O Projecto Crioulo - Cabo Verde, colonialismo e crioulidade (Parte IV)
4. Crioulização, crioulidade e crioulismo. História, sociedade, política e teoria social
Em Transnational Connections, Hannerz (1996) reforça a ideia de que, para lá das sociedades crioulas do Novo Mundo, os conceitos de crioulo e crioulização podem aplicar-se a processos mais gerais de criatividade, sobretudo no mundo globalizado. Ele chama a atenção para os perigos de utilizar uma metáfora linguística para falar de processos sociais, propondo a sua superação através do uso de uma metáfora sociolinguística. De facto, a fonte metafórica deverá ser não só linguística (as línguas crioulas), como social e histórica (as sociedades intituladas crioulas). Igualmente, deverá evitar-se o risco de entender crioulização e/ou hibridização como processos de mistura de componentes originários puros.
Trata-se, na realidade, de uma questão de conjuntura: apenas acontece que as fontes são mais identificáveis no momento ou período de crioulização do que mais tarde – partindo do princípio que todas as formas sociais e culturais são resultantes de processos de crioulização, hibridização e/ou mistura.
Assim, o continuum crioulo identificado na antropologia e na sociolinguística por Drummond (1980) comporta uma economia política da cultura. Poder social e recursos materiais, bem como prestígio, tendem a plasmar-se em pontos diferentes do espectro das formas culturais. É a constatação destas desigualdades que pode ajudar a evitar atitudes celebratórias em torno da crioulização. Hannerz identifica quatro enquadramentos onde a crioulização se dá em simultâneo com a distribuição desigual de capitais ao longo do continuum: o quotidiano (ou form of life), o Estado, o mercado e o movimento. Nestes processos, atenção especial deve ser dada às classes mediadoras e intermédias. Na observação desses terrenos – por exemplo, cidades pós-coloniais – criam-se verdadeiros interstícios nos quais se pode aperceber que as relações centro-periferia não significam a mera difusão da modernidade, mas sim a emergência de novas diversidades – ou, noutra linguagem, as modernidades alternativas de que fala Ong (1996).
Cabo Verde – e sobretudo as suas elites – seriam, ao longo da história colonial e hoje, um bom ponto de observação destes processos. Eriksen (1999) analisa a “crioulização cultural” partindo assumidamente da analogia linguística. Esta, por sua vez, já havia retirado o termo de um aspecto particular do colonialismo: o desenraizamento e deslocação de grandes números de pessoas para as economias de plantação de algumas colónias, como Louisiana, Jamaica, Trinidad, Reunião e Maurícia. A “crioulização cultural” «… refers to the intermingling and mixing of two or several formerly discrete traditions or cultures. In an era of global mass communication and capitalism, creolisation can be identified nearly everywhere in the world, but there are important differences as to the degree of mixing. The concept has been criticized for essentialising cultures (as if the merging traditions were “pure” at the outset, cf. Friedman, 1994). Although this critique may sometimes be relevant, the concept nevertheless helps making sense of a great number of contemporary cultural processes, characterised by movement, change and fuzzy boundaries». (Eriksen, 1999).
Será? A essencialização crioulista nas Caraíbas, como vimos, aponta para aí? Ou, noutro oceano, a transformação da categoria “crioulo” de específica em geral e nacional, na Maurícia estudada por Eriksen, apontará para aí? A história de Cabo Verde, em que o constructo colonial é reinterpretado pelos proto-nacionalistas, redundando em especificidade nacional – também ela aponta nessa direcção? Para Hannerz (1997), por outro lado, «Flux, mobility, recombination and emergence have become favored themes as globalization and transnationality frequently offer the contexts for our thinking about culture. We now look for test of theory where some, at least, of the inhabitants are creoles, cosmopolitans or cyborgs». (Hannerz, 1997).
