o facto de parecer haver um apelo – por parte de antropólogos? – no sentido de ver nos crioulos a metáfora base para os processos contemporâneos de interculturalidade. Referindo Harris e Rampton (2002), diz que isto não será mais do que uma variação de uma velha tendência para ver na língua a metáfora base da cultura, o que é obviamente perigoso: a metáfora maior é errónea (a cultura não é a língua) e a metáfora menor também, pois pode obscurecer o particularismo histórico e os processos de economia política que levaram à formação de crioulos: «…it would be a great shame if anyone thought that creole language studies represented the sum total of what (socio)-linguistics has to offer to the understanding of transnational processes. We are not obviously speaking here as disgruntled disciplinary purists, and if in the past, the linguistic modeling of creoles has helped anthropologists like Drummond to escape the hold of static synchronic structuralism, we would welcome this valuable interdisciplinary process, in the same way that we appreciate the inspiration that “creolisation” has provided in Hannerz’s analyses of cultural complexity…» (Harris e Rampton, 2002: 22)
Para Eriksen (1999), a admonição de Gregory Bateson tem particular importância:
«… if one uses creative analogies, one ought to go back to the field where the analogy was taken from to investigate its internal logic, or as he puts it: “the moment I begin to work out the analogy, I am brought up against the rigid formulations which have been devised in the field from which I borrow the analogy.”» (Bateson, 1972: 75 in Eriksen, 1999).
Temas diferentes na antropologia correspondem a diferentes contextos que os geraram.
A crioulização tem claramente a sua base no estudo do complexo Afro-Americano e nas sociedades de plantação das Caraíbas, talvez apenas com ramificação para o Brasil como instância comparativa. Na sua review da antropologia da Afro-América Latina e Caraíbas, Yelvington (2001) diz que a actual preocupação antropológica com os processos de globalização, dispersão, migração e transnacionalidade, com o colonialismo, o hibridismo, etc., elide muitas vezes a produção fundacional que remete para os estudos da diáspora africana nas Américas – com autores como W. E. B. DuBois, St. Clair Drake, ou Jean Price-Mars entre muitos outros (Yelvington, 2001: 227-8).
The Myth of the Negro Past, de Herskovits (1941) pode ser visto como o primeiro caso de legitimação do estudo das culturas negras em antropologia. Partindo da distinção Boasiana entre “raça” e cultura, o seu propósito era destronar as perspectivas racistas sobre os negros americanos, que retratavam estes como completamente desenraizados e alienados. Por isso Herskovits vai em busca de “africanismos” nas formas culturais e nas instituições, de preferência identificando a origem étnica específica de cada uma em África. A sua equipa promoveu estudos comparados no Suriname, Haiti, Daomé, Trinidad e Brasil. Yelvington aponta alguns conceitos surgidos desse esforço, tais como “tenacidade cultural”, “retenções”, “reinterpretação” e “sincretismo”, todos pertencentes à rubrica designada como “aculturação”. Estes interesses de pesquisa eram coevos dos de intelectuais engajados nos projectos nacionais respectivos, como Arthur Ramos no Brasil, Fernando Ortiz em Cuba (ambos seguidores do brasileiro Nina Rodrigues), Price-Mars no Haiti e Gonzalo Aguirre Beltrán no México. O projecto de Herskovits foi feito em conflito com uma visão oposta, a do sociólogo Frazier, da escola de Chicago, para quem os negros teriam sido completamente destituídos de herança cultural. Para lá deste debate, Yelvington diz que os estudiosos dividem-se hoje entre neo-herskovitianos e “creacionistas” ou “teóricos da crioulização”.
O projecto tinha já a sua base no Memorandum for the study of acculturation de 1936, redigido por Redfield, Linton e Herskovits, definindo “aculturação” como «incluindo todos os fenómenos que resultam do contacto em primeira-mão entre grupos ou indivíduos com culturas diferentes», distinguindo-se assim de culture change, de que não seria mais do que um aspecto, e de “assimilação”, que seria por vezes uma das fases da aculturação, e ainda de “difusão”, a qual, embora ocorra em todas os casos de aculturação, seria apenas um dos seus aspectos. Os resultados possíveis da aculturação seriam a “aceitação”, a “adaptação” ou a “reacção”.
A necessidade de juntar perspectivas sociais e perspectivas culturais ficou exemplificada no influente trabalho de Mintz e Price (1992 [1976]). No respeitante à questão de sobrevivências culturais versus criação cultural, argumentaram que «Uma herança cultural africana, largamente partilhada pelas pessoas importadas para uma nova colónia, deverá ser definida em termos menos concretos [i.e., áreas culturais específicas em África], focando mais os valores e menos as formas socioculturais, e mesmo tentando identificar princípios “gramaticais” inconscientes que possam subjazer e moldar as respostas comportamentais» (1992: 9-10, tradução livre). Referem-se, segundo Yelvington, a «pressupostos básicos acerca das relações sociais» e «a pressupostos básicos e expectativas sobre o modo como o mundo funciona fenomenologicamente» (Mintz e Price, 1992: 10 in Yelvington, 2001, tradução livre).
