Hugo Canoilas. Phantasmagoria. PhotodocumentaPátio da Inquisição
10 3000–221 Coimbra
Terça a Domingo 14h–19h
Entrada Gratuita
No dia 09 de Julho abriram ao público, no CAV, duas novas exposições do ciclo “Museu das Obsessões”, concebido e programado para o CAV por Ana Anacleto, por um período de dois anos. “Phantasmagoria ” de Hugo Canoilas e “visà-vis” de Ana Santos dão continuidade ao ciclo iniciado em Fevereiro de 2020 e procuram aprofundar as premissas da proposta conceptual definida pela curadora.
O ciclo de exposições “Museu das Obsessões”, assente numa ideia de liberdade e de transversalidade, recupera um conceito criado por Harald Szeemann, no início dos anos 70, que pretendia albergar todo o tipo de iniciativas decorrentes das práticas artísticas suas contemporâneas, explorando de forma livre (fora dos constrangimentos institucionais) todas as suas possibilidades de apresentação.
Assinalando o carácter de especialidade do CAV – enquanto espaço de apresentação, estudo e reflexão sobre as práticas artísticas ligadas ao uso e à criação da imagem (e particularmente da fotografia) – e valorizando grandemente a relação histórica que tem com os Encontros de Fotografia, pretende-se com o referido ciclo recriar um espírito de liberdade, promovendo o cruzamento entre as várias áreas disciplinares, dedicando especial atenção aos artistas cuja prática se afirma numa relação decorrente das questões da imagem mas cuja actividade se localiza num território de fronteira, com manifestações formais e conceptuais que vão para além das tipologias disciplinares (fotografia, vídeo, escultura, pintura, performance, etc).
Interessam-nos as particularidades, as idiossincrasias e as mitologias individuais, e é neste sentido que propomos um conjunto de exposições dedicadas a artistas (nacionais e internacionais) cuja prática se tem mostrado definidora de uma relação extraordinariamente idiossincrática tanto com a fruição da imagem quanto com a sua produção.
O ciclo de exposições “Museu das Obsessões” constitui-se então da apresentação de dez exposições subordinadas ao tema do Espectro e dez exposições subordinadas ao tema da Vertigem. Temas comuns à história da imagem, à história da produção fotográfica, ao pensamento imagético e ao próprio acto criativo.
Neste sentido, damos continuidade ao ciclo através da apresentação de duas exposições individuais de artistas de origem portuguesa – cujo percurso se tem desenvolvido também em contexto internacional – e que comungam de um interesse particular pelo estabelecimento de diálogos permanentes com a história da arte nas suas vertentes disciplinares mais tradicionais (a pintura e a escultura).
Na sala principal do CAV apresentamos a exposição “Phantasmagoria” de Hugo Canoilas que se constitui de uma grande instalação pictórica concebida especialmente para o contexto desta exposição, e que dá continuidade à mais recente investigação que o artista tem vindo a aprofundar em torno dos universos marinhos, das suas mitologias e dos seus ecosistemas enquanto metáforas de equilíbrio, sabedoria e partilha interseccional.
Na sala Project Room (espaço vocacionado para projectos especiais com um carácter mais experimental) contamos com a apresentação da exposição “vis-à-vis” de Ana Santos, concebida a partir de uma cuidada articulação entre um pequeno conjunto de obras escultóricas pré-existentes, inéditas em contexto nacional.
Ana Santos - vis-à-vis.
Hugo Canoilas
Phantasmagoria
A relação misteriosa que resulta do encontro entre duas imagens tem vindo a ocupar grande parte do pensamento produzido sobre arte e, mais recentemente, também os inevitáveis cruzamentos estabelecidos entre a prática artística e a investigação tecnológica e científica.