Como vimos, este tipo de interesse não é destituído de História. O debate americano sobre a “aculturação” foi um objecto de estudo entre os anos trinta e cinquenta. Nesse contexto, o Brasil, e sobretudo a Bahia, foi um dos terrenos favorecidos pelos teóricos da aculturação, entre os quais o próprio Herskovits. Os anos setenta, com a predominância das teorias da modernização, da dependência e dos sistemas-mundo, não foram uma década com ambiente favorável ao estudo das variações culturais. Mas a última década redescobriu a globalização e a transnacionalidade. Redescobriu, pois ela estava presente na preocupação quer dos americanos estudando crioulização, quer de antropólogos de inclinação histórica e materialista – e contemporâneos daqueles – como Eric Wolf.
Na sequência de Appadurai (1996), as sociedades contemporâneas caracterizam-se por fluxos de capital, trabalho, mercadorias, informação e imagens numa economia cultural global. Estes fluxos atravessam fronteiras – e Barth já havia definido em 1960 as fronteiras como algo através do qual os contactos e interacções têm lugar, uma vez que não contêm isolados naturais. Para Hannerz, esta ideia é diferente da dos teóricos da aculturação, que viam os sistemas culturais como autónomos. Assim, em vez de aculturação, a atenção contemporânea vira-se para a mistura. Da compaixão com a mistura, passámos para a celebração da mistura (Hannerz, 1997), algo que, todavia, aconteceu mais cedo no Brasil, pelo que Freire até poderia ser visto como um teórico do hibridismo avant la letre.
Em vez de “hibridismo” – o termo favorecido pela teoria pós-colonial – Hannerz prefere assumidamente “crioulização”. Reconhecendo a sua origem em contextos concretos (as plantações do novo mundo), ele apropria-se do uso expandido do termo na sociolinguística. Assim, a abordagem crioulista aplicar-se-ia a processos de confluência cultural num continuum de diversidade, escalonado ao longo de uma estrutura de relações de centro-periferia que se podem mesmo estender transnacionalmente, e que se caracteriza por desigualdade de poder, prestígio e recursos materiais (Hannerz, 1997). A diferença a ter em conta é que todos fomos nalgum tempo crioulizados e os processos prestar-se-ão a um maior ou menor nível de auto-consciência consoante os terrenos.
Contrapondo-se a Hannerz, Mintz prefere o uso restrito e localizado da expressão como referência às Caraíbas, caso contrário a expressão significaria o mesmo que modernização. Noutro lado do espectro, Friedman acha que o argumento crioulista é simplesmente «essencialismo confuso» (Friedman, 1994: 208ff). O desafio está precisamente em evitar estes dois problemas. Mais do que modernização, a perspectiva sobre a crioulização contemporânea é de cariz pós-moderno.
Quanto ao essencialismo, ele poderá ser verdade se o conceito de cultura for estanque ou, empiricamente, se a crioulidade se tiver transformado num discurso de especificidade nacional ou étnica. Se autores como Fanon, Naipaul ou Saïd analisaram os problemas da nova ordem cultural, os antropólogos produziram pouca etnografia sobre como as pessoas no terceiro mundo vêem as suas sociedades no passado, presente e futuro (Hannerz, 1987: 547).
Aparte as teorias do pluralismo nascidas da análise da aculturação nas Caraíbas, Hannerz encontra pouca atenção prestada à produção de conceitos que ajudem a perceber os processos contemporâneos de crioulização. Uma excepção seria o trabalho de Drummond (1980), com base na linguística. Para o autor não existem culturas distintas na Guiana, mas sim uma cultura crioulizante e intersistémica, sendo que no espectro de formas culturais presentes, quase sempre de origens díspares, existe uma economia política da cultura, uma vez que o poder social e os recursos materiais correspondem ao espectro de formas culturais (Hannerz, 1987: 552).