Para Mintz e Price, as origens específicas das populações afro-americanas não eram relevantes, pois os escravos chegavam em massa, mais como “multidões” do que como grupos. Aquilo que partilhavam à partida era a sua escravatura. Tudo o resto tinha que ser criado por eles. Na outra ponta da escala temporal, a influência do trabalho de Mintz e Price leva Yelvington a constatar o seguinte sobre a questão da crioulização: «The Mintz and Price creolization model … has inspired linguists and linguistically oriented anthropologists … into investigations of creoles (…) Mintz (1971) warned as early as a 1968 conference on pidgins and creoles (…) that the characteristic shape of a language cannot be seen outside of its sociological context and the processes of historical change. Still, investigations are often couched in terms of locating “Africanisms” (Mufwene, 1993). The continuity versus creativity debate is alive here too. This body of work has also imbibed all of the controversies associated with the study of pidgins and creoles generally, e.g. differentiating between pidgins and creoles themselves, monogenesis versus polygenesis debates, (African) substrata versus (European) superstrata versus universalist hypotheses of creole genesis (the latter of which includes Bickerton’s controversial “bioprogram hypothesis”, and the applicability of pidginizationcreolization- decreolization creole continuum models), and the New or the Old World as the site of creole genesis.» (Yelvington, 2001: 235-6).
Para Mintz (1971), o pano de fundo sócio-histórico da crioulização implica a consideração de várias condições: a proporção relativa de africanos, europeus e outros grupos; os códigos de interacção social que governavam os estatutos relativos e as relações de diferentes grupos em diferentes sociedades; e o tipo específico de comunidades em que esses grupos se diferenciaram ou misturaram, com distinções entre plantação ou não, rural ou urbano, e diferentes categorias de escravos (prediais, domésticos e outros) e entre populações livres e não-livres na mesma colónia (Mintz, 1971: 482). Na maior parte dos casos o processo de diferenciação no sistema social levou ao surgimento de uma categoria intermédia entre a minoria dominante e as massas trabalhadoras. Este estrato era, entre outras coisas, geneticamente intermédio, nascido de pais europeus e mães escravas. Outra diferenciação baseia-se no falhanço do sistema de plantação em encorajar o crescimento de economias insulares auto-suficientes. Mintz aponta também a importância dos diferentes códigos de relações sociais, incluindo as diferenças entre sistemas coloniais – a participação diferencial de escravos e livres em certas instituições como a igreja; o encorajamento ou não do surgimento de um terceiro grupo; e a ideologia do grupo dominante quanto à sua participação nos assuntos da ilha ou da metrópole (Mintz, 1971: 489).
Escravatura ou liberdade, homogeneidade cultural europeia e diversidade africana, desequilíbrios de género, criação de grupos intermediários são, pois, determinantes. Para Mintz e Price, o conceito de “crioulização” surgiu como um útil substituto de “aculturação” e “assimilação”, pois descreve uma expressão sincrética que leva ao surgimento de novas formas culturais, tal como no passado aconteceu na Europa. Apurando o modelo, e trabalhando a partir da Jamaica, Patterson (1975) distinguiria entre “Crioulização segmentar” e “crioulização sintética”. A primeira é um processo em que cada grupo, no novo local, cria a sua versão peculiar de uma cultura local. Dois tipos surgiram nas Caraíbas: uma variedade local da cultura metropolitana da classe dominante, e o desenvolvimento de uma cultura camponesa, feita dos restos de cultura africana e das respostas às exigências da agricultura de pequena escala tropical camponesa (este tipo seria o Afro-West Indian). A variante sintética seria uma combinação dos recursos culturais disponíveis que, no início, mais não seria do que uma espécie de cultura Euro-West Indian Creole para pobres. Com o crescimento das classes médias e a tendência para pensar em termos nacionais em vez da simples imitação dos europeus, a cultura assim desenvolvida tornou-se mais «self-consciously synthetic» – e depois oficial, quando essas classes chegam ao poder (Patterson, 1975:318). Patterson diz que o modelo sintético usa a raiz europeia para as partes instrumentais e a africana para as partes expressivas.
A questão do crioulismo no universo Afro-americano e afro-caribenho de expressão inglesa está directamente ligada hoje com a questão racial norte-americana e com o pan-africanismo experimentado nas últimas décadas. O melhor panorama das suas contradições e das possíveis alternativas teóricas e práticas é, a meu ver, apresentado por Paul Gilroy (bem como, no plano analítico, por Peter Wade, mas em relação a contextos hispanófonos). A outra instância de comparação prende-se não só com um colonialismo diferente do inglês, mas sobretudo com a produção letrada dos intelectuais locais. Esta produção viria a ter influência na área dos estudos póscoloniais, assim como tivera no pan-africanismo.
Os créolistes francófonos
O problema com as sociedades crioulas é que foram inventadas na base de uma experiência de destruição e apagamento. Para Vergès (2001) que se concentra nas ilhas crioulas do colonialismo francês – como, por exemplo, a ilha da Reunião – escravos de Madagáscar, África, Malásia e Índia foram amalgamados numa situação em que não existia nenhum particularismo cultural sobre o qual construir uma estratégia colectiva de resistência e construção identitária (2001). A tradução política da diferença crioula privilegiou localmente o reconhecimento do crioulo enquanto língua. Confrontados com a dificuldade em traduzir a diferença crioula numa estratégia colectiva local e nacional, muitos crioulos viraram-se para o que a autora denomina de «cosmopolitismo».