A percepção visual desenvolve-se em nós através de um mecanismo cumulativo. Vemos uma imagem a seguir a outra imagem, não sendo possível a activação de qualquer processo de simultaneidade. Já no caso do som ocorre o inverso. A percepção auditiva resulta de estados múltiplos de atenção e permite a sobreposição de inúmeras camadas sonoras num contínuo temporal. Ora, é justamente a consciência desta impossibilidade no campo da percepção visual, que nos leva simultaneamente a crer e a duvidar dos processos de entendimento das imagens em movimento (e muito particularmente do cinema e dos seus múltiplos mecanismos de ilusão).
Detenhamo-nos nesta ideia de percepção de movimento (ou de invenção deste em nós) para pensarmos no quanto o fragmento e a imagem fragmentária — e a sua percepção cumulativa — poderão ser responsáveis pela construção de experiências narrativas também elas em movimento. E pensemos, por momentos, no quanto o corpo, a sua deslocação e o vislumbre em fuga dessas imagens em acumulação poderão ser, de facto, responsáveis pela representação possível do movimento enquanto estado ele-mesmo.
Hugo Canoilas - Phantasmagoria. @Photodocumenta
A grande instalação pictórica concebida por Hugo Canoilas para o CAV, e que ocupa e integra todo o espaço do r/c do edifício, com o título Phantasmagoria, decorre das suas mais recentes investigações e explorações plásticas, e anuncia claramente a sua filiação no território de questionamento das imagens, da sua produção e da sua percepção.
Com um trabalho absolutamente singular — que se distribui por explorações nos vários territórios tipológicos que constituem a actuação dos artistas contemporâneos — o artista tem vindo a desenvolver uma prática pontuada pela especulação em torno das relações entre arte e realidade, pela constante interrogação acerca das características e limites da pintura e por uma tónica no trabalho colaborativo enquanto promotor de uma interacção simbiótica e geradora, abraçando o caos, o acaso e o livre arbítrio enquanto processos fortemente catalisadores da actividade criativa.
Mais recentemente tem vindo a concentrar-se nas relações entre arte e natureza, ou mais propriamente, nesse campo de possibilidades que poderá resultar do encontro entre uma prática artística que valoriza o processo e o conhecimento extraído da observação dos fenómenos e organismos naturais.
A exposição Phantasmagoria sucede temporalmente (e quase de imediato) à exposição Moldada na Escuridão — que apresentou recentemente na Fundação Calouste Gulbenkian — e dá continuidade a um interesse pelo mar profundo enquanto território especulativo, capaz de gerar projecções de um futuro não colonizado, permitindo uma experiência tangível sobre novas formas de vida e sistemas de empatia e compatibilidade inter-espécies.
Tomando como ponto de partida uma imagem retida na sua memória (a raríssima lula gigante mantida em formol numa das salas do Aquário Vasco da Gama em Lisboa, mas também a lula gigante efabulada a partir das descrições de Jules Vernes no seu 20,000 Léguas Submarinas, ou ainda a lula gigante reproduzida nas imagens transmitidas pelos robots que hoje perscrutam o fundo dos oceanos), e fazendo justamente uso do fragmento enquanto ferramenta operativa de representação, Hugo Canoilas constrói uma pintura de dimensões imensas que se propõe ao espectador como um enorme desafio perceptivo.
Esta pintura que simultaneamente envolve, integra e produz espaço, cuja leitura depende em absoluto do deslocamento do corpo e da criação de intervalos de tempo decorrentes desse movimento do corpo, reforça a condição cumulativa da percepção visual de que falámos no início deste texto, parecendo querer estabelecer — através da sua condição cinemática — uma narrativa não-linear, próxima dos processos de sonho ou de imaginação.
Trata-se, de facto, de uma fantasmagoria. Uma imagem que radica a sua construção no seu próprio limite, que se revela também na história do seu processo, e cuja eficácia reside justamente na impossibilidade da totalidade da sua percepção.
Ana Anacleto · Julho 2022
Ana Santos
vis-à-vis
@Photodocumenta@Photodocumenta
Com os desenvolvimentos críticos operados no seio da Arte a partir dos anos 60 do século XX, verificamos que as tipologias disciplinares entendidas como tradicionalmente inquestionáveis — pintura e escultura — sofreram alterações profundas no que diz respeito ao estabelecimento das suas definições, dos seus limites e da construção do seu campo de actuação. Do cruzamento entre as suas preocupações e questões originárias e a adopção de novas questões — que promovem naturalmente novos modos de fazer, mas também (e sobretudo) novos modos de ver e pensar — surge aquilo que Rosalind Krauss denominou como ‘campo expandido’.