Algumas diferenças são fundamentais. Primeiro, a diferença entre especificidade socio-histórica e generalidade (por exemplo, entre as Caraíbas e outros contextos); segundo, as características de economia política da situação do Novo Mundo, especialmente escravatura e plantação, por oposição a interculturalidade, ou inbetweeness no contexto colonial ou ainda pura e simples mistura a la world music; terceiro, pela diferença entre contextos sociais onde haja auto-identificação da crioulidade e outros onde tal não exista. O referido trabalho de Drummond começa assim:
«Structural anthropology has drawn heavily on structural linguistics, so that the structure of culture is often linked through a linguistic analogy to the structure of language. Recent work on creole languages however questions the correctness of earlier linguistic theory and suggests that internal variation and change, rather than uniformity and synchronicity, are distinctive features of language… [ele quer argumentar que] cultures are neither structures nor plural amalgams, but a continuum or set of intersystems». (Drummond, 1980: 352)
Pegando na tradição de usar a metáfora linguística do crioulo, Drummond introduz uma visão mais processual e complexa da cultura. A sua teoria é muito útil para perceber processos de crioulização, encontros coloniais, e tendências presentes – globalizadoras e pós-coloniais – no sentido de uma hibridização acelerada, expandida e auto-consciente.
A hibridização e a crioulização sempre existiram, mas a sua intensificação e reflexividade são hoje diferentes, à semelhança da definição de modernidade tardia por Giddens (1990).
A principal tarefa do artigo de Drummond é demonstrar a relevância do trabalho da linguística dos crioulos para problemas antropológicos relativos à etnicidade e à cultura em sociedades poliétnicas. A ideia central é a de «inter-sistema» ou continuum, uma formulação teórica da crioulística aplicada especificamente ao crioulo da Guiana por Bicckerton (1975). Os falantes de línguas crioulas e as pessoas que aprendem segundas línguas falam rotineiramente de acordo com regras de transformação no interior de umcontinuum linguístico. Drummond argumenta que os membros de uma sociedade crioula operam de modo semelhante com entendimentos e expectativas relativas a diferenças fundamentais que separam as pessoas nessas sociedades, e que essas diferenças constituem um continuum cultural (por exemplo, as categorias raciais e étnicas) (Drummond, 1980: 353).
Nesse sentido, o resultado da combinação de processos como a escravatura ou o trabalho forçado, a imigração voluntária ou forçada, a integração económica, a globalização, etc., não é nem uma «sociedade plural» (Smith, 1965) nem uma totalidade integrada no sentido Parsoniano, mas sim um intersistema ou continuum cultural.
Diversidade e divisão (com base na classe, na “raça”, na etnicidade, etc.) são fundamentais nesse sistema. Os indivíduos estão conscientes de grande parte do leque possível de comportamentos e crenças nesse continuum, embora não necessitem de comportar-se ou agir como o Outro, do mesmo modo que os falantes de um crioulo geralmente podem entender os actos de fala em ambos os extremos do continuum mas raramente controlam ambos os extremos no seu próprio discurso e fala (Drummond, 1980: 353). A demonstração empírica de Drummond baseia-se na história etnopolítica da Guiana e numa análise de estratégias e formas de casamento que demonstram variação e contradição nas categorias étnicas: «…an anthropology which incorporates the concept of Creole continuum does not merely increase its descriptive adequacy for a small set of societies; it poses questions about the very nature of culture. If variation and change are fundamental aspects of cultural systems, as they appear to be of linguistic systems, then we must consider the possibility that ethnographic studies of small, post-colonial, ethnically fragmented societies such as Guyana illustrate Creole processes found in societies everywhere. What were presumed to be marginal, atypical societies requiring a separate, pluralist theory become central to discussions of general theory. The concept, “cultural system” or “culture”, will have to be redefined so that a particular human population (“society”) is no longer thought to possess an ideational component (“culture”) characterized by uniform rules and invariant relationships. (Drummond, 1980: 370).
Embora baseada num modelo linguístico (justificável pela época do seu trabalho, na sequência das teorias estruturalistas), a abordagem de Drummond é útil na medida em que é consonante com uma visão não essencialista de “cultura”, bem como com noções de “socialidade” e “processo”; não afasta a economia política e os aspectos materiais da História de um contexto local, permite o movimento do local para o global, do específico para o geral; atravessa agendas disciplinares, identitárias e localizadas, como o “pós-colonialismo”, e não usa expressões como “híbrido” e “mistura” de forma pouco sólida e muito impressionista.