Vergès analisa duas instâncias: o cosmopolitismo universalista da primeira metade do século XX e o internacionalismo revolucionário dos movimentos de descolonização.
A abordagem de Vergès foca as elites intermediárias crioulas que navegaram pelo império francês e por Paris e que se confrontaram com a inexistência de identidades puras e autênticas e com a ausência de origens, no decurso dos processos de escravatura e colonização. Muitos dos crioulos coloniais que estudaram em Paris confrontaram-se com discussões sobre mestiçagem, assimilação, identidade negra, Négritude, ou racismo. Foi neste contexto desterritorializado mas politicamente marcado pelo colonialismo que os crioulos cosmopolitas construíram a sua identidade (2001: 22).
Césaire publicava em 1939 os Cahiers d’un retour au pays natal. Em 1935, na Martinica, Gratiant falava pela primeira vez de uma “Civilização crioula”, tentando definir uma identidade mulata. Reagiam ambos contra as definições anti-mestiçagem. E queriam ir para lá de uma escolha impossível: entre a cultura do colonizador e as origens e raízes que não existiam. Esta ênfase na mestiçagem, no hibridismo e na crioulização marcou os crioulos francófonos como diferentes dos anglófonos. O problema com que os primeiros se confrontaram no processo das descolonizações foi o dos limites do modelo crioulizante na construção de políticas de identidade resistentes.
Esse problema foi sentido sobretudo por Fanon, crioulo da Martinica que, no contexto da guerra colonial argelina, começou a ver a cultura crioula como mera mímica da cultura francesa. Conhecedor do inimigo porque o tentara imitar por longo tempo, opta pela comunidade transnacional dos anticolonialista.
No período pós-colonial, o cosmopolitismo crioulo surge com outras nuances, após a desilusão do pan-africanismo e dos processos independentistas na sua incapacidade em criarem sociedades autónomas e desligadas da lógica (neo)colonial.
Édouard Glissant surge como o principal teórico no universo francófono, como o foi Brathwaite no universo anglófono. Glissant refere o crioulo como um modo de construção cultural absolutamente original (1997: 36), baseado no carácter imprevisível dos resultados do contacto num território, ao contrário da mestiçagem, cujo resultado seria previsível. Com base nas teorias pós-estruturalistas, Glissant diz que a crioulização não é o mesmo que o multiculturalismo ou uma expressão da fragmentação identitária pós-moderna. Ela produz identidades que não têm raízes mas que crescem, antes, como rizomas e que portanto não buscam um território onde se exprimir, buscando um projecto em que as identidades se baseiem na relação e não na filiação, no sangue, na ancestralidade ou na terra (Vergès, 2001: 179).
São flagrantes as semelhanças com Bhabha, Hall ou Gilroy e com as teorizações pós estruturalistas e pós-coloniais em geral. Mas não esqueçamos que a teoria de Glissant é uma teoria da literatura e da expressão, não da sociedade. Glissant é o pai espiritual do movimento de escritores chamado Créolité, surgido nos anos oitenta, com base no manifesto redigido por Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphael Confiant, com o propósito de prosseguir a busca de uma identidade apanhada entre, por um lado, a Négritude e, por outro, a Antillanité. Rejeita explicitamente a pureza e a unicidade, propondo a crioulização como o processo de sedimentação de todas as culturas que confluíram nas Caraíbas. A influência de Glissant faz-se já sentir no universo afroamericano onde a negritude parece perder terreno para o “Pensamento Caribenho”, ocorrendo mesmo um confronto entre Afrocentrismo e Crioulização como projectos político-culturais e esquemas interpretativos da experiência afro-americana. A crioulização não é simples mestiçagem pois algo de novo é acrescentado aos componentes originários.
Chamoiseau, porém, tem uma atitude mais politizada, pois encara a Martinica como colónia da França e vê a língua francesa como a corporização da dominação colonial, propondo em alternativa o uso exclusivo do crioulo. Estas atitudes têm como fantasma a figura do também martinicano Aimé Césaire, o poeta e político associado ao movimento literário da Négritude, um pan-africanismo que pretendia restabelecer os laços com o passado africano da maioria da população, propondo o reconhecimento dos martinicanos como africanos transplantados. Procedendo a uma crítica contextualizada dos Créolistes, Richard e Sally Price (1997) dizem que à época do surgimento dos Créolistes, já há duas décadas que perspectivas semelhantes vinham sendo discutidas nas Caraíbas anglófonas. E mesmo no universo de referências francófonas, já Bastide (1978) havia enfatizado a ideia de interpenetração de civilizações para explicar o Afro- Brasil. Os Creólistes, criticando simultaneamente o africanismo da Négritude e o modelo de adaptação ao novo mundo da Antillanité de Glissant, procuraram, segundo a crítica dos Prices, construir uma nova identidade, esquecendo assim a ideia de Glissant de constante transformação e propugnando uma visão monolítica das culturas de origem dos imigrantes. A própria plantação é retratada como gentil, por comparação com a plantação inglesa, espanhola ou holandesa (num processo excepcionalista em tudo semelhante a perspectivas lusotropicalistas sobre o colonialismo português…) e não conferem o estatuto crioulo aos imigrantes mais recentes, oriundos da Ásia. «In claiming that “as creoles” they are “closer, anthropologically speaking”, to the people of the Seychelles, Mauritius, or Reunion than, for example, to Puerto Ricans or Cubans (Bernabé, Chamoiseau, Confiant, 1993 [1989]: 32-33), they neglect to recognize the fundamentally Creole and Caribbean nature of Puerto Rican and Cuban cultures. Moreover, their claim to “anthropological closeness” masks what might be more directly attributed to the workings of empire». (Price e Price, 1997: 11).
