Terra e Democracia
segundas, 19-23h, sala 105, FFLCH, https://edisciplinas.usp.br/course/view.php?id=112797
Jean Tible jeantible@usp.br
Em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1754), Jean-Jacques Rousseau situa a questão da propriedade da terra como cerne da irrupção da desigualdade. Em célebre passagem, o filósofo de Genebra imagina essa virada: “O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: ‘Evitai ouvir esse impostor. Estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém!’”
A questão dos cercamentos aparece em contexto bastante distinto, em publicação recente (2010) de um pensamento antigo. O que costumamos chamar de “meio ambiente”, insiste Davi Kopenawa em A queda do céu, é composto tanto por humanos quanto pelos “xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o que ainda não tem cerca. As palavras da ecologia são nossas antigas palavras, as que Omama deu a nossos ancestrais”. Os processos de colonização buscam ignorar e aniquilar essa multiplicidade de seres-habitantes dessas espacialidades. Pode-se compreender desse modo o conceito jurídico de terra nullius – clássica aspiração tirânico da página em branco sobre a qual escreve fortes páginas Naomi Klein em A doutrina do choque, analisando os planos neoliberais do poder dos anos 1970 para cá.
Em seus estudos acerca do sistema político-econômico capitalista ao qual se dedicou toda sua vida, Karl Marx opõe a propriedade comunal – que seria no princípio generalizada – à privada. Se nos Manuscritos Parisienses (1844), o pensador europeu caracteriza “a propriedade fundiária” como “raiz da propriedade privada”, em A nacionalização da terra (1872) defende que “a propriedade do solo é a fonte original de toda riqueza, e ela se transformou no grande problema cuja solução determinará o futuro da classe operária”. Salienta, ademais, que juristas, filósofos e economistas “disfarçam esse fait initial da conquista sob o argumento do ‘direito natural’” – evidentemente direito natural de alguns. Seu primeiro texto sobre uma questão material, no qual acompanha a discussão na Dieta renana para definir se a prática tradicional de colheita da lenha por parte dos pobres configurava-se num roubo ou não. Com a madeira valorizada por sua integração no circuito mercantil, havia uma pressão dos proprietários de terra para transformar a colheita da lenha em delito. A alternativa a isto seria sua manutenção como bem para satisfação de necessidades elementares e um embate, então, ocorre entre duas formas de direito, o de propriedade e o dos costumes, que incluía direito de passagem, de pasto e colheita de lenha. Estava, assim, em jogo a definição da propriedade.
Tal questão da terra é onipresente em certos debates político-intelectuais. Ativo participante da República dos Conselhos da Bavária em 1919, o poeta e anarquista Gustav Landauer percebe “o combate do socialismo” como “um combate pelo solo”. O capitalismo somente existe pelo fato de as “massas serem sem-terra” e a revolução se sintoniza com uma grande transformação no regime da propriedade fundiária, na qual o chão “volta a ser o portador da vida comum e da obra comum”. Em outro contexto, movimentos formulam essa antiquíssima demanda por justiça com o lema de terra e liberdade, do México revolucionário e da resistência ao jugo czarista à Catalunha em ebulição passando pela multiplicidade de mobilizações camponesas atravessando tempos e espaços.
Propõe-se, desse modo, estudar essas questões, da terra e da democracia, articuladas. Tal esforço é efetuado a partir do Brasil, mas em conexão com processos de outras partes do planeta. Num primeiro momento, trata-se de compreender o surgimento do capitalismo e seu longo confronto com práticas de coletividades dissidentes, desde as comunidades anabatistas no século 16 no coração da Europa às organizações comunais dos povos indígenas, quilombolas e camponeses nas Américas. A segunda parte busca apreender a privatização da terra em três sessões: a história do Brasil, desde seu início, como apropriação fundiária; a atuação do ator econômico e político do agronegócio e o caso californiano de articulação entre acaparamento de terras rurais e economia carcerária.
A seção final do curso se dedica a experiências de retomadas, com dois exemplos históricos (a cabanagem, no Pará do início do século 19 e a revolução no México em 1910) e de um caso contemporâneo no extremo-sul da cidade de São Paulo. No fim de sua vida, Marx se debruça, para a redação do volume 3 de O Capital, sobre as sociedades agrárias. Recebe do historiador russo Kovalevsky seu livro Obshchinnoe Zemlevladenie e (re)pensa a distinção entre posse e propriedade da terra e sublinha a impossibilidade de aplicar o mesmo conceito de ‘propriedade’ usado para a Europa, para estudar sociedades onde a terra não pode ser alienada (vendida). Marx troca, num ponto que Oswald de Andrade enfatizará depois, sistematicamente “propriedade” por “posse” nesses chamados Cadernos Kovalevsky, indicando a comunidade/comuna como proprietária, ou melhor, possuidora da terra. À apropriação capitalista, pode ser contraposta outra, a reapropriação como retomada. Essa palavra não diz respeito a um tomar para si e ser dono absoluto de uma terra a ser dominada, mas de conviver e adaptar-se a ela, em consonância com os desafios urgentes (dada a emergência climática) de outras compreensões de naturezas-culturas e com inúmeras práticas cotidianas dos povos da terra. Por fim, a última sessão é dedicada à um debate a respeito dos elos costurados entre lutas pela terra e aspirações democráticas.