A focagem na emergência de formas culturais crioulizadas é particularmente apropriada para a análise dos encontros coloniais. Caplan (1995) argumenta que a atribuição da etiqueta “crioulo” por antropólogos e teóricos pós-coloniais a misturas culturais deve deixar espaço para os discursos locais que podem revelar autoidentificações alternativas e até contraditórias. Ecoando a observação de Fanon (1970:48) de que acontecem coisas fora do controlo do colonialismo, Bhabha (1994) prestou atenção às ambiguidades culturais inerentes aos encontros coloniais e às complexidades das fronteiras culturais e políticas entre colonizador e colonizado (Caplan, 1995:743). Também o trabalho de Stoler (1989) acentua a impossibilidade de ver colonizadores e colonizados como categorias universais e indiferenciadas, impedindo assim o erro de partir do pressuposto de uma homogeneidade das elites coloniais ou de tratar europeus e colonizadores como sinónimos. Se, tal como Bhabha diz, «o hibridismo é o sinal da produtividade do poder colonial» (1994: 112), Drummond foi dos primeiros a sugerir que as sociedades poliétnicas, como as das Caraíbas podem ser mais bem compreendidas sem noções de fixidez cultural ou insularidade – em suma, uma noção de crioulização (Caplan, 1995: 744).
A metáfora crioula tem sido acusada de não reconhecer a desigualdade nas culturas ditas crioulizadas (Trouillot, 1992: 28) e de inferir a existência, prévia à crioulização, de culturas puras (Friedman, 1994). Caplan defende que a crioulização deve implicar a negação da sua construção como categoria, conceptualizando-a mais como um fenómeno natural, na sequência de Glissant (1989: 140-1). Qualquer conjunto de expressões culturais é crioulizado, no sentido de ser parte de um continuum. Aplicando isto aos Anglo-Indianos do seu estudo, uma imagem deste tipo revela: o encontro histórico de correntes sociais e culturais separadas e desiguais; a porosidade de práticas culturais dentro e entre linhas que dividem grupos; e a relação entre asserções específicas de identidade e esses campos crioulizados, bem como entre elas e os alinhamentos de poder coloniais e contemporâneos (Caplan, 1995: 745): «Eurasian imitation of European modes was treated with contempt, as something of a “parody” which was seen to “diminish British standing in Indian eyes”, and British women consistently adopted new styles and materials to escape emulation by Eurasian women… This illustrates Bhabha’s insightful characterization of mimicry in the colonial situation: while it involves the borrowing of “inappropriate objects that ensure its strategic failure”, it also menaces by “disclosing the ambivalence of colonial discourse” and threatening to “disrupt its authority” (1994:86-8) (…) Notwithstanding the diverse social and cultural streams feeding this Creole population, throughout the colonial period community elites proclaimed a rhetoric of purity in the sense of an insistence on unequivocal affiliation to the dominant British group. For years such a view hindered the development of an Anglo-Indian collective consciousness. (…) A different kind of rhetoric emanates from Anglo-Indian elites who have benefited most from opportunities in post-independence India. Here the tendency is to play down their “foreignness” and stress local identity (…) This readiness to emphasize rootedness does not signify a belated discovery of original maternal links, nor a denial of their European social and cultural springs, but a desire to acknowledge India as the meeting point for these different influences. (Caplan, 1995: 753-7) Stoler contribui com ideias semelhantes. Como parte de um empreendimento político mais geral nos anos setenta, reexaminou-se como a política colonial afectou a teoria e o método da etnografia e da História. Sob a influência de Wallerstein, investigou-se como os constrangimentos coloniais capitalistas moldaram as mudanças de classe e comunidade indígenas ao mesmo tempo que destruíram, preservaram ou congelaram relações de poder tradicionais (como nos trabalhos conhecidos de Asad, Foster-Carter, Scott, ou Hobsbawm e Ranger) (Stoler, 1989:134).
Foi assim que se produziram inúmeros estudos sobre o impacto do colonialismo em vários domínios, da estrutura agrária à economia doméstica, passando pelo parentesco e organização social (nos conhecidos trabalhos de Steward, Wolf, Geertz, Mintz, Etienne e Leacock) (1989:135).