3. Regressando a Cabo Verde
Elites letradas e invenção identitária em contexto colonial
Para Gabriel Fernandes (2002), a elite letrada local procura assumir-se como mediadora das relações entre os naturais da terra e o poder colonial. Isto fez-se, ao longo da história de Cabo Verde, através de um deslocamento da marcação de fronteira interior entre “filhos da terra” desapossados e “brancos da terra” proprietários, para o exterior, contrapondo “brancos da terra” e “brancos metropolitanos”, “cabo-verdianos” (civilizados) e “africanos” (indígenas), colonizador e colonizado. Três momentos cruciais podem ser identificados nesse processo. O primeiro corresponde ao período entre a conferência de Berlim (1884-85) e o regime da Primeira República (1910-26). Assume então importância na criação de elites letradas o seminário de S. Nicolau, fundado em 1869, permitindo o aumento do engajamento de cabo-verdianos na administração da colónia da Guiné. No plano intelectual, assumem destaque os chamados Nativistas, cuja cidadania portuguesa não os impede de terem outros focos de lealdade, como a África, por um lado, ou a mátria de Cabo Verde, ou mesmo de cada uma das ilhas de origem.
O segundo período é marcado pela ruptura do Estado Novo (1930-33), prolongando-se até 1960 sob a influência da Claridade. Nele dá-se o acentuar da marcação de diferenças entre Cabo Verde e a África, e uma crescente participação dos locais na “civilização dos nativos” de África. Os “Claridosos” centram-se na consubstanciação da mestiçagem, como expressão da lusitanidade cultural do caboverdiano, e de Cabo Verde como caso de regionalismo português (Fernandes, 2002:16).
No terceiro período, sobreposto ao segundo a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, assiste-se a uma intervenção colonial institucional mais forte, com a criação do Boletim de Cabo Verde, a solicitação da intervenção da elite letrada local, e o envio de especialistas, como o referido Almerindo Lessa. Segundo Fernandes, o poder colonial havia deixado aos intelectuais locais o ónus de provar serem merecedores de tratamento diferenciado, para, agora, passar a apropriar-se das suas elaborações para que eles se distanciassem de tendências independentistas. A bifurcação torna-se, então, marcada: por um lado a Claridade, por outro os jovens da Casa dos Estudantes do Império, a chamada “Geração de 50”, legatários da Négritude, proponentes da “reafricanização dos espíritos” e futuros membros do PAIGC. Mestiçagem e crioulização – bem como o precipitado linguístico do crioulo – têm uma história de relações sociais, estrutura social e economia política que Fernandes resume com competência. Desde logo, o perfil dos primeiros povoadores: homens brancos, solteiros ou casados, engajados nos negócios com a costa da Guiné, obrigados a produzir nas ilhas as mercadorias para o comércio, junto com escravos cada vez mais destinados para a agropecuária e não para o comércio da escravatura. Esta situação, marcadamente diferente das economias de plantação caribenhas, estabelece cedo uma rivalidade entre a coroa portuguesa e os colonos, ao mesmo tempo que propicia a ascensão de forros e de não brancos como “línguas” (intérpretes) e eclesiásticos. É assim que Fernandes afirma que o peso da etnia foi minimizando com esse aumento de forros e com a debilitação moral e económica do senhor branco devida à pauperização agrícola e aos ataques de corsários. O resultado terá sido um duplo movimento de crioulização e branqueamento, no decurso do qual a “raça” se des-substancializa, convertendo-se em indicador de status e poder (Fernandes, 2002:34).
Na ausência de uma economia de plantação, os escravos eram ladinizados, quer para serem destinados à exportação, quer para os serviços domésticos. Dá-se o duplo assenhoramento, do trabalho escravo e da própria escrava, e um crescente reconhecimento dos filhos bastardos (2002: 36). A categoria dos “filhos da terra” passa a definir os filhos cuja legitimidade e reconhecimento sociais se encontravam atrelados ao seu pretenso vínculo orgânico à terra-mãe (2002: 42), num processo de libertação dacondição de negros, apropriando bens materiais ou simbólicos do pai, no que Fernandesqualifica de «branqueamento socioeconómico». A reinterpretação da “raça” favorece acriação de uma nova hegemonia, a dos “brancos da terra” (2002: 44). Tanto a educação,quanto a emigração ou a acumulação originária levam à ascensão dos filhos da terra aquando do regresso dos brancos ao reino que, todavia, levam consigo o grosso da riqueza. Fernandes parece querer reforçar a importância do capital simbólico como principal capital desta nova categoria social.