Esse território alargado, que permite a integração de inúmeras outras tipologias discursivas de trabalho e simultaneamente o acomodar de matérias e lógicas de pensamento (fora até da própria matéria), deixa a tradicional escultura numa espécie de limbo, de ausência ontológica, que se define a partir da sua nãoidentidade (da exclusão, da oposição, da negação, daquilo que ela não é, ou deixou de ser).
Ana Santos tem vindo a desenhar e inscrever o seu percurso neste ‘campo expandido’ da escultura … ou, mais concretamente, da produção de objectos. A sua prática assenta, em primeira instância, na procura de um muito particular estado de atenção. Esse modo de observar que distende o tempo, que se fixa no detalhe, que perscruta o espaço, e que, para além de óptico é também háptico.
A exposição vis-à-vis, apresentada no Project Room do CAV, decorre desse originário estado de atenção e evoca — desde logo no título — duas questões fundamentais no processo da artista e operativas na tentativa do estabelecimento de uma relação com o seu trabalho: por uma lado uma ideia de posicionamento espacial (frente-a-frente) e por outro uma ideia relacional comparativa (em relação a …, quando comparado com…).
Foquemo-nos, para já, na segunda questão para melhor aprofundarmos o seu processo de trabalho. Promovendo o recurso à sensibilidade e à intuição como instâncias que permitem sublinhar a unicidade do acto criativo, a artista observa e reconhece, em determinados materiais ou objectos encontrados ou adquiridos, certas características formais, funcionais, morfológicas ou cromáticas que lhe permitem começar a desenhar e testar relações de proximidade ou afastamento. Interessa-lhe perceber que energia ou estado da matéria pode ser gerado a partir da junção de dois elementos pré-existentes, cuja proveniência ou familiaridade é naturalmente distinta. A partir de um léxico de acções mínimas (e muitas vezes quase invisíveis) — dobragem, colagem, pintura, deslocamento, corte, sobreposição, aproximação apenas — e com enorme sofisticação, a artista constrói universos que põem em evidência uma articulação possível entre pensamento especulativo e pensamento operativo, permitindo aos objectos estabelecerem-se como instâncias que sinalizam um equilíbrio tenso e definem a sua própria condição evocativa. O atelier é o lugar onde estes processos ocorrem e decorrem, uma vez que o tempo (a passagem do tempo) e a espera são elementos que contribuem para que esta terceira instância possa manifestar-se em plenitude.
Retomemos agora a primeira questão enunciada no título, que convoca uma ideia de posicionamento espacial e que decorre de uma ideia de presença, de manifestação física dos volumes no espaço e do próprio espaço no seu entorno. Este é o segundo momento de teste e reconhecimento a que os seus objectos são sujeitos. Colocados no espaço expositivo é agora necessário encontrar-lhes o lugar, a devida posição. À semelhança do que acontece no atelier, também no espaço expositivo nos parece ocorrer a promoção de um processo colaborativo: a artista ‘está’ e os objectos e ‘estão’. A disponibilidade para o reconhecimento das necessidades relacionais dos objectos entre si, e entre estes e o espaço, é fruto de uma comunicação não-verbal, impenetrável e intraduzível, mas que se efectua afirmativamente nos dois sentidos. Tudo parece concluir-se no momento em que estas relações presenciais se projectam para fora de si, para fora do objecto, numa condição imanente que potencia a activação do próprio espaço e altera em absoluto a sua condição originária. Espaço e objectos passam agora univocamente a produzir um resultado, propondo-se ao espectador como veículos de acesso a um universo profundamente subjectivo cuja experiência, diríamos, poderia aproximar-se de uma ideia de transcendência.
Ana Anacleto · Julho 2022