Uma segunda vaga, quebrando com o determinismo, procurou identificar a agência activa das populações colonizadas, usando termos e temas como “pequenas tradições”, “campesinatos reconstituídos” ou “economias morais” (nos trabalhos de Rosaldo, Taussig, Stoler, Comaroff, ou Roseberry). Também as unidades de análise se viraram para o extra-aldeia, o regional, o nacional e o global (como nos casos de Nash, Vincent, ou Roseberry) e rejeitaram a ideia de que categorias como nação, tribo ou cultura fossem internamente homogéneas e externamente distintas, como frisou Wolf. O colonialismo e os seus agentes europeus foram vistos como uma força abstracta, como uma estrutura imposta nas práticas locais (Stoler refere Balandier como excepção). As comunidades de colonizadores eram frequentemente tratadas como não problemáticas e as agendas políticas coloniais foram vistas como auto-evidentes. Na realidade, as culturas coloniais nunca foram traduções directas duma sociedade europeia transplantada nas colónias (Stoler, 1989: 136). O seu argumento foca na mútua constituição de colonizadores e colonizados, na mutabilidade de regimes de exclusão e inclusão, e numa variedade de procedimentos de regulação do sexo, da reprodução, da classe e da própria ideia de nação, império, similitude e diferença.
Existe hoje uma atenção renovada em relação à origens e sobrevivências africanas, numa espécie de remake do trabalho de Herskovits, incluindo uma espécie de recusa da crioulização, vista como pejorativa. Price diz que isto é compatível com o nacionalismo cultural afro-americano (Price, 2001:48). Outra tendência identificada por Price como sendo peculiar entre alguns historiadores americanos é mais consonante com o trabalho de Mintz e Price, por acentuar que «ao invés de avançar de africano para crioulo ou de escravatura para liberdade, as pessoas de descendência africana na América do Norte continental atravessaram as linhas entre africano e crioulo e entre escravatura e liberdade muitas vezes e nem sempre na mesma direcção» (Berlin, 1998: 5, in Price, 2001: 47). Appiah (1992), por exemplo, escreveu sobre a natureza historicamente contingente das identidades étnicas como uma das razões pelas quais foi tão problemática a ideia de estabelecer uma base africana para os estudos sobre o Novo Mundo. Também na historiografia brasileira do período colonial se verifica esta tendência. E as pesquisas de terreno demonstram que as formas chamadas “africana” e “crioulizada” podem ser usadas pelas mesmas pessoas em diferentes circunstâncias para propósitos diferentes, ao ponto de aquilo que é reivindicado como africano poder ser de facto crioulo e vice-versa.
Isto porque ambos são produtos da construção de sentidos culturais na vida real. É por isso que Trouillot concorda com Price quando, opondo-se ao privilegiar do discurso por Scott, ele diz que «ao invés de privilegiar o discurso, o que é muito arriscado, os afro-americanistas devem coordenar discurso e acontecimento, inventando estratégias de representação imaginativas de modo a tratá-los em conjunto» (Trouillot, 1998:15, tradução livre). Ele adverte que «à medida que a teoria social se centra no discurso, a distância entre os dados e as reivindicações nos debates sobre a crioulização … aumenta. As circunstâncias históricas desaparecem num pano de fundo enevoado por preferências ideológicas» (in Price, 2001: 55, tradução livre). Uma das grandes perplexidades no mundo contemporâneo é a escala da resistência ao hibridismo e a sobrevivência ou retorno do essencialismo e da pureza. Werbner (1997) usa a distinção de Bahktin entre dois tipos de hibridismo para ajudar a explicar este facto. A primeira forma de hibridização linguística é inconsciente e “orgânica”; a outra é o hibridismo consciente ou intencional.
A primeira é uma característica da evolução de todas as línguas, ao passo que a segunda cria uma dupla consciência irónica. Igualmente, assumindo a distinção de Hannerz entre cosmopolitas e transnacionais (os primeiros consomem, os segundos movem-se), Werbner diz que o que é evidente é que o hibridismo, à semelhança do sincretismo religioso, é uma condição colectiva percepcionada pelos actores como ameaçadora do seu sentido de integridade moral – é pois altamente politizado.