É nesse sentido que é pertinente a comparação com a América Latina. Ao contrário dela, em Cabo Verde os mestiços não ocuparam os espaços intersticiais, poisessa mediação coube aos “brancos da terra” e, mais tarde, às elites letradas locais (2002: 47). Os muitos mestiços não surgiram socialmente jogando o papel de superadores dos extremos, mas sim como actores em permanente luta pela eliminação dos seus defeitos de nascença, isto é, numa busca de branqueamento e não de crioulização, promovendo activamente a cultura portuguesa e não a mestiça ou negra (2002: 48-9). Em suma, Fernandes defende a pouca consistência política e fraca dimensão heurística da mestiçagem em Cabo Verde (2002: 51): «Foi querendo tornar-se branco que o filho da terra se auto-descobriu mestiço» (2002:51): «Essa mudança de mecanismos legitimatórios marca a descontinuidade procedimental e política dos filhos bastardos para os filhos da terra. De facto, enquanto os primeiros, ancorados nos laços de consanguinidade, requeriam reconhecimento legal do seu vínculo com o pai branco, os segundos, ancorados nos laços da cultura, vão exigir reconhecimento do seu vínculo com a nação.
Porém, a despeito dessa sua ruptura estratégica e de propósitos, ambos chegaram a eleger, em algum momento, uma espécie de malformação congénita a ser extirpada, e que tipificaria a contraparte negra subestimada: a herança materna, para os filhos bastardos, e a herança cultural africana, para pelo menos parte dos intelectuais filhos da terra». (Fernandes, 2002: 62) Com a penetração colonial no século XIX, e na sequência do fim dos morgadios e capelas, começa a presumir-se a partilha de uma cultura comum, estruturada sobretudo pela educação. «O pai/senhor branco cede lugar ao professor/patrão» (Fernandes, 2002:67). São esses justamente os tipos sociais das elites locais com quem Lessa viria a dialogar.
Gabriel Mariano (1991) foi central na exploração da hipótese da aristocratização social do mestiço, alegando que no arquipélago se tranferiram para este as funções que no Brasil se reservavam aos brancos (Fernandes, 2002:87). A sua leitura do mestiço cabo-verdiano acabou criando o mestiço cabo-verdiano, que, para Fernandes, não passou de mestiço português. Para os Nativistas, todavia, a identidade mestiça não era central, nem as diferenças étnicas entre os membros da sociedade crioula. O seu quadro taxionómico diferenciava filhos da terra de agentes metropolitanos, civilização lusitana e civilização africana, cultura escolar e cultura popular (2002:89), ao passo que os Claridosos terão construído a mestiçagem quando pensavam estar a explicá-la (2002: 90). Indagando se se trataria de uma manifestação de um complexo de colonizado, Fernandes define uma dupla estratégia: a primeira, de diferenciação horizontal, entre indivíduos e grupos homogeneizados pela sua condição sociopolítica, opondo assimilados e badius11, no plano interno, e cabo-verdianos e africanos, no universo colonial português; a segunda, de «desdiferenciação vertical», correspondendo a umatentativa de busca de pontos comuns entre grupos política e socialmente diferenciados, designadamente entre a elite social do arquipélago e os portugueses metropolitanos. Fernandes não deixa de notar que se tratou mesmo de uma modalidade irónica e subversiva de identificação (2002: 98):«Cremos que a chave para a compreensão dessa recusa do modelo regionalista e mestiço claridoso deve buscar-se no carácter intrinsecamente hierárquico do esquema freiriano.
Como vimos a proposta claridosa incluía uma sub-reptícia táctica de questionamento dos padrões hierarquizantes». (Fernandes, 2002: 104) À época da realização da mesa redonda com cuja descrição começa o presente texto já a Geração de 50 havia começado a abalar as representações crescentemente hegemónicas criadas pelos Claridosos. Vários foram os intelectuais portugueses aportados a Cabo Verde para auxiliarem a elite local a neutralizar as sequelas deixadas pelos detractores do modelo identitário. Fernandes refere que entre eles se encontrava Almerindo Lessa, bem como Manuel Ferreira (1967), crítico de Chevalier e das interpretações de Freire sobre Cabo Verde, propugnador das virtudes do papel do homem mestiço (2002: 132-3). Isto aconteceu numa época em que estava consolidada a posição dos cabo-verdianos como principais coadjuvantes da colonização portuguesa em África, estimando-se que cerca de 90% dos postos administrativos da Guiné-Bissau e grande parte dos do Norte de Angola eram por eles ocupados (Fernandes, 2002: 137).