14 de agosto
abertura
Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami.
São Paulo, Companhia das Letras, 2015 [cap. 23. O espírito da floresta].
Gustav Landauer. “The settlement” (1909) em Gabriel Kuhn (org.) Revolution and Other Writings: A Political Reader. Oakland, PM Press, 2010.
Manuela Carneiro da Cunha. “Povos da megadiversidade: o que mudou na política indigenista no último meio século”. Revista Piauí, n. 148, janeiro de 2019.
Habitantes da ZAD, Notre-Dame-des-Landes. Tomar a terra. São Paulo, Glac, 2021 [2019].
José Celso Martinez Corrêa. Sertões: histórias de Canudos. Instituto Moreira Salles, 3 de julho de 2019.
terras cercadas
21 de agosto
cristãos, comunistas, hereges
Friedrich Engels. “As guerras camponesas na Alemanha” (1850) em A Revolução antes da revolução – Vol. 1. São Paulo, Expressão Popular, 2008. [trecho]
Ernst Bloch. Thomas Müntzer, teólogo da revolução. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1973 [1921]. [trecho]
complementar:
Thomas Müntzer. Sermão aos príncipes, 1524.
Dagmar Talga. O Voo da Primavera (2019) - documentário sobre a vida de dom Tomás Balduíno.
28 de agosto
comum contra capital
Karl Marx. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. São Paulo, Boitempo, 2017 [1842]. [trecho]
Karl Marx. O Capital: crítica da economia política (livro 1: o processo de produção do capital). São Paulo, Boitempo, 2013 [1867] [Capítulo 24 – A Chamada Acumulação Original].
complementar:
Troca de cartas entre Karl Marx e Vera Ivanovna Zasulitch (1881) em Michael Löwy (org.) Lutas de classes na Rússia. São Paulo, Boitempo, 2013. [trecho]
Pierre-Joseph Proudhon. O que é a propriedade? ou Pesquisa sobre o Princípio do Direito e do Governo. São Paulo, Martins Fontes, 1988 [1840]. [capítulos 1 e 2]
4 de setembro
antagonismo ameríndio
com Marina Ghirotto Santos e Salvador Schavelzon
Marina Ghirotto Santos. Conversas com florestas viventes: política, gênero e festa em Sarayaku (Amazônia equatoriana). Tese de doutorado em Antropologia Social, FFLCH/USP, 2023 [cap. 3 Terra: formas de cuidar e viver bonito].
complementar:
Ailton Krenak. “A Aliança dos Povos da Floresta” (entrevista de A. Krenak e Osmarino Amâncio, por Beto Ricardo e André Villas Boas, 10 de maio de 1989) em Sergio Cohn (org.) Encontros. Rio de Janeiro, Azougue, 2015.
Edward Valandra. “Mni Wiconi: water is [more than] life” em Nick Estes e Jaskiran Dhillon (orgs.). Standing with Standing Rock: Voices from the #NoDAPL Movement. Minnesota, University of Minnesota Press, 2019.
11 de setembro
brasil quilombola, terra preta
com Salloma Salomão e Ronaldo Santos
Antônio Bispo dos Santos. A terra dá, a terra quer. São Paulo, Ubu e Piseagrama, 2023.
Mariléa de Almeida. Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas. São Paulo, Elefante, 2022. [introdução e capítulo 1]
complementar:
Joelson Ferreira de Oliveira. “Terra Vista, Terra-Mãe: Existência grandiosa no campo”. Caderno de Leituras n. 111 Série Políticas da terra. Edições Chão da Feira, Belo Horizonte, agosto de 2020.
Flávio dos Santos Gomes. Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo, Claro Enigma, 2015. [trecho]
Clóvis Moura. Sociologia política da guerra camponesa de Canudos: da destruição do Belo Monte ao aparecimento do MST. São Paulo, Expressão Popular, 2000. [trecho]
propriedade fundiária, nó do brasil (e do mundo)
25 de setembro
A grilagem como fundamento
com Gustavo Prieto e Douglas Rodrigues Barros
Gustavo Prieto. “Nacional por usurpação: a grilagem de terras como fundamento da formação territorial brasileira” em Ariovaldo Umbelino de Oliveira (org.). A grilagem de terras na formação territorial brasileira. São Paulo, FFLCH/USP, 2020.
complementar:
Ariovaldo Umbelino Oliveira, Camila Salles de Faria e Teresa Paris Buarque de Hollanda. “Registros Públicos e Recuperação de Terras Públicas – Relatório Final”. Série Pensando o Direito n. 48, Brasília, Ministério da Justiça, 2012.