De entre as principais referências teóricas do hibridismo – Hall, Gilroy e Bahbha – Hall deslocou-se de uma posição de radical negro para o campo do híbrido, pois para ele não existe um sujeito negro inocente que possa usar a etnicidade como uma força de resistência legítima, e o racismo é uma força ambivalente porque atravessada por posições de género, etnicidade e desejos especulares. A sua visão política é Gramsciana, pois hegemonia e contra-hegemonia devem ser constituídas através de alianças que atravessam diferenças. Gilroy, por sua vez, desafia tanto o essencialismo (por exemplo, as reivindicações de autenticidade dos afrocentrismos) quanto o anti-essencialismo que vê a negritude como uma construção; a sua alternativa é a contemplação de um Atlântico Negro como uma contracultura hibridizadora. Bhabha, por fim, vê o nacionalismo como algo que nunca é homogéneo ou unitário, e localiza a agência no acto de enunciação interruptiva (interruptive enunciation) de Derrida, focando na intersticialidade das identidades criadas nos confrontos coloniais.
Regressando à contribuição de Vergès, é importante pensar sobre o cosmopolitismo crioulo na época contemporânea. Nesse quadro, o cosmopolitismo implícito na crioulização de Glissant (ver atrás) é, segundo ela, visto como um Ideal. A poética da relação de Glissant pode ser comparada com as teorias de Bhabha sobre o cosmopolitismo vernáculo, as de Stuart Hall sobre identidades diaspóricas ou as de Paul Gilroy sobre humanismo cosmopolita. Em que sentido é o “crioulo” diferente do diaspórico, do híbrido? Trata-se de uma questão que só pode ser respondida através do estudo de processos actuais de crioulização, na sua localização e especificidade (Vergès, 2001:179). O conceito de identidade transicional implícito na ideia de identidade diaspórica representa bem as actividades das colectividades do contexto caribenho. Mas para o caribenho anglófono Brathwaite (1971) as condições culturais e as orientações culturais caribenhas são tanto o resultado do processo de crioulização quanto da escravatura que lhe forneceu o enquadramento. Nesse sentido, a crioulização foi um processo cultural que ocorreu numa sociedade crioula – isto é, segundo a sua formulação, numa formação política de plantação tropical colonial baseada na escravatura (Brathwaite, 1971: 306). Bolland diz que a promoção de uma imagem de uma sociedade crioula não se limita às Caraíbas e se liga ao processo de descolonização e construção nacional (1992: 52). O papel dos intelectuais na criação de imagens das suas sociedades, especialmente em períodos de rápida transformação social, é importante. Nesse sentido, a tese de Brathwaite não é suficientemente dialéctica (1992: 53). Bolland critica a pergunta de Brathwaite “colonial ou crioulo?”, de natureza dualista, quando, segundo ele, se deveria pensar antes em termos de “colonial e crioulo” (1992: 71).
No caso da Maurícia abordado por Eriksen (1999), a categoria fuzzy de crioulo inclui tanto os crioulos tradicionais (isto é, pessoas das classes trabalhadoras com pele escura cujos antepassados foram escravos) quanto uma categoria residual de crioulos modernos ou pós-modernos, que são crioulos porque, por várias razões, não encaixam noutras categorias. Para mais, com o aumento de casamentos mistos, muitos Mauricianos prevêem um futuro em que tu dimunn pu vini kreol (em que toda a gente pode tornar-se crioulo). No seu argumento, Eriksen pretende demonstrar que as noções locais de crioulidade estão associadas a língua e etnicidade, as quais só parcialmente se sobrepõem. Pode-se ser crioulo mesmo sendo muçulmano, desde que se seja de ascendência africana e se fale Kreol. Também se pode ser crioulo se se for de ascendência indiana, desde que se seja cristão e se demonstre, através do modo de vida, compromisso com valores crioulos. Neste sentido, a categoria étnica crioula, desprovida de um mito essencialista de origem, está aberta a novos membros e por isso mesmo está pobremente organizada do ponto de vista político. A crioulidade significa mistura e impureza, abertura e individualismo (Eriksen, 1999). O autor faz notar que o uso mauriciano de crioulização se aproxima do conceito antropológico. A crioulização é vista como um processo no qual novas formas culturais partilhadas e novas possibilidades de comunicação emergem graças ao contacto. No discurso público mauriciano as noções de mudança, fluxo, escolha pessoal e hibridismo são constantemente contrastadas com a tradição, a estabilidade, o compromisso com valores fixos e a pureza. Estes debates parecem-se com os da comunidade académica.