A experiência dos intelectuais e activistas da Geração de 50 ecoa a dos colonizados pela França anteriormente referida. Tratava-se de jovens estudantes assimilados, com experiência de educação na metrópole, onde «o presumível branco da terra cabo-verdiano experimenta sua mais dolorosa negritude» (2002: 141). Acontece que no caso cabo-verdiano, como aliás nos casos das sociedades-ilha crioulas, o “retorno às origens” como mecanismo compensatório e mesmo alternativo, afigurava-se impossível, e a noção de África necessariamente como uma mistificação. Manuel Duarte, um dos expoentes da Geração de 50, justifica a propensão africanista a partir da enunciação do «fenómeno colonial» (2002: 147). Essa geração optou pelo carácter político do processo de re-identificação. Amílcar Cabral revalorizaria simultaneamente, aliás, tanto a cultura popular quanto a cultura escolar: «O retorno às origens deixa de significar um retorno às tradições» (Cabral, 1977: 8) para «passar a simbolizar um processo de re-enraizamento no qual a pequena burguesia assume seu suposto contexto social originário como precondição da superação de sua marginalidade sociocultural». (Fernandes, 2002: 151). O PAIGC, criado em 1956, reforçará sobretudo a polarização entre classe colonizadora e classe colonizada. Na sua decisão de ida para o campo – de modo a possibilitar a luta armada de libertação na Guiné – o projecto não pôde escapar ao problema da tensão entre assimilados (os activistas políticos) e indígenas. A mediação seria feita pelos “desenraizados”, isto é, jovens do campo recém-chegados à cidade. A outra tensão polarizadora deu-se entre os fundadores e líderes principais do Partido, na sua maioria cabo-verdianos vivendo na Guiné como funcionários ou, então, jovens universitários em Portugal: a polarização entre guineenses e cabo-verdianos.
Com o assassinato de Cabral em 1973 e a revolução portuguesa em 1974, dois campos principais estabelecem-se em Cabo Verde. De um lado os africanistas representados pelos combatentes retornados, defendiam a independência e a unidade entre Cabo-Verde e Guiné-Bissau, o grande trunfo de um projecto político e não culturalista de Cabral. Do outro lado situavam-se os europeístas, oriundos da elite letrada, defensores da autonomia de Cabo Verde mas no quadro da manutenção de laços com Portugal – no seguimento, aliás, de uma tradição mais antiga de defesa da “adjacência” do arquipélago, num estatuto semelhante ao dos Açores em oposição à definição de “colónia”, corroborada por alguns dirigentes revolucionários portugueses (como Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial). Baltasar Lopes cria o GADB (Grupo de Acção Democrática de Barlavento), de que nasceria a UDC (União Democrática Cabo-verdiana). Muitos nacionalistas, como Onésimo Silveira e Leitão da Graça abandonaram o PAIGC por serem contra a unidade com a Guiné. Na sequência da tentativa de contra-golpe em Portugal, em Setembro de 1974, o sector africanista contou com o apoio do MFA, lançando uma perseguição contra a UDC e a UPICV de Leitão da Graça, abrindo caminho para a independência em 1975. Brevemente, em 1980, o golpe de estado na Guiné põe fim à unidade entre os dois territórios.
A partir daí a tendência foi no sentido de entrincheiramento na ideia de caboverdianidade, acentuada ainda mais no período posterior à instauração do pluripartidarismo em 1991, e a crescente dependência económica de Portugal. Deu-se, assim, uma parcial reabilitação da identidade legitimadora em vigor no período colonial e um questionamento e reinterpretação dos componentes da identidade de resistência. No plano político isso saldou-se no derrube das figuras do africanismo e na recuperação das que faziam lembrar o modelo identitário lusitano-mestiço.
É Amílcar Cabral quem diz que a poesia cabo-verdiana (e, por extensão, a literatura), se divide em dois tempos: o antes e o depois da revista Claridade. A produção anterior é caracterizada como desligada do ambiente geográfico e social do arquipélago, com ligação a uma cultura clássica ministrada no seminário de S. Nicolau. Cabral, indagando sobre como se deu a transformação, afirma que em períodos posteriores a cultura continuou a ser apanágio das elites, mas que foi entre elas que a transformação se deu, graças à fundação do Liceu, com acesso a mais gente e deslocando-se do isolamento de S. Nicolau para a cidade portuária do Mindelo. O contacto fundamental terá sido com as literaturas metropolitana e brasileira.
O movimento da Claridade foi lançado por Baltasar Lopes da Silva, Jorge Barbosa e Manuel Lopes em 1936 no Mindelo (Batalha, 2002). Estes autores enfatizavam a vida local do arquipélago, especialmente a vida dos pobres. Tiveram forte influência brasileira (Amado, Jorge de Lima, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Manuel Bandeira, bem como dos académicos Gilberto Freire e Artur Ramos) e o movimento é feito em diálogo com a Négritude de Césaire e Senghor (iniciado em 1935), mas num curioso jogo de palavras: «Para eles era uma questão de negritude, mas para nós era uma questão de claridade. Era um movimento de finca pé na tchon» (entrevista de Batalha a Manuel Lopes, Lisboa, 1999 in Batalha 2001: 117, tradução livre). Batalha diz que «enquanto os intelectuais afro-caribenhos lutavam pelo reconhecimento da sua negritude enquanto súbditos coloniais, os cabo-verdianos lutavam pela sua branquitude portuguesa enquanto súbditos portugueses» (2002: 117).