Douglas Rodrigues Barros. “O agro realmente é pop: sobre a hegemonia do sertanejo na era da pós-música”. Revista Rosa, vol. 7, março de 2023.
2 de outubro
O agronegócio
com Yamila Goldfarb e Caio Pompeia
Marco Antonio Mitidiero Junior e Yamila Goldfarb. O Agro não é Tech, o Agro não é Pop e Muito Menos Tudo. São Paulo, ABRA e FES Brasil, 2021.
Caio Pompeia. Formação política do agronegócio. São Paulo, Elefante, 2021. [trecho]
complementar:
Yamila Goldfarb. “Reforma agrária como política de reparação histórica para a população negra no Brasil”. Campo-Território: revista de Geografia Agrária, Uberlândia-MG, v.18, n.49, p. 330-344, abr. 2023.
Caio Pompeia. “Uma etnografia do Instituto Pensar Agropecuária”. Mana, 28 (2), 2022.
9 de outubro
Ajuste prisional: terras rurais e economia carcerária
com Bruno Xavier Martins
Ruth Wilson Gilmore. Golden gulag: prison, surplus, crisis, and opposition in globalizing. Los Angeles, University of California Press, 2007. [no prelo, São Paulo, Igrá Kniga, 2023, tradução de Bruno Xavier Martins]. [trecho]
complementar:
Jackie Wang. Capitalismo carcerário. São Paulo, Igrá Kniga, 2022 [2018] [capítulo 4].
terra habitada
23 de outubro
Cabanagem
com Charles Trocate
Pasquale Di Paolo. Cabanagem, a revolução popular da Amazônia. Belém, Cejup, 1990.
Domingos Antônio Raiol. Motins políticos ou, História dos principais acontecimentos políticos da província do Pará desde o ano de 1821 até 1835. Belém, Universidade Federal do Pará, 1970.
Vicente Salles. Memorial da Cabanagem: esboço do pensamento político-revolucionário no Grão-Pará. Belém, Cejup, 1990.
Mark Harris. Rebelião na Amazônia: Cabanagem, Raça e Cultura Popular no Norte do
Brasil (1798-1840). Campinas, Unicamp, 2018.
Décio Freitas. A miserável revolução das classes infames. Rio de Janeiro, Record, 2005.
Célia Maracajá. O auto da cabanagem.
30 de outubro
Tierra y libertad (México, 1910)
com Cassio Brancaleone e Ester Rizzi
Manifiesto de Partido Liberal Mexicano. Regeneración Tomo IV, No. 56 Los Ángeles, California. 23 de septiembre de 1911.
INEHRM (org). El plan de ayala (1911). Mexico, Fondo de Cultura, 2019.
Rubén Trejo Muñoz. “Vínculos entre los zapatistas y los magonistas durante la Revolución Mexicana”, UACM, 2020.
complementar:
Cassio Brancaleone. “Revolução mexicana, magonismo e anarquismo” em Beatriz Silvério e Fernanda Grigolin (orgs.). Infatigável guerrilheira: Margarita Ortega Valdés na Revolução Mexicana. São Paulo, Tenda de Livros, 2022.
Ester Gammardella Rizzi. Revolução Mexicana - O direito em tempos de transformação social. São Paulo, Expressão Popular, 2023. [capítulo 2 “O Direito e a organização fundiária mexicana”].
6 de novembro
retomadas
com Jerá Guarani, Lucas Keese e Lauriene Seraguza
[domingo 5 de novembro – dia na Kalipety]
Jerá Guarani. “Tornar-se selvagem”. Piseagrama, n. 14, p. 12-19, jul. 2020.
Lucas Keese dos Santos. A esquiva do Xondaro: movimento e ação política entre os Guarani Mbya. São Paulo, Elefante, 2021. [capítulo 4: esquiva e resistência histórica]
Lauriene Seraguza. As donas do fogo: política e parentesco no mundo guarani. Tese de doutorado em Antropologia Social, FFLCH/USP, 2023 [trecho do capítulo 3: corpos de reservas, vidas em retomadas].
13 de novembro
debate de encerramento ao ar livre na casa líquida [perto do metrô Sumaré]:
apropriação coletiva e territórios libertos
com Mauro William Barbosa de Almeida