2017 em Portugal: o racismo, a escravatura e o renascimento negro
A luta diária dos filhos e netos de África fez durante muito tempo parte das preocupações académicas e de algumas entidades do Estado português. Foram trabalhos importantes, o mapeamento sociológico da população de origem africana em Portugal, os conceitos criados para a sua análise e os inúmeros projectos editoriais e de intervenção social que visou a integração e a inserção dos imigrantes. Mas no meio deste cenário, notou-se também a complexidade do percurso e do reconhecimento dos afrodescendentes portugueses como cidadãos nacionais, ao mesmo tempo que expôs a ausência da participação dos próprios na sua “auto-denominação” e na elaboração de iniciativas a si destinadas. A sua caracterização como “jovens” na maioria das obras e a grande produção científica sobre a juventude afrodescendente, esteve muito ligada a questões sócio-políticas que tendem a associar esta categoria a situações de criminalidade, de violência urbana e de insucesso escolar, sendo vistos, nesta sequência, como um grupo passível de inserção e integração social e que necessita de vigilância e “mediação sócio-cultural”. (ver obras, por exemplo, de Otávio Raposo, que aponta para estes factos).
Contudo, é às Nações Unidas, com a criação da Década dos Afrodescendentes, a quem temos de agradecer o renascimento negro português através do surgimento de associações de afrodescendentes com uma composição diferente das tradicionais associações de imigrantes: compostos pelos filhos e netos de imigrantes africanos, mais jovens, com mais habilitações, maioria com nacionalidade portuguesa e com uma vontade imensa de ocupar o espaço público de forma digna e visível. Caracterizando os afrodescendentes, segundo a ONU, estes “são, com frequência, vítimas de discriminação perante a justiça, enfrentam alarmantes índices de violência policial e discriminação racial. Além disso, seu grau de participação política é baixo, tanto na votação quanto na ocupação de cargos políticos.” (http://decada-afro-onu.org/).
Assiste-se à afirmação social, cultural, política e mediática do associativismo afrodescendente em Portugal, em matérias que afetam as suas vidas e as suas expectativas sociais e nas mais diversificadas formas de luta: desde a valorização das suas características fenotípicas e da sua herança cultural africana com iniciativas diversas nas diferentes expressões culturais, à organização de abaixo-assinados, conferências e manifestações de pressão política para alteração de leis que condicionam a sua cidadania, como a Lei da Nacionalidade, ao debate académico sobre o racismo, a cidadania, feminismo negro e a identidade social.
Consegue-se em 2017 a discussão simultânea do papel de Portugal na Escravatura, a pressão para a alteração da lei da nacionalidade e para a recolha dos dados “étnico-raciais”, a revisão dos manuais de História, a denúncia do racismo e da xenofobia, entre outras questões que são as bandeiras dos afrodescendentes hoje em dia. Aqui, muitos indivíduos e muitas entidades caminham lado a lado, havendo uma sinergia e um fluir de interesses e de parcerias entre as diferentes associações raramente vista antes.
Para mim, três momentos marcantes ficam deste ano de 2017:
1) A proliferação de artigos na imprensa escrita, de conferências e mesas redondas sobre o racismo e o papel de Portugal na Escravatura e Tráfico de pessoas escravizadas;
2) A proposta da Djass à CML, aprovada com maioria de votos, para a criação de um Memorial da Escravatura em Lisboa;
3) A manifestação de repúdio contra a Escravatura na Líbia, organizada pela Consciência Negra e outros colectivos de africanos e afrodescendentes;
Fundamental e impulsionador foi o trabalho de Joana Gorjão Henriques no Público, que para além de temáticas de grande pertinência, permitiu também a saída da invisibilidade e a conquista do espaço público do ativismo negro em Portugal.
Para 2018 fica tudo por fazer e a continuação das reflexões já iniciadas. A Luta continua!