Em 1947 Baltasar Lopes da Silva publica Chiquinho, novela centrada na personagem de um pobre faminto com sonhos de escapar à pobreza das ilhas. Temas semelhantes – seca, fome, pobreza e imigração – surgem também em Chuva Brava (1956) e Flagelados do Vento Leste (1960) de Manuel Lopes. A Claridade preocupava- se com a terra e o ambiente, com a cultura popular folk, a história e a língua crioula, com alguma crítica social e política. Brookshaw (1996) refere como nos anos cinquenta e sessenta a Claridade foi atacada por novos grupos de intelectuais – pelo seu escapismo e pela sua visão eurocêntrica e recusa em aceitar a contribuição africana quer para o crioulo quer para a cultura popular.
Tal foi feito, sobretudo, através da revista Certeza, inspirada pelo marxismo, pelo neo-realismo português e pelo crítico português Manuel Ferreira. Também nessas duas décadas outras revistas surgiram, procurando reconciliar a ideia de uma essência cabo-verdiana particular com novas prioridades sociais e políticas que reflectissem as mudanças em África – de que é exemplo Onésimo Silveira, autor do controverso Consciencialização na Literatura Cabo-verdiana (1963) (Brookshaw 1996).
Segundo Brookshaw (1996), o único problema dos Claridosos não foi a desilusão com Gilberto Freire, ou a contestação dos mais politizados e africanistas. A situação especial de Cabo Verde fora confirmada em 1953 com a sua não inclusão numa antologia de poesia negra em Português. A explicação dada por Francisco José Tenreiro, um expoente da Négritude em português, confirma-o: «One might be surprised by the absence of Cape Verdean poets: the reason for this is that, in our opinion, poetry from these Creole islands, with few exceptions, does not transmit the sentiment of negritude, which is the raison d’être of black poetry» (Tenreiro e Pinto de Andrade, 1982: 82 in Brookshaw, 1996: 208). Já em 1954, Manuel Duarte publicava na Vértice o artigo “Caboverdianidade e Africanidade” em que referia a tendência dos Cabo-verdianos para se segregarem de outros africanos em Lisboa por suposto complexo de inferioridade. Duarte dizia que isso se ultrapassaria com o uso do crioulo. Já Consciencialização na Literatura Cabo-verdiana (1963) de Onésimo Silveira é um claro negar do elitismo da Claridade. Citando o Orphée Noir de Sartre, Silveira diz: «The young people of our generation consider Cape Verde to be an example of African regionalism. This inversion of the terms of the problem stems from the influence of the African Renaissance, which is revitalising all areas of activity and every aspect of the spirituality of the black or mestizo» (1963:22 in Brookshaw, 1996:20814).
A partir de uma abordagem de Gilberto Freire, Baltasar Lopes e Manuel Ferreira, Osvaldo Silvestre (2002) produz uma brilhante análise do objecto “Crioulo” entre 1936 (quando surge a Claridade) e 1967, ano de publicação de A Aventura Crioula, de Manuel Ferreira. Questionando o que explicaria a aceitação das ideias de Freire pelos claridosos, os meios de tradução que fizeram uma teoria da miscigenação funcionar como teoria emancipatória, e a razão da não recusa após a cooptação colonial do luso-tropicalismo, a pergunta de Silvestre é assim resumida: como pôde uma teoria da emancipação funcionar ao mesmo tempo como teoria da colonização? Em “Uma Experiência Românica nos Trópicos” (Claridade, nº 4) Baltasar Lopes usa as ideias de Arthur Ramos (na verdade, as ideias de Herskovits) sobre a aceitação, adaptação ou reacção. Cabo Verde é retratado como melhor exemplo das ideias de Freire do que o Brasil. Isto implica, porém, que a cultura Africana estaria mais perdida em Cabo Verde, uma vez que a aceitação teria ido mais longe. De modo a proverem uma teoria emancipatória, as ideias de Freire são hipercorrigidas, de modo a adaptarem-se ao caso cabo-verdiano, onde a miscigenação teria sido levada mais longe, especialmente na língua. Silvestre observa que «Esta posição é intrinsecamente ambivalente, na medida em que Cabo Verde se constitui assim como sujeito à custa do despojamento da lógica profunda da colonização que dele fez objecto (…). Implícito no pensamento dos Claridosos, tal argumento viria a ser formulado por Gabriel Mariano em 1959 (…): “Cabo Verde constituiu-se em Nação à revelia do colonialismo. Foi um tiro que saiu pela culatra do colonialismo” (Mariano, 1991: 61).» (Silvestre, 2002: 73)
Considerando esta ambivalência como estrutural, ela torna inviáveis «as estratégias de demarcação da identidade cabo-verdiana que atribuem à Claridade a função de um nítido separador de águas entre um antes colonial e um depois “pós-colonial”» (Silvestre, 2002: 74): «Claridade é o lugar crítico de uma sobreposição abrasiva, e por definição irresolvida, de emancipação e colonização. É provável que o grande responsável por essa sobreposição irresolvida seja o próprio conceito de crioulidade, não deixando de ser curioso que a teorização da Claridade sobre o referido conceito se tenha afinal transformado na legitimação oficiosa e oficial da identidade cabo-verdiana ». (Silvestre, 2002: 76).