Várias acepções de crioulidade e crioulização surgem. Desde logo, há que distinguir entre a crioulização geral como modo de sobrevivência e mudança de toda a qualquer formação social e cultural no tempo longo. Depois, há que considerar o continuum crioulo como o leque que acaba por demonstra a crioulização geral e complexificar a objectificação de sociedades como especificamente crioulas. Assim a crioulização seria o processo, que não conduz necessariamente à crioulidade, e a crioulidade seria a coisa ou discurso identitário.
Que acepções temos ao nosso dispor? Em primeiro lugar, a Afro-América e as Afro-Caraíbas da economia de plantação colonial esclavagista, também verificável em certas zonas do Índico, em sociedades de ilha ou zonas costeiras ilhadas, com minorias brancas e maiorias negras. Em segundo lugar, sobretudo no universo hispanófono, temos a noção do crioulo como o branco nascido nas índias, transformado em elite nacional promotora do elogio da mestiçagem, mas com agenda de branqueamento implícita. Em terceiro lugar, temos a definição de elites crioulas intermediárias entre a
Europa e populações nativas, com incidência em cidades, costas e actividades comerciais, gerando grupos sociais intermédios de mulatos ou aculturados, prolongando-se, nalguns colonialismos, nas categorias de assimilados. Finalmente, temos a crioulização e a crioulidade confundidas como projecto emancipatório ou celebratório, podendo adquirir a conotação de projecto de construção nacional ou de fonte para teorias da hibridização em contexto pós-colonial, pós-moderno e globalizado.
Conclusão
Em Cabo Verde a crioulização é um processo que tem início logo na formação do território. Não resulta directamente de uma economia de plantação de tipo caribenho, embora partilhe elementos respeitantes à dinâmica da escravatura-liberdade, bem como a miscigenação. Não resulta, tão pouco, de um processo pluriétnico, como na Guiana e algumas zonas caribenhas de sucessivas imigrações de várias partes do globo. A crioulidade é o resultado de um processo de construção de uma identidade das elites locais, reforçado no período colonial tardio pela ideia de regionalismo no seio da nação portuguesa e como exemplo de um contributo civilizacional mestiço português. Mas o que se verifica com o regresso do discurso crioulo – sobretudo em torno do debate do precipitado da língua – é a sobreposição entre “crioulidade” e “nacionalidade”. A crioulidade seria o que descreve a identidade nacional cabo-verdiana, ilustrada nalgumas formas etnográficas – folclóricas, gastronómicas, físicas (nos corpos das pessoas) e sobretudo linguísticas – extremamente ancoradas num discurso de localização geográfica e de raízes.
Aquilo que verdadeiramente poderia produzir em Cabo Verde um processo de crioulização cosmopolita seria a emigração com pluridestinos que ali se dá e que tão estruturante é da própria sociedade e economia.
No entanto, o que parece verificar-se (a partir de uma rápida e, necessariamente, pouco fiável leitura de relatos etnográficos) é a repetição, na diáspora, de um discurso de identidade nacional. O crioulo em Cabo Verde tornou-se em mais uma versão do nacional: com origem, com raiz, com geografia e, provavelmente, com uma definição de pureza.
imagens retiradas da exposição Kréyol Factory
ler: O Projecto Crioulo - Cabo Verde, colonialismo e crioulidade (Parte I)
O Projecto Crioulo - Cabo Verde, colonialismo e crioulidade (Parte II e III)