A concepção de cultura implícita na Claridade faz com que a etnografia jogue um papel central, pelo interesse na cultura nacional do povo e na língua, conduzindo à «junção fatal do conceito de nacionalidade com o conceito de cultura» (Gilroy, 1993:2, in Silvestre, 2002:78), gesto tipicamente moderno. Silvestre nota nesta relação com uma tradição ocidental e moderna a provável influência do papel jogado pelos cabo-verdianos no sistema colonial português. E chama a atenção para o facto de nas décadas de trinta e quarenta a celebração da identidade cabo-verdiana como miscigenação ter um conteúdo político não desprezável, já que as concepções de Freire não agradavam ainda ao aparelho colonial dirigido pelo ministro Armindo Monteiro (2002:80).
Para Silvestre, os textos mais importantes que em ou sobre Cabo Verde se escreveram após Lopes foram Do funco ao sobrado ou o mundo que o mulato criou de Gabriel Mariano (1959), Consciencialização na literatura caboverdiana de Onésimo Silveira (1963) e A aventura crioula de Manuel Ferreira (1967). A caracterização “africanista” de Freire é ecoada em Onésimo Silveira, para quem Cabo Verde é «um caso de regionalismo africano» (Silveira, 1963:22) ou, antes, no negritudismo, por exemplo, de Manuel Duarte em 1954, no texto Caboverdianidade e Africanidade. O Atlântico Negro de Freire é, para Silvestre, nostálgico dos tempos coloniais. Não é esse o caso da Claridade, onde há forte consciência dos problemas geográficos e sociais, do sofrimento sentido. O Atlântico Negro da Claridade ecoa o do angolano Mário António, propugnador da visão de um Atlântico Crioulo, ou, na sua expressão, de um arquipélago de «ilhas crioulas», nas quais, após uma prévia e necessária distinção entre “raça” e cultura, se teria originado uma cultura crioula, de matriz lusotropical. Só que a etnicidade «…coloca um travão à heurística transnacional do Atlântico Negro, moderando-o e decidindo-o pelo locus em detrimento da diáspora…» (Silvestre, 2002:93). O conflito entre etnicidade e nação é constante em Cabo Verde, e Silvestre vê como primeira tentativa de “solução” a separação da Guiné, matando assim a utopia geopolítica de Amílcar Cabral.
No processo cabo-verdiano de identificação nacional pelas elites letradas, a crioulidade torna-se no sinónimo da etnicidade e da nacionalidade, territorialmente ancoradas. A historicidade – quer o processo escravocrata, quer o colonialismo, quer as experiências nacionalistas ou socializantes do pós-independência – não são esquecidas ou sublimadas. Elas estão presentes nos debates sobre a africanidade ou europeidade das ilhas. A mestiçagem, interpretada num sentido ou noutro, valorizada ou não em consonância com teorias produzidas alhures para outros efeitos, é o mote central. O seu produto cultural por excelência é a língua crioula. É esta que confere especificidade. Mas esta tem uma história e uma sociologia concreta, do seu aviltamento como “língua de pretos” por oposição ao português; pelo facto de ou ser a língua dos mais pobres ou, no caso das elites, ser a língua de casa – marcada por metáforas de género (maternal) ou espaço (doméstica), ou interacção (informal).
Em Cabo Verde, embora as duas línguas sejam oficiais, até há pouco existia uma demarcação entre o português como língua oficial e o crioulo como língua nacional. Como diz Juliana Braz Dias (2002), a utilização das duas línguas está permeada por questões de autoridade e resistência, identidade e distância social. Na sua análise recorre ao conceito de “ideologias da língua” ou de demarcação dos interesses de um grupo sociocultural específico; as ideologias da língua são múltiplas, segundo divisões sociais significativas; os membros da sociedade detêm diferentes graus de consciência sobre as ideologias; e elas são mediadoras entre as estruturas sociais e os tipos de fala.
É sabida a correspondência entre o projecto moderno do estado-nação e a definição de uma língua, sobretudo língua escrita padronizada, como suporte do sistema burocrático. A burocracia em Cabo Verde expande-se com o português e esbarra no crioulo em termos identitários, criando-se assim um factor de desigualdade. Dias identifica um conjunto de oposições: entre, por um lado, a língua oficial, internacional, formal, escrita, estatal, burocrática, culturalmente dominante, elitista e modernidade; e, por outro, a língua materna, nacional, informal, oral, nacional, de resistência cultural, de massas e tradicional15. Cuidadosamente, aponta que a delimitação dos dois campos é parte da ideologia da língua, pois há uma variação geográfica do crioulo, e na realidade a dicotomia confronta-se com um continuum. A subalternidade do crioulo gera a diglossia e a solução, para muitos pensadores e políticos locais, seria o bilinguismo.
imagens retiradas da exposição Kréyol Factory, La Villette Paris, 2009